Às vezes trazes para casa uma tristeza
velha, feita de cansaços que apenas supõe
quem tem o privilégio de te amar.
Despes o casaco, apertas contra o rosto a Mia,
a tua mão procura às cegas o meu ombro,
e nas tuas pestanas descidas leio um apelo
a que nem sempre sou capaz de responder.
A tua indefensão ocupa o seu lugar à mesa,
quase sem ânimo para segurar o garfo.
Eu tento animar-te com as últimas desgraças
do mundo, dou-te um resumo do telejornal,
faço-te notar que a sopa está quente, vou
depressa ao café comprar-te chocolates,
mergulho-os em vinagre, uno as gatas
pela cauda e digo-te: anda ver como termina
um casamento, deixo cair na sanita o comando
do vídeo, ameaço convidar-te para o meu funeral.
Tantas faço que consigo, finalmente,
transformar em zanga a tristeza que trazias.
E enquanto tu me chamas inútil, e palerma,
eu sorrio interiormente, noto com agrado
a contracção no teu pescoço, sou eu próprio
quem te guia até às facas na gaveta, e nem sequer
me desvio quando vejo a garrafa de Favaios
a voar na direcção desta minha tão salobre,
tão esperta cabeça, filha do ardil e da penúria.
José Miguel Silva
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