30.4.24

Manuel António Pina (Talvez de noite-2)




TALVEZ DE NOITE (2)



Em breve partirei de novo
e caminharei por desertos e por desastres
e por leituras exasperadas e citações,
entre palavras, sem ninguém real que me espere e me abra a porta.

O jantar arrefecerá na mesa,
os meus livros desesperarão
e não haverá sentido que os conforte
e o meu nome, se tiver um nome, não me responderá.

E no entanto um fio de tempo ou um fio de sangue,
ou então algo ainda menos palpável,
o que partiu e o que ficou regressando um ao outro
por galerias intermináveis e sonhos desfigurados,
ausentes um do outro, desaparecendo um no outro
como se esgota a água no fundo de um poço.


Manuel António Pina

[Luz & sombra]

 .

28.4.24

Francisco Caro (A poesia ou nada)




LA POESÍA O NADA

 

Vemos el sol caer, convengo
contigo en que la vida es caminar
cegados laberintos
o soledades agrias

escríbela,
me dices,
sálvate del secreto de vivir, escupe todo.


Francisco Caro

 

Vemos o sol cair, e convimos 
ambos que a vida é caminhar,
labirintos cegos
amargas solidões

Escreve-a,
dizes-me,
salva-te do segredo de viver,
cospe tudo.


(Trad. A-M-)

.

27.4.24

Luís Filipe Castro Mendes (Anunciação)

 



ANUNCIAÇÃO 

 

Não fujo ao poema.
Espero-o com a alegria de quem caminha
sobre brasas e destroços
e dele espero a música, toda a música
que não sei dar nem receber. 

Antes de fechar as contas, digo eu,
espero o poema
como um riso atrás da cortina
da vida.

 

LUÍS FILIPE CASTRO MENDES
 A Misericórdia dos Mercados
Assírio & Alvim (2014)

 

[Poema possivel]

 

.

25.4.24

Antonio Orihuela (Coimbra)

 



COIMBRA

 

El único lugar de Portugal donde aún suena
Grândola, Vila Morena
es en Beco da Carqueija.

Hace cuarenta y cinco años de aquel 25 de abril,
suficientes para que el fascismo
se haya comido todos los claveles.

Antonio Orihuela



Num só lugar de Portugal se ouve ainda
Grândola, Vila Morena
-
é no Beco da Carqueija.

Quarenta e cinco anos do 25 Abril,
suficientes para o fascismo
lhe comer os cravos todos.

(Trad. A.M.)

 .

23.4.24

Álvaro Cunqueiro (Luz molhada)




Luz mojada le llegaba del mar.
¡Qué claro el tiempo
para verla en la playa
con presencia de cosa!
¡Qué sencilla la tarde
para besarla en el pelo
con caricia animal y pura!
¡Luz mojada de sus ojos
llevaba el mar!


Álvaro Cunqueiro



Luz molhada lhe vinha do mar.
Que tempo claro
para a ver na praia
com presença de coisa!
Que simples a tarde
para a beijar no cabelo
carícia pura e animal!
Luz molhada de seus olhos
vestia o mar!


(Trad. A.M.)

.

22.4.24

Francisco Umbral (Filho)




Filho, salto que o dia dá
para outro dia.
Pimpinela,
sapatela,
pirete no ar
para outro ar.
Por ti andam as semanas
ao pé coxinho,
sem nunca pisar o risco.
Quem pisa o risco pisa medalha.
Quando o mundo não sabe
que passo dar,
e está tudo em suspenso,
como que travado,
saltas tu a pés juntos,
por sobre a levada,
e o dia volta a correr,
claro na tua água.


Francisco Umbral

(Trad. A.M.)

.

20.4.24

Louise Glück (Paisagem)




LANDSCAPE

 

Time passed, turning everything to ice.
Under the ice, the future stirred.
If you fell into it, you died.

It was a time
of waiting, of suspended action.

I lived in the present, which was
that part of the future you could see.
The past floated above my head,
like the sun and moon, visible but never reachable.

It was a time
governed by contradictions, as in
I felt nothing and
I was afraid.

Winter emptied the trees, filled them again with snow.
Because I couldn’t feel, snow fell, the lake froze over.
Because I was afraid, I didn't move;
my breath was white, a description of silence.

Time passed, and some of it became this.
And some of it simply evaporated;
you could see it float above the white trees
forming particles of ice.

All your life, you wait for the propitious time.
Then the propitious time
reveals itself as action taken.

I watched the past move, a line of clouds moving
from left to right or right to left,
depending on the wind. Some days

there was no wind. The clouds seemed
to stay where they were,
like a painting of the sea, more still than real.

Some days the lake was a sheet of glass.
Under the glass, the future made
demure, inviting sounds;
you had to tense yourself so as not to listen.

Time passed; you got to see a piece of it.
The years it took with it were years of winter;
they would not be missed. Some days

there were no clouds, as though
the sources of the past had vanished. The world

was bleached, like a negative; the light passed
directly through it. Then
the image faded.

Above the world
there was only blue, blue everywhere.


Louise Glück

[The Threepenny Review]

 

 

O tempo passou, transformou tudo em gelo.
Sob o gelo, o futuro bulia.
Se caísses lá dentro, morrias.

Era um tempo
de espera, de acção suspensa.

Eu vivia no presente, que era
a parte do futuro que podíamos ver.
O passado pairava sobre a minha cabeça,
como o sol e a lua, visível mas inalcançável.

Era um tempo
governado por contradições, como
Não sentia nada e
tinha medo.

O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.
Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.
Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;
o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.

O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se simplesmente;
podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,
formava partículas de gelo.

Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se acção consumada.

Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
consoante o vento. Por vezes

não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.

Por vezes o lago era um lençol de vidro.
Sob o vidro, o futuro murmurava,
modesto, convidativo:
tinhas de te concentrar para o não ouvires.

O tempo passou; chegaste a ver parte dele.
Os anos que levou eram anos de inverno;
ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes

não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo

perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de lado a lado. Depois
a imagem apagava-se.

Por cima do mundo
só havia azul, azul em toda a parte

(Trad. Rui Pires Cabral)

 .

18.4.24

Fernando Luis Chivite (Poema da louca juventude)




POEMA DE LA LOCA JUVENTUD


Yo también lo quería. Yo también. 

Encontré algunas cosas, vislumbré
por supuesto algunas otras:
supe algo.

También me quedé quieto: casi
completamente quieto: loco
y solo.

Tenía una camisa azul claro gastada:
recuerdo aquel verano
con aquella camisa.

Yo también lo buscaba. Me gustaba la vida.
Si quería morir no era sólo
por ella.

 
Fernando Luis Chivite

 

Eu também o queria, também eu. 

Encontrei umas coisas, vislumbrei
já se vê algumas outras,
alguma coisa eu soube. 

Também eu fiquei quieto, quase
quieto de todo,
louco e só. 

Tinha uma camisa azul já gasta,
recordo aquele Verão
com essa camisa. 

Também eu o buscava, gostava da vida.
Queria morrer? Não era só
 por ela.
 

(Trad. A.M.).

17.4.24

Carlos Martínez Aguirre (O fantasma de um átomo)


 

EL FANTASMA DE UN ÁTOMO DE URANIO XX
EVOCA SU RUPTURA SENTIMENTAL

 

 

Tú te alejaste de mí…
y yo arrasé Nagasaky.


Carlos Martínez Aguirre

 

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15.4.24

Linda Pastan (Casei contigo)



I MARRIED YOU 

 

I married you
for all the wrong reasons,
charmed by your
dangerous family history,
by the innocent muscles, bulging
like hidden weapons
under your shirt,
by your naive ties, the colors
of painted scraps of sunset.
I was charmed too
by your assumptions
about me: my serenity—
that mirror waiting to be cracked,
my flashy acrobatics with knives
in the kitchen.
How wrong we both were
about each other,
and how happy we have been.
 

Linda Pastan

 

Casei contigo
pelas razões erradas,
encantada com a tua
perigosa história familiar,
os músculos inocentes, salientes
como armas escondidas
sob a tua camisa,
as tuas gravatas ingénuas, das cores
de bocados pintados de pôr do sol.
Fui também atraída
pelas tuas suposições
sobre mim: a minha serenidade –
aquele espelho à espera de ser quebrado,
as minhas acrobacias exageradas com facas
na cozinha.
Que errados estávamos ambos
sobre o outro

e que felizes temos sido.

(Trad. fjcc)

 .

13.4.24

Felipe Benítez Reyes (A situação)




LA SITUACIÓN

 

En todo pensamiento se esconde una tiniebla,
como en toda emoción una sombra de duda.
En todas las verdades hay un mármol que tiembla
y en todas las mentiras un fuego de penumbra.

De lo poco que somos, gran parte es de un fantasma.
Nuestro deseo gobierna su industria de espejismos.
La memoria más nuestra también es de la nada.
La conciencia, en secreto, blande un puñal en vilo.

El pasado divaga entre estatuas de humo.
El presente parece una ilusión en fuga.
Allá en el porvenir hay siempre algún reducto
en que ensoñar la trama de estos sueños a oscuras.

La noche está callada como el eco del miedo.
Las sílabas se juntan en busca de un sentido.
Nuestra historia la escribe con su cálamo el viento.
Y este huir de nosotros, del tiempo y del destino…

Felipe Benítez Reyes

 

 

Em todo o pensamento há uma treva,
como em qualquer emoção uma dúvida.
Nas verdades há um mármore que estremece
e nas mentiras um fogo de penumbra.

Do pouco que somos, grande parte é fantasma.
O desejo gere sua indústria de miragens.
A memória mais nossa é também a do nada.
A consciência, em segredo, brande um punhal indeciso.

O passado divaga entre estátuas de fumo.
O presente semelha uma ilusão em fuga.
Lá no porvir há sempre um reduto
em que sonhar a trama dos sonhos escuros.

A noite cala-se como o eco do medo.
As sílabas juntam-se em busca de um sentido.
A nossa história o vento a escreve com sua pena.
E a nossa fuga de nós mesmos, do tempo e do destino…


(Trad. A.M.)

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12.4.24

Francisco Caro (A que lugar voltar)




A QUÉ LUGAR VOLVER

 

Entiendo que algún día me dijeses:
tus poemas
hablan de finitudes 

pasado el cruce del amor
–respondería–
apenas si la vida
ofrece otros caminos 

tan de la misma
materia nunca penetrada
son tiempo y poesia
que nadie aún
ha logrado saberlos, separarlos.


Francisco Caro

 

 

Entendo que um dia me dissesses,
teus poemas
falam de finitudes

Passada a encruzilhada do amor
não oferece a vida
quase outros caminhos

Tão da mesma
matéria jamais penetrada
são tempo e poesia
que ninguém ainda
logrou sabê-los, separá-los.


(Trad. A.M.)



>>  Mientras la luz (blogue/ muitos p) /  Crear en Salamanca (7p) / Zenda (5p) / Wikipedia

.

10.4.24

Jorge Sousa Braga (Magnólias)




MAGNÓLIAS

 

Esqueceram-se das folhas,
tão grande era a pressa
de florirem.


Jorge de Sousa Braga

 .

8.4.24

Federico Gallego Rípoll (Final)




FINAL

 

La vida es un regalo que agradezco
hoy. Toda la vida es hoy. Tus ojos
y mis ojos. El punto en que se dieron
es hoy. Y hasta dónde se lleguen y de donde
regresen, es hoy. 

Toda la vida es hoy, y me parece
suficiente el haber vivido tanto
si en este hoy de hoy cabe tu lúcida
mirada sobre mí, y es el futuro
un hoy perpetuamente tuyo.

 Dame ahora
la dicha de morir, hoy que no tengo
ni pasado, ni miedo.

Federico Gallego Ripoll

 


A vida é um presente que eu agradeço
hoje. Toda a vida é hoje. Teus olhos
e meus olhos. O ponto em que se deram
é hoje. E até onde chegarem e de onde
voltarem, é hoje.

Toda a vida é hoje, e parece-me
bastante o ter vivido tanto
se neste hoje de hoje cabe o teu lúcido
olhar sobre mim, e o futuro é
um hoje perpetuamente teu.

Dá-me agora já
a dita de morrer, hoje, que não tenho
nem medo, nem passado.

(Trad. A.M.)


> Outra versão: Do trapézio (L. Parrado)

.

7.4.24

Federico García Lorca (Nana)




NANA

 

Duérmete, niñito mío,
que tu madre no está en casa;
que se la llevó la Virgen
de compañera a su casa.


Federico García Lorca

 

 

Dorme, dorme, meu menino,
tua mãe não está em casa;
foi a Virgem que a levou
de companhia para casa.


(Trad. A.M.)

.

5.4.24

Joaquim Namorado (O que é, era)




O QUE É, ERA 

 

Quando Cristóvão Colombo
descobriu a América
a América estava lá;
o sangue já circulava
 antes de descrever Harvey a sua circulação;
a gente respirava sem saber
que respirar é uma oxidação:
Tudo existe.
O que se inventa é a descrição.
 

Joaquim Namorado

 .              

3.4.24

Álvaro Cunqueiro (Do outro lado me disseram)




Al otro lado me dijeron
los viejos se van convirtiendo en árboles
viejos también sin hojas en el lado del sol
aguardando sin saber qué, mudos.

Pero súbitamente un árbol cualquiera
siente subir dentro de él la savia de un sueño
al borde de la muerte ya, pero todavía
tibio como la leche de la madre.

El sueño va subiendo por las venas del árbol
una vida entera que pasa
hasta hacerse pájaro en una rama
un pájaro que recuerda, canta y se marcha
poco antes de que todos los árboles mueran.

Si yo me hago árbol viejo al otro lado del río
y me toca ser el árbol que recuerda y sueña
puedes estar bien segura que soñaré contigo

con tus ojos grises como el alba
y con tu sonrisa
con la cual se vistieron los labios de los rosales
en los días mas felices.

Álvaro Cunqueiro

 

Do outro lado me disseram
os velhos vão-se fazendo em árvores
velhos também sem folhas no lado do sol
aguardando sem saber quê, mudos.

Mas de repente uma árvore qualquer
sente subir por dentro a seiva dum sonho
à beira da morte já, mas ainda
morno como o leite materno.

O sonho vai subindo pelas veias da árvore
uma vida inteira que passa
até fazer-se pássaro num ramo
um pássaro que recorda, canta e vai-se embora
antes pouco de morrerem as árvores todas.

Faça-me eu árvore velha do outro lado do rio
e toque-me ser a árvore que sonha e recorda
podes estar certa que sonharei contigo

com teus olhos cinza como a aurora e com teu sorriso
que vestiu os lábios das roseiras
nos dias mais felizes.


(Trad. A.M.)



>>  A media voz (40p) / Blogpoemas (36p) / Cervantes-1 (bio/biblio) / Cervantes-2 (sítio)

.

2.4.24

Fabio Morábito (Mudança)




MUDANZA

 

A fuerza de mudarme
he aprendido a no pegar
los muebles a los muros,
a no clavar muy hondo,
a atornillar sólo lo justo.
He aprendido a respetar las huellas
de los viejos inquilinos:
un clavo, una moldura,
una pequeña ménsula,
que dejó en su lugar
aunque me estorben.
Algunas manchas las heredo
sin limpiarlas,
entro en la nueva casa
tratando de entender,
es más,
viendo por dónde habré de irme.
Dejo que la mudanza
se disuelva como una fiebre,
como una costra que se cae,
no quiero hacer ruido.
Porque los viejos inquilinos
nunca mueren.
Cuando nos vamos,
cuando dejamos otra vez
los muros como los tuvimos,
siempre queda algún clavo de ellos
en un rincón
o un estropicio
que no supimos resolver.


Fabio Morábito

 
 

À força de me  mudar
aprendi a não encostar
os móveis às paredes,
a não espetar muito fundo,
a apertar só o indicado.
Aprendi a respeitar as marcas
dos inquilinos antigos,
um prego, uma moldura,
um suporte, que deixo no lugar,
mesmo que me estorvem.
Algumas manchas herdo-as
sem limpar,
entro na casa nova
cuidando de entender,
mais mesmo,
vendo por onde um dia hei-de ir-me embora.
Deixo a mudança
dissolver-se como uma febre,
como uma crosta que cai,
não quero fazer barulho.
Porque os inquilinos antigos
nunca morrem.
Quando nós vamos embora,
quando deixamos de novo
as paredes como as recebemos,
fica sempre algum prego
num canto,
ou algum estrago
que não soubemos resolver.


(Trad. A.M.)

.