16.1.25

Francisco J. Craveiro Carvalho (Tercetos-I)




Na caixa do supermercado
ao ver que o reconhecera
deu-me um esgar de ex-ministro.

*

(Grande turismo) 

Sem respeito pelas dimensões 
cheia sempre até ao fecho
fui-me abaixo num voo doméstico. 

* 

(Cartão de cidadão) 

Dez anos mais carregados
no meu cartão de cidadão.
Vamos ver se ainda os gasto. 

* 

(Dizia) 

Nunca lamentaria trocar 
dez anos da sua vida por
um ataque fatal de coração. 

* 

Nas ruas trotinetas
para os jovens. Para os velhos
andarilhos nos corredores.

 

FRANCISCO J. CRAVEIRO CARVALHO
Abilene
(2023)




>>  Triplo V (vários p/ traduções) / Correio do Porto (idem) / Relâmpago (9p)

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14.1.25

Francisco Caro (Poética do cuidado)




POÉTICA DEL CUIDADO

 

Que la palabra limpie heridas,
sea bastón seguro para unas piernas débiles,
lente para esos ojos
a quien la niebla oculta su horizonte,
altavoz de gargantas sin campana,
pañuelo de esas lágrimas
que no esperan volver a ver el mar,
y cuchara que nunca titubea
ante bocas cerradas negándose a la vida.
 
Y que el hombre que cargue a sus espaldas
su mochila repleta de bastones y lentes,
altavoces, pañuelos y cucharas,
haga de sus silencios
escuela de secretos
y trono de humildad.


Francisco Caro 

 

Que a palavra limpe as feridas,
seja bastão seguro para algumas pernas fracas,
lente para aqueles olhos
a que a névoa tira a vista,
altifalante de gargantas sem sino,
lenço dessas lágrimas
que não esperam chegar ao mar,
e colher que não hesita
diante de bocas fechadas
que se negam para a vida.

E que o homem que leve às costas
a mochila com as lentes e bastões,
altifalantes, lenços e colheres,
de seus silêncios faça
escola de segredos
e trono de humildade.


(Trad. A.M.)

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13.1.25

Fernando Beltrán (Os outros)





LOS OTROS, LOS DEMÁS, ELLOS


El serbio que destruye un colegio soy yo,
el rwandés que mata a machetazos soy yo,
el terrorista que coloca la bomba soy yo,
el hombre que dispara en un hiper de Texas soy yo,
el judío que bombardea un campo de refugiados soy yo,
el palestino que clama en el desierto soy yo,
el albanés que huye en un barco soy yo,
el marroquí que se ahoga al cruzar el estrecho soy yo,
el guerrillero que aún sueña en El Salvador soy yo,
el bebé somalí que se muere de hambre soy yo,
el médico sin fronteras soy yo,
el general que apunta soy yo,
el empresario que emite residuos radiactivos soy yo,
el enamorado que mata por amor soy yo,
el loco que muere por amor soy yo,
el político sin escrúpulos soy yo,
el funcionario corrupto soy yo,
el funcionario honrado soy yo,
el hombre capaz de lo mejor,
el hombre capaz de lo peor,
el hombre a secas, yo.

 

Fernando Beltrán

 

 

O sérvio que destrói um colégio sou eu,
o ruandês que mata à catanada sou eu,
o terrorista que põe a bomba sou eu,
o homem que dispara num hiper do Texas sou eu,
o judeu que bombardeia um campo de refugiados sou eu,
o palestino que clama no deserto  sou eu,
o albanês que foge num barco sou eu,
o marroquino que se afoga a atravessar o estreito sou eu,
o guerrilheiro que ainda sonha em Salvador sou eu,
o bébé somali que morre de fome sou eu,
o guerrilheiro que sonha ainda em Salvador sou eu,
o médico sem fronteiras sou eu,
o general que aponta sou eu,
o empresário de resíduos radioactivos sou eu,
o apaixonado que mata por amor sou eu,
o louco que morre por amor sou eu,
o político sem escrúpulos sou eu,
o funcionário corrupto sou eu,
o funcionário honrado sou eu,
o homem capaz do melhor,
o homem capaz do pior,
o homem simplesmente, eu.


(Trad. A.M.).

11.1.25

Sebastião da Gama (Pelo sonho é que vamos)




Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?

Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos,
basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

─ Partimos. Vamos. Somos.


Sebastião da Gama

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9.1.25

Karmelo C. Iribarren (Melhor assim)




MELHOR ASSIM

 

É claro
que há imensas coisas
que ainda te não disse.
O que esperavas?
Se te dissesse tudo de uma vez,
num ataque freudiano de sinceridade,
não só não me acreditavas
como além disso passarias a olhar-me
como um tipo perigoso.
Melhor assim. Melhor que penses
que tenho muita vida interior
e que te esperam
momentos irrepetíveis.

 

Karmelo C. Iribarren

(Trad. A.M.)

 .

8.1.25

Felipe Benítez Reyes (O esquisso na água)




EL DIBUJO EN EL AGUA 

 

Bien sabes que estos años pasarán,
que todo acabará en literatura:
la imagen de las noches, la leyenda
de la triunfante juventud y las ciudades
vividas como cuerpos. 

Que estos años
pasarán ya lo sabes, pues son tuyos
como una posesión de nieve y niebla,
como es del mar la bruma o es del aire
el color de la tarde fugitivo:
pertenencias de nadie y de la nada
surgidas, que hacia la nada van:
ni el mismo mar, ni el aire, ni esa bruma,
ni un crepúsculo igual verán tus ojos. 

Un dibujo en el agua es la memoria,
y en sus ondas se expresa el cadáver del tiempo. 

Tú harás ese dibujo. 

Y de repente
 tendrás la sombra muerta
 del tiempo junto a ti.
 

Felipe Benítez Reyes 

 

Sabes bem que passarão estes anos
e acabará tudo em literatura,
a imagem das noites, a lenda
da juventude triunfante e as cidades
vividas como corpos. 

Que estes anos
passarão sabes já, pois são teus
como coisa de neve e névoa,
como é do mar a bruma ou é do ar
a cor fugitiva da tarde,
pertenças de ninguém, surgidas do nada
e ao nada destinadas:
nem o próprio mar, nem o ar, nem a bruma,
nem um crepúsculo assim serão pasto de teus olhos. 

Um esquisso na água é a memória
e em suas ondas se expressa o cadáver do tempo. 

Tu farás esse esquisso. 

E de repente
terás a sombra morta
do tempo a teu lado.
 

(Trad. A.M.)

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6.1.25

Sebastião Alba (O limite diáfano)




O LIMITE DIÁFANO

 

Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.

Sebastião Alba

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