30.6.06

Corpo presente (22)






INCRÍVEL




Que grande bebedeira,
o tipo compra um livro,
lê-o até meio
e depois descobre que o livro
não tem uma única letra.


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28.6.06

Um verso (16)

















Um verso de Sophia
(Meditação do Duque de Gandia):




“Nunca mais servirei senhor que possa morrer”.




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Jorge de Sena (Conheço o sal)





Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousada em suor nocturno.


Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.


Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.


Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.


Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.


A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.



Jorge de Sena


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23.6.06

Tomaz de Figueiredo (Pulou do quente)





Pulou do quente ainda com estrelas e quase nem molhou a ponta do nariz, engoliu uma água de unto e tragou um dedal de aguardente, descompôs a mulher, à pressa, por lhe questionar e chorar a côdea do cão, e, mal que apresilhado o cinto e embandoleirada a escopeta, ala, que se faz tarde, baforando fumaças e respiração pelo nevoeiro, como se fosse a arder.

Cara de múmia, enxuta, de peliças enfoladas para o vazio de dentes, ainda por cima pelo tabaco de cinquenta anos, logo apagado se o não puxasse, Manuel Félix todo ele era seco: mãos de santo de aldeia, só tendões e osso, tostadas, quadris por onde o cós das calças fugia, esbarrigando a camisa de tomentos, canelas a que umas polainas ressecas e sem boleio davam o ar das pernas de pau levadas a Santo Amaro, de promessa, por coxos sarados.

Como se afiada em rebolo, dir-se-ia quebra-vento apropositado a cana do nariz, e não seriam as costeletas, de ralas, tojo molarinho, que o tolheriam de papar léguas em cima de léguas, tanto como nem os setenta anos, cumpridos em Janeiro, mês dos gatos, que têm sete fôlegos.



TOMAZ DE FIGUEIREDO, “Drama”, em Tiros de Espingarda (Verbo, 1984)

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Coitado do Jorge (15)






DIÁLOGO VESPERTINO




SMS-1
Convite almoço, amanhã, chez moi, arroz de salpicão.
Perigo, sestinha a seguir…



RESPOSTA
Eu, hem! Para me acontecer o mesmo que aconteceu à Rita, no meio do centeio?...



SMS-2
Quem, a Rita? Eu estou que foram mais as vozes que as nozes.


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22.6.06

Corpo presente (21)





TRATADO DA EVIDÊNCIA




Afinal,
só não voa
quem não
tem asas



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Jorge Luís Borges (E aprende-se)







Depois de algum tempo,
aprende-se a subtil diferença
entre tomar uma mão
e aprisionar uma alma,
e aprende-se
que o amor não significa deitar-se
e uma companhia não significa segurança
e começamos a aprender…
Que os beijos não são contratos
e os presentes não são promessas
e começamos a aceitar as nossas derrotas
de cabeça erguida e de olhos abertos
e aprendemos a construir
os nossos caminhos no hoje,
porque o terreno do amanhã
é demasiado inseguro para planos…
e os futuros ficam-se pela metade.
E depois de algum tempo
aprende-se que se for de mais
até o calorzito do sol queima.
Daí que plantemos o nosso próprio jardim
e decoremos a própria alma,
em vez de esperar que alguém nos traga flores.
E aprendemos que realmente podemos aguentar,
que realmente somos fortes,
que valemos realmente,
e aprendemos, aprendemos…
e com cada dia aprendemos.



Jorge Luís Borges


Original: Aguarelas-de-Turner
(Trad. A.M.)
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19.6.06

Fernando Assis Pacheco (Canção do ano 86)





CANÇÃO DO ANO 86




Agora quando volto
quando é raro voltar e sempre por um dia
estou à minha espera na ponte de Santa Clara
com um ramo de rosas que levanto
à aproximação do carro
saudando-te caro Fernando Assis Pacheco
filho pródigo destes quintais floridos


quando acontece que volto
que assim volto por pouquíssimo tempo dou comigo
na berma da EN 1 a olhar à esquerda o Vale do Inferno
hoje estragado por um sacana qualquer dum engenheiro
dizendo adeus adeus Fernando Assis Pacheco
menino antigamente sem cuidado


se é que volto intimado pela agenda
do jornal em Condeixa já inquieto espreito
a ver se vens dos lados de Pombal
oitavo duma fila atrás dum camião
coçando a barba gesto bem teu
com que disfarças o nervoso e a pressa


volto sem querer quando decerto
mais não queria voltar
encasacado anónimo de olho circunvago
Leiria num relance prego no fundo
apetecia parar ao pé de ti Fernando Assis Pacheco
cálido aceno do que morreu
conversarmos os dois sobre esse século esses
cafés com quatro mesas e matraquilhos na cave a cheirar a bolor
essas aulas a que faltávamos no último período para empatar cinco a cinco com
os varões todos torcidos
consta que desde então não fazes mais do que perder



Fernando Assis Pacheco

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Claribel Alegria (Cada vez)











CADA VEZ






Cada vez que te amo
vida y muerte
están presentes:
amanecer
y noche
paraíso
sepulcro.


Claribel Alegria



BIOGRAFIA
Poeta centroamericana nacida en Estelí, Nicaragua, en 1924.
Desde muy niña se trasladó y vivió con su familia en El Salvador y en 1943 viajó a EE.UU. donde obtuvo el título en Filosofía y Letras por la Universidad George Washington.
Después de residir por varios años en EE.UU., contrajo matrimonio y viajó por diferentes países, regresando a Nicaragua en 1985 para servir de baluarte en la reconstrucción de su país.
Ha publicado una veintena de libros de poesía y narrativa así como muchos testimonios históricos.
Es además traductora de algunos poetas norteamericanos y autora de la publicación «Nuevas voces de Norteamérica».
En 1978 obtuvo el premio Casa de las Américas por Sobrevivo, y en el año 2000, el Premio de Poesía de Autores Independientes.
De su obra, se destacan además, Anillo de Silencio, Vigilias, Umbrales, Fuga de Canto Grande, La mujer del río y su última producción, Saudade.



Fonte / Mais poemas

Muitos poemas mais

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12.6.06

Corpo presente (20)





ILUSÃO





Não agarramos as nuvens
Só farrapos de nuvens
Ilusões.
Não a árvore
Apenas a sombra.
Intangível.


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António Franco Alexandre (É mais fácil de longe imaginar)






É mais fácil de longe imaginar
o que seria ter-te aqui presente
do que seria ter-te e não saber
com que forma de corpo receber-te.
Talvez um amplo véu oriental
ou o brilho mental de uma armadura
me deixassem arder sem ser molesto
no lume horizontal de uma figura.
Se te vejo, já está o meu desejo,
enquanto estavas longe, satisfeito;
no teu olhar encontro tudo quanto
à altura de amor é mais perfeito.
E no entanto, perto, fico incerto
se não é melhor bem o que imagino.



ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE
Duende
(2002)



BIOGRAFIA
António Franco Alexandre nasceu em 1944, em Viseu, onde viveu até ir para Toulouse (França), estudar Matemática, aí vivendo até 1969.
Partiu depois para Harvard para continuar a estudar Matemática.
Regressou em 1971 a França, desta vez Paris.
Em 1975, com um doutoramento em Matemática, voltou a Portugal e foi convidado para leccionar Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Estreou-se como poeta ainda na década de sessenta, mas foi sobretudo a partir da publicação de "Sem Palavras nem Coisas" (1974) que a sua obra se afirmou, com um «discurso centralmente inovador», segundo Joaquim Manuel Magalhães, numa poesia que cruza diversas referências culturais.
Considerado por Óscar Lopes a melhor revelação poética dos anos oitenta, António Franco Alexandre surpreende por uma ostensiva negação dos valores lógicos do discurso: não se trata nem do não-sentido surrealista que encontra a sua ordem na própria desordem do inconsciente, nem do nonsense que procura pelo absurdo colocar em causa a possibilidade de comunicação da linguagem delida pelo seu uso quotidiano; mas, como propõe Óscar Lopes, de um “pré-sentido, ou pré-percepção, um breve indício de sentido”, que confere a impressão de “uma poesia do subliminar, mas de um subliminar que todavia acede à palavra, como configuração semi-inteligível e todavia flagrante”.
Em 1996 reuniu toda a sua poesia (com excepção do primeiro livro, "Distância") no volume "Poemas", e em 1999 publicou "Quatro Caprichos", ao qual foi atribuído o Prémio APE de Poesia 1999.
Franco Alexandre, que na poesia portuguesa contemporânea não se sabe situar – "Não sei quem é a minha família, não sei se existe..." – continua a tomar como influência maior os grandes textos bíblicos.
Foi para os poder ler que esteve diversas vezes em Jerusalém a estudar hebraico. "É uma cultura que hoje quase desconhecemos...", diz ele.
Obras: "A Distância" (1969), "Dos Jogos de Inverno", "Sem Palavras Nem Coisas" (1974), "Os Objectos Principais" (1979), "Visitação" (1982), "A Pequena Face" (1983), "As Moradas 1&2" (1987), "Oásis" (1992), "Poemas" (1996), "Les Objets Principaux" (1996), "Quatro Capricho" (1999).



Fonte (biografia) / Outros poemas

Mais poemas

Mais poemas

Mais poemas

Mais poemas

Mais poemas

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Um verso (15)






Um verso de Ruy Belo
(com dois de bónus):




Este céu passará e então
teu riso descerá dos montes pelos rios
até desaguar no nosso coração

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9.6.06

Jaime Sabines (Codiciada, proibida)





CODICIADA, PROHIBIDA....




Codiciada, prohibida,
cercana estás, a un paso, hechicera.
Te ofreces con los ojos al que pasa,
al que te mira, madura, derramante,
al que pide tu cuerpo como una tumba.
Joven maligna, virgen,
encendida, cerrada,
te estoy viendo y amando,
tu sangre alborotada,
tu cabeza girando y ascendiendo,
tu cuerpo horizontal sobre las uvas y el humo.
Eres perfecta, deseada.
Te amo a ti y a tu madre cuando estáis juntas.
Ella es hermosa todavía y tiene
lo que tú no sabes.
No sé a quién prefiero
cuando te arregla el vestido
y te suelta para que busques el amor.


Jaime Sabines





Cobiçada, proibida,
próxima estás, a um passo, feiticeira.
Te ofereces com os olhos a quem passa,
a quem te olha, madura, derramante,
a quem pede o teu corpo como uma tumba.
Jovem maligna, virgem,
acesa, fechada,
te estou vendo e amando,
teu sangue alvoroçado,
a cabeça girando e subindo,
o corpo horizontal sobre as uvas e o fumo.
És perfeita, desejada.
Te amo a ti como a tua mãe, quando estais juntas.
Ela é ainda formosa e tem
o que tu não sabes.
Não sei mesmo qual prefiro,
quando ela te ajeita o vestido
e te solta para que vás em busca do amor.


(Trad. A.M.)

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7.6.06

Corpo presente (19)





TUDO




Tudo o que seja
menos que tudo
- é pouco…



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Aquilino Ribeiro (Da neve)





A neve dava-nos a honra de nos visitar amiúde.

Muitas vezes, estávamos nós dobrados para os compêndios, sob o olhar de cérbero do Saraiva, e caíam inesperadamente dois flocos.

Vinham com requebro preguiçoso zebrando o ar plúmbeo, encostados à vidraça, dir-se-ia a espreitar-nos: estais lá?

E escapuliam-se para as couves galegas, que medravam em baixo para o consuetudinário caldinho verde da ceia, orelhudas como as melhores cerebrações da comunidade.

Figuravam de batedores.

Atrás daqueles rompia o pelotão.

E a breve trecho o céu tornava-se uma toalha turca, agitada ao arfar do vento, uma hora, duas horas, todo o dia, toda a noite, uma semana inteira com um ritmo para a eternidade.

Contra os peitoris a massa branca acumulava-se, fazia regueifas, enfuscava as vidraças.

Para lá do tapume lívido das janelas represava-se um oceano opaco, zinco em fusão.

Olhávamos de dentro para fora como se nos abafasse uma redoma.

De tempos a tempos, o Saraiva não resistia à tentação de chegar à janela em arrastados passos a gozar o espectáculo do grande mausoléu branco que sepultava o mundo.

Um mais gaiato atrevia-se a ir espreitar, ronceirinho, à sua ilharga.

E, encorajados pelo exemplo, lá iam todos.

Uma vez na vida, o Saraiva tinha de ser benévolo.



- AQUILINO RIBEIRO, Uma luz ao longe, IV.

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2.6.06

Fernando Assis Pacheco (Campo de Ourique, Lisboa)






CAMPO DE OURIQUE, LISBOA: LITANIA PARA OS DIAS VELOZES




Perdizes em A-do-Pinto ao pé de Serpa — para outros
braçadas de crawl como se despe a camisa do tédio — para outros
e passa tanto tempo num minuto


o jackpot erótico não dura sempre
crescem as filhas meio palmo em cada Verão
serei avô com dignidade? ou o chato do costume?
e passa tanto tempo num minuto


o meu voto é útil — dizem os oradores procurando-me na sala
estou enlatado entre uma dama e um guarda-costas
desejaria falar sobre as minorias de um
e passa tanto tempo


restam-me duas assoalhadas no fundo do poço?


faço versos para retardar o acidente coronário
podia fazer ginástica de manutenção que era o mesmo
disse de vez: ao diabo nome nos índices remissivos!
escrevam teses sobre a prenhez do referente
deixem-me olhar a chuva deixem-me
palitar os dentes - ut supra
não acerto com o Zeitgeist é escusado (e é inútil)
e passa tanto tempo num minuto



Fernando Assis Pacheco

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José António Almeida (As íris)





AS IRIS




Os corpos gémeos, peito a peito, num abraço
estreitámos a noite inteira sobre a cama:
no dia seguinte de manhã é que observei
que ele tinha os olhos cada um de sua cor.



JOSÉ ANTÓNIO ALMEIDA
O Rei de Sodoma
Lisboa, Presença
(1993)


Outro poema: A vila de Cuba em verso livre

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