27.2.08

Olhar (17)









Albergaria da Serra

(Freita)

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Ruy Belo (O Portugal futuro)



(Foto)




O PORTUGAL FUTURO





o portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro





Ruy Belo
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25.2.08

Eugénio de Andrade (O sal da língua)






O SAL DA LÍNGUA

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Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

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EUGÉNIO DE ANDRADE
O sal da língua



Fonte: Fundação Eugénio A.
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24.2.08

Jaime Sabines (Algo sobre a morte do velho Sabines)




(Algo sobre a morte do velho Sabines…)


PRIMERA PARTE


I

Déjame reposar,
aflojar los músculos del corazón
y poner a dormitar el alma
para poder hablar,
para poder recordar estos días,
los más largos del tiempo.

Convalecemos de la angustia apenas
y estamos débiles, asustadizos,
despertando dos o tres veces de nuestro escaso sueño
para verte en la noche y saber que respiras.
Necesitamos despertar para estar más despiertos
en esta pesadilla llena de gentes y de ruídos.

Tu eres el tronco invulnerable y nosotros las ramas,
por eso es que este hachazo nos sacude.
Nunca frente a tu muerte nos paramos
a pensar en la muerte,
ni te hemos visto nunca sino como la fuerza y la alegría.

No lo sabemos bien, pero de pronto llega
un incesante aviso,
una escapada espada de la boca de Dios
que cae y cae y cae lentamente.
Y he aquí que temblamos de miedo,
que nos ahoga el llanto contenido,
que nos aprieta la garganta el miedo.
Nos echamos a andar y no paramos
de andar jamás, después de medianoche,
en ese pasillo del sanatorio silencioso
donde hay una enfermera despierta de ángel.
Esperar que murieras era morir despacio,
estar goteando del tubo de la muerte,
morir poco, a pedazos.

No ha habido hora más larga que cuando no dormías,
ni túnel más espeso de horror y de miseria
que el que llenaban tus lamentos,
tu pobre cuerpo herido.


Jaime Sabines

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21.2.08

W. B. Yeats (Se eu tivesse)








SE EU TIVESSE...





Se eu tivesse as sedas bordadas do céu,
com bainhas de luz de ouro e de prata,
as sedas azuis e sombrias e escuras,
da noite e da luz e da meia-luz,


deitava-as todas aos teus pés.


Mas eu sou pobre e só tenho os meus sonhos.
Deitei-os todos aos teus pés.
Pisa com cuidado,
é nos meus sonhos que estás a pisar.



W. B. Yeats
(trad. Miguel Esteves Cardoso)




Lugares: Alguma-poesia (bio+2p) / Poets.org (13p) / Arlindo Correia (3+1p) / Wikipedia / Online.Lit. (ficção+teatro+contos+pp. muitos) / Poetry-archive (pp. muitos) / Sítio oficial (tudo+algo)


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19.2.08

José Emílio Pacheco (Miseria de la poesía)





MISERIA DE LA POESÍA






Me pregunto qué puedo hacer contigo
Ahora que han pasado tantos años,
Cayeron los imperios,
La creciente arrasó con los jardines,
Se borraron las fotos
Y en los sitios sagrados del amor
Se levantan comercios y oficinas
(con nombres en inglés naturalmente).




Me pregunto qué puedo hacer contigo
Y hago un pseudo poema
Que tú nunca leerás
- o si lo lees,
En vez de una punzada de nostalgia,
Provocará tu sonrisita crítica.



José Emílio Pacheco







Pergunto-me que posso fazer contigo
agora, tantos anos passados,
caíram os impérios,
a maré arrasou os jardins,
apagaram-se as fotos
e nos lugares sagrados do amor
erguem-se lojas e escritórios
(com nomes ingleses, naturalmente).




Pergunto-me que posso fazer contigo
e faço um pseudo poema
que tu nunca lerás
- ou, se leres,
em vez de uma ponta de saudade,
despertará o teu risinho crítico.


(Trad. A.M.)



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Miguel Torga (Dormiam como lages)






No retalho da encosta vindimada o luar avolumava a tristeza das videiras sem uvas.

As vides erguiam para o céu as varas vazias, desfolhadas, como num protesto.

A terra pisada e babada de sumo tinha também um ar violado e descomposto.

Ao lado do talhão que se seguia, inteiro, túmido e fechado, quase todo de bastardo com bagos unidos e perfumados, o que fora colhido parecia um bocado maldito do mundo, por onde a desgraça passara.

À medida que as navalhas avançavam, as vinhas iam perdendo a graça, a força e a virgindade.

E com esta desolação morria também um pouco da alegria dos vindimadores, que chegavam da Montanha sem sono, a cantar e a dançar, e que agora dormiam como lajes.



- MIGUEL TORGA, Vindima, VI, princípio.
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17.2.08

Mário Cesariny (Discurso - XVII)





DISCURSO SOBRE A REABILITAÇÃO DO REAL QUOTIDIANO (xvii)





eu em 1951 apanhando (discretamente) uma beata
(valiosa)
num café da baixa por ser incapaz coitados deles
de escrever os meus versos sem realizar de facto
neles, e à volta sua, a minha própria unidade
- fumar, quere-se dizer.




esta, que não é brilhante, é que ninguém esperava
ver num livro de versos. Pois é verdade. Denota
a minha essencial falta de higiene (não de tabaco)
e uma ausência de escrúpulo (não de dinheiro)
notável.



o Armando, que escreve à minha frente
o seu dele poema, fuma também.
fumamos como perdidos escrevemos perdidamente
e nenhuma posição no mundo (me parece) é mais alta
mais espantosa e violenta incompatível e recon-
fortável
do que esta de nada dar pelo tabaco dos outros
(excepto coisas como vergonha, naturalmente,
e mortalhas)




(que se saiba) é esta a primeira vez
que um poeta escreve tão baixo (ao nível das priscas
dos outros)
aqui, e em parte mais nenhuma, é que cintila o tal
condicionalismo
de que há tanto se fala e se dispõe
discretamente (como quem as apanha).




sirva tudo de lição aos presentes e futuros
nas taménidas (várias) da poesia local.
Antes andar por aí relativamente farto
antes para tabaco que para cesariny
(mário) de vasconcelos.




MÁRIO CESARINY
manual de prestidigitação
assírio e alvim (1981)
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13.2.08

Um verso (41)


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Um verso de J.L. Panero
(filho de Panero, irmão de Panero):



Resgatando palavras, pequenas ilhas de lucidez ou ternura.



Juan Luis Panero
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Olhar (16)










Ceci n'est pas un chien...


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11.2.08

Adília Lopes (Meteorológica)









METEOROLÓGICA
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para o José Bernardino
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Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter
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Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas
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Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)
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A vida
é livro
e o livro
não é livre
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Choro
chove
mas isto é
Verlaine
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Ou:um dia
tão bonito
e eu
não fornico




Adília Lopes

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Fontes: Alguma-poesia (perfil+6p) / DGLB (bio+biblio+excertos+linques) / Arlindo-Correia (11p+linques+crítica+entrevista, etc.)
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Julio Cortázar (A un general)






A UN GENERAL




Región de manos sucias de pinceles sin pelo
de niños boca abajo de cepillos de dientes


Zona donde la rata se ennoblece
y hay banderas inhumanas y cantan himnos
y alguien te prende, hijo de puta,
una medalla sobre el pecho


Y te pudres lo mismo.


Julio Cortázar



Fonte

8.2.08

Alberto Pimenta (Fastos III)









FASTOS III





artur hipólito morreu com 62 an
os, 20 anos após ter feito 42, mas
na altura quem diria?


heitor fragoso morreu atropelado.
foi levado para o hospital, mas es
queceram-se duma parte do corpo
no local do acidente.


manuel testa morreu sem se ter c
onseguido habituar a este modo
de mal-estar no mundo.


arnaldo rodrigues caiu a um bur
aco da canalização e nunca mais
foi visto.


jeremias cabral pôs termo à exist
ência por motivos desconhecidos.


zeca gomes morreu em defesa da
pátria mas a pensar noutra coisa.


antónio de oliveira morreu igual
a si mesmo: triste sinal dos te
mpos!


bernardo leite pôs-se a pensar na
morte e não conseguiu voltar a
trás.


ivo gouveia tinha uma agência f
unerária e escolheu para si um
caixão representativo.


guilherme silva fechou-se no sót
ão, para morrer num lugar eleva
do.


luís dimas respirava saúde, agora
respira um hálito de eternidade.


antónio garcia, o coveiro, teve u
ma síncope e caiu dentro da cov
a que estava a abrir.


bento nogueira engasgou-se com
um pedaço de carne e desapare
ceu do nosso convívio.


paiva de jesus enforcou-se.


joão baptista viu o cunhado lev
antar-se do caixão e teve uma sí
ncope.


lourenço pinheiro estava a ver a
trovoada e um relâmpago entrou
lhe por um olho e saiu-lhe pelo
outro.


jorge velez de castro finou-se
após uma longa vida de sacrifí
cios, toda dedicada ao bem-comu
m. e foi assim: depois de ter inge
rido o seu sumo de laranja, foi c
onduzido para a cadeira de rep
ouso pelo enfermeiro de confian
ça. nela se conservou, de boca en
treaberta e olhos fechados, até
às onze horas. às onze horas, o e
nfermeiro de confiança aproxim
ou-se com a intenção de o condu
zir ao banho. pondo delicadamen
te a mão nas costas da cadeira,
disse: são horas do banho, senhor
director. como este não desse si
nal de ter ouvido, o enfermeiro
de confiança, com a costumada jo
vialidade, debruçou-se e repetiu:
são horas do banho, senhor direc
tor. posto isto, empurrou a cadei
ra até ao balneário, passou um br
aço pelos rins outro por baixo d
os joelhos do director, e assim o
levou para a água, só então se da
ndo conta de que ele já não vivia.


zé maria, o peidolas, foi expulso
da vida pela autoridade compet
ente.


joão gaspar foi um nobre e val
oroso homem que morreu heroi
camente no campo da honra. p
az à sua alma.


raul santos deitou-se um dia e p
or mais que o sacudissem nunca
mais se levantou.


alfredo penha caiu tão desastrada
mente da cama que nem é possív
el dar pormenores da sua morte.


joaquim perestrelo morreu no me
io da missa, qual quê! ainda a m
issa não ia a metade!


sousa dias morreu de pé, mas en
terraram-no deitado, como toda a
gente.




Alberto Pimenta
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Fontes: Wikipedia / DGLB (bio+biblio) / P.Vercial (análise Carlos Nogueira - 16pp.)

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4.2.08

António Osório (Fala o arrumador de automóveis)











FALA O ARRUMADOR DE AUTOMÓVEIS





Assustado com a miséria e estes anos,
pouco espero de Deus e dos homens.
Não mendigo, olho de soslaio, adivinho,
sem gratidão guardo no bolso os óbolos.
E fui pescador, depois faroleiro: longe
deitava a alma, relâmpago
sobre falésias, em estrelas tocava,
a sirene era o meu grito de amor.
Transluzente e distante e bom
como clarões de um farol nunca foi fácil:
algo se afundava debaixo de mim,
desconhecida culpa. Odeio, sim, odeio
este parque onde chuva e sol impõem as mãos
e na pele penetram sem bálsamo.
Primeiro a luxúria, depois vinho,
escuridão. No fundo de um poço
cujas paredes ressumam lágrimas e avencas.
Custa ganhar a vida e perdê-la.
Tudo foi defraudado, sou eu
- eu ou alguém por mim- quem aperta
desde a infância o nó que me estrangula.





António Osório







Miguel Torga (Sagres)





Sagres é hoje um ímpeto parado, a seta indicadora dum rumo perdido, real e simbolicamente.

Lugar dum sentido histórico perpetuado pela fatalidade da duração natural, fragão áspero onde a vida não se resigna a renunciar, ali está, retesado num gesto inútil e pertinaz, envolto num burel de cardos, cilícios com que a si próprio se macera.



- MIGUEL TORGA, Portugal (Sagres).
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1.2.08

Olhar (15)








Gondramaz

- Serra da Lousã

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(que é em M.Corvo)

Jaime Sabines (He aqui que tú estás sola)





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He aquí que tú estás sola y que estoy solo.
Haces tus cosas diariamente y piensas
y yo pienso y recuerdo y estoy solo.
A la misma hora nos recordamos algo
y nos sufrimos. Como una droga mía y tuya
somos, y una locura celular nos recorre
y una sangre rebelde y sin cansancio.
Se me va a hacer llagas este cuerpo solo,
se me caerá la carne trozo a trozo.
Esto es lejía y muerte.
El corrosivo estar, el malestar
muriendo es nuestra muerte.
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Yo no sé dónde estás. Yo ya he olvidado
quién eres, dónde estás, cómo te llamas.
Yo soy sólo una parte, sólo un brazo,
una mitad apenas, sólo un brazo.
Te recuerdo en mi boca y en mis manos.
Con mi lengua y mis ojos y mis manos
te sé, sabes a amor, a dulce amor, a carne,
a siembra, a flor, hueles a amor, a ti,
hueles a sal, sabes a sal, amor, y a mí.
(…)


Jaime Sabines
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