24.12.24

José Agustín Goytisolo (Os reais motivos)




OS REAIS MOTIVOS DO CASO

 

Uma noite qualquer do verão passado
aquele homem quis acabar com tudo
e depois do jantar
bebeu mais de um litro de café 
para empurrar as pastilhas
de quatro ou cinco frascos de um sonífero
com que adormeceu normalmente,
chegando à morte sem dar conta. 

Só certos rumores tentaram
dar explicação a tal evento, 
garantindo-se que estava muito doente,
que uma prima o ameaçara
de contar tudo ao marido,
que os negócios não iam bem,
que sofria de insónia 
ou que a amante não lhe ligava nenhuma. 

Mas na verdade
as coisas eram bem mais simples, 
acontecendo que ele era um solitário,
que a vida deixou de sorrir-lhe,
que nessa noite fez um calor de abafar
e que ele era muito inteligente.
 

José Agustín Goytisolo 

(Trad. A.M.)

.

23.12.24

Marilyn Contardi (Lendo poemas)

 



LEYENDO POEMAS

 

Me he sentado a leer los poemas
el mate recién preparado en la mano. 

De golpe el viento abre la ventana
y me distrae. Me levanto a cerrarla. 

Insistiendo, la gata me llevó recién
a abrirle la puerta. La corriente
de aire arremolina mis pensamientos
y las hojas del libro,
todo está de nuevo mezclado y confuso. 

Una pareja de mariposas blancas
vuela sobre la hiedra. 

No dejo de mirarlas, no sea que
del vaivén de sus alas surja
de nuevo el hilo de mis pensamientos
dispersos.
 

Marilyn Contardi 

[Emma Gunst]  

 

Sentei-me a ler os poemas,
o mate na mão ainda fresco. 

De repente o vento abre a janela
e distrai-me, e eu levanto-me a fechá-la. 

A gata, insistindo, obriga-me entretanto
a abrir-lhe a porta. A corrente
de ar arremoinha-me os pensamentos
e as folhas do livro,
ficando tudo novamente misturado e confuso. 

Um par de borboletas brancas
voa por cima da hera. 

Não deixo de olhar para elas,
não vá surgir do vaivém das suas asas,
novamente, o fio dos meus pensamentos 
dispersos.
 

(Trad. A.M.)

 .

21.12.24

Pier Paolo Pasolini (Sexo)



Sesso, consolazione della miseria!
La puttana è una regina, il suo trono
è un rudere, la sua terra un pezzo
di merdoso prato, il suo scettro
una borsetta di vernice rossa:
abbaia nella notte, sporca e feroce
come un'antica madre: difende
il suo possesso e la sua vita.
I magnaccia, attorno, a frotte,
gonfi e sbattuti, coi loro baffi
brindisi o slavi, sono
capi, reggenti: combinano
nel buio, i loro affari di cento lire,
ammiccando in silenzio, scambiandosi
parole d'ordine: il mondo, escluso, tace
intorno a loro, che se ne sono esclusi,
silenziose carogne di rapaci.

Ma nei rifiuti del mondo, nasce
un nuovo mondo: nascono leggi nuove
dove non c'è più legge; nasce un nuovo
onore dove onore è il disonore...
Nascono potenze e nobiltà,
feroci, nei mucchi di tuguri,
nei luoghi sconfinati dove credi
che la città finisca, e dove invece
ricomincia, nemica, ricomincia
per migliaia di volte, con ponti
e labirinti, cantieri e sterri,
dietro mareggiate di grattacieli,
che coprono interi orizzonti.

Nella facilità dell'amore
il miserabile si sente uomo:
fonda la fiducia nella vita, fino
a disprezzare chi ha altra vita.
I figli si gettano all'avventura
sicuri d'essere in un mondo
che di loro, del loro sesso, ha paura.
La loro pietà è nell'essere spietati,
la loro forza nella leggerezza,
la loro speranza nel non avere speranza.
 

Pier Paolo Pasolini 

 

Sexo, consolação da miséria!
A puta uma rainha, seu trono
uma ruína, sua terra uma ração
de um prato merdoso, seu ceptro
uma bolsa de verniz encarnada:
ladra de noite, porca e feroz
como mãe das antigas: defende
sua posse e sua vida.
A chularia, em redor, aos magotes,
inchados e batidos, de bigodes
esticados, são os patrões,
os que mandam: combinam
no escuro, seus negócios de cem liras,
trocando sinais e palavras de ordem:
o mundo, excluído, cala-se em torno deles,
silenciosas carcaças de rapaces.

Mas nas recusas do mundo nasce
um mundo novo: nascem leis novas
onde já não há lei, nasce uma honra
nova onde a honra é a desonra…
Nascem poderes e nobrezas,
ferozes, nos montes de tugúrios,
nos lugares em que pensas
que a cidade acaba, mas onde ela
recomeça, inimiga, recomeça uma
e outra vez, com pontes
e labirintos, estaleiros e aterros,
para lá do marulho dos arranha-céus,
que cobrem o horizonte.

Na facilidade do amor
o miserável sente-se alguém,
ganha confiança na vida, a ponto
de desprezar quem tem outra vida.
Os filhos lançam-se à aventura,
seguros de estarem num mundo
que tem medo deles e do sexo.
A sua piedade é serem impiedosos,
a sua força reside na leveza,
a sua esperança nasce do desespero.


(Trad. A.M.)

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19.12.24

José Cereijo (Olha)




OLHA

 

Olha a velha porta de madeira
pela qual passaste tantas vezes.
Olha a calçada cinzenta que é o teu caminho,
e em que nem reparas ao pisá-la.
Olha ainda as nuvens desta tarde, 
as árvores adormecidas do passeio, 
os delicados jogos da luz.
Tudo o que acontece para ninguém,
o que é puro abstrair de si mesmo,
como acaso a vida.
Olha por uma vez estas coisas obscuras,
que hão-de perder-se quando as não olhares,
que não serão recordações.
 

José Cereijo 

(Trad. A.M.).

 .

18.12.24

Aurora Luque (Um periscópio com o horizonte)




UN PERISCOPIO CON EL HORIZONTE

 

Si frecuenté los libros, ciertos libros,
fue porque regalaban amistad, 
bálsamos para el mal de la rutina, 
no sé qué compañía en noches duras 
o en el apetecer acantilados, 
tertulias con mujeres y hombres de cien plazas,
consolación en horas 
de asombrosa miseria.  

Sí, frecuento los libros porque ellos me regalan 
formas apasionadas de amistad:
fabulosos veranos envasados, 
el amoroso arte de mirar 
con ojos de palabras, 
llaves para hospedarme en islas mudas 
desnuda cuerpo adentro 
y posibilidades de zarpar 
desde puertos antiguos y canallas 
con la tripulación de los poetas.  

Frecuentaré, abrazándolos, 
los libros que regalen su camaradería 
y un periscopio abierto con todo el horizonte.
 

Aurora Luque 

 

Se frequentei os livros, certos livros,
foi porque me ofereciam amizade,
bálsamos para o mal da rotina,
até companhia em noites duras
ou na atracção dos abismos,
tertúlias com mulheres e homens de cem praças,
consolação em horas
de assombrosa miséria. 

Sim, frequento os livros pois me oferecem
formas de amizade com paixão,
verões fabulosos,
a amorosa arte de olhar
com olhos de palavras,
chaves para me hospedar em ilhas mudas
desnuda corpo adentro
e possibilidades de zarpar 
de portos antigos e canalhas
com a tripulação dos poetas. 

Frequentarei, abraçando-os,
os livros que me dêem camaradagem
e um periscópio aberto com vtodo o horizonte.
 

(Trad. A.M.)

 .

16.12.24

Adélia Prado (Tempo)




TEMPO



A mim que desde a infância venho vindo,
como se o meu destino
fosse o exato destino de uma estrela,
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.
Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem,
amaria chamar-se Eliud Jonathan.
Neste exato momento do dia vinte de julho,
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
Quero a fome.


Adélia Prado

[Nesga de terra]

 .

14.12.24

Fabián Casas (Diários)




DIARIOS


Los días son poderosos.
Pueden traerte el sol
después de una mañana ventosa,
la lista del supermercado
o las bajas de la próxima guerra,
una cartuchera infantil
repleta de objetos extraños:
amor y voluntad
ahí dónde sólo crece el rencor.
 

Fabián Casas


Os dias são incríveis,
podem trazer-te o sol
depois de uma manhã de vento,
a lista do supermercado
ou as baixas da próxima guerra,
uma mochila infantil
carregada de objectos estranhos,
como amor e vontade
ali onde só medra o rancor.

(Trad. A.M.)

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