7.6.06
Aquilino Ribeiro (Da neve)
A neve dava-nos a honra de nos visitar amiúde.
Muitas vezes, estávamos nós dobrados para os compêndios, sob o olhar de cérbero do Saraiva, e caíam inesperadamente dois flocos.
Vinham com requebro preguiçoso zebrando o ar plúmbeo, encostados à vidraça, dir-se-ia a espreitar-nos: estais lá?
E escapuliam-se para as couves galegas, que medravam em baixo para o consuetudinário caldinho verde da ceia, orelhudas como as melhores cerebrações da comunidade.
Figuravam de batedores.
Atrás daqueles rompia o pelotão.
E a breve trecho o céu tornava-se uma toalha turca, agitada ao arfar do vento, uma hora, duas horas, todo o dia, toda a noite, uma semana inteira com um ritmo para a eternidade.
Contra os peitoris a massa branca acumulava-se, fazia regueifas, enfuscava as vidraças.
Para lá do tapume lívido das janelas represava-se um oceano opaco, zinco em fusão.
Olhávamos de dentro para fora como se nos abafasse uma redoma.
De tempos a tempos, o Saraiva não resistia à tentação de chegar à janela em arrastados passos a gozar o espectáculo do grande mausoléu branco que sepultava o mundo.
Um mais gaiato atrevia-se a ir espreitar, ronceirinho, à sua ilharga.
E, encorajados pelo exemplo, lá iam todos.
Uma vez na vida, o Saraiva tinha de ser benévolo.
- AQUILINO RIBEIRO, Uma luz ao longe, IV.
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