30.10.07

Juan Luis Panero (A la mañana siguiente)






A LA MAÑANA SIGUIENTE CESARE PAVESE NO PIDIÓ EL DESAYUNO






Solo bajó del tren,
atravesó solo la ciudad desierta,
solo entró en el hotel vacío,
abrió su solitaria habitación
y escuchó con asombro el silencio.
Dicen que descolgó el teléfono
para llamar a alguien,
pero es falso, completamente falso.
No había nadie a quien llamar,
nadie vivía en la ciudad, nadie en el mundo.
Bebió el vaso, las pequeñas pastillas,
y esperó la llegada del sueño.
Con cierto miedo a su valor
- por vez primera había afirmado su existencia -
tal vez curioso, con cansado gesto,
sintió el peso de sus párpados caer.
Horas después - una extraña sonrisa dibujaba sus labios -
se anunció a sí mismo, tercamente,
la única certidumbre que al fin había adquirido:
jamás volvería a dormir solo en un cuarto de hotel.





JUAN LUIS PANERO
Los trucos de la muerte (1975)






Cesare Pavese: Biografia

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25.10.07

Um verso (39)





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Um verso do Assis
(compridito, já disse?…):











Porque eu amo-te, isto é, dou cabo da escuridão do mundo.




Fernando Assis Pacheco



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Herberto Hélder (A carta da paixão)












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A CARTA DA PAIXÃO





Esta mão que escreve a ardente melancolia da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde se formam as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se
alumia: a língua alumia-se.
O mel escurece dentro da veia jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem,
nenhum astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco
luminoso, arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como
um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que
crescem nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas



Herberto Hélder




Fonte: nEscritas


16.10.07

António Osório (A raiz afectuosa)






A RAIZ AFECTUOSA





Com os anos
a pouco e pouco
a raiz afectuosa
penetrou
no fundo da terra
até chegar ao mais pequeno
e mais antigo
veio de lágrimas.




António Osório





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Miguel Torga (As videiras choram de frio)







Doiro, rio e região, é certamente a realidade mais séria que temos.

Nenhum outro caudal nosso corre em leito mais duro, encontra obstáculos mais encarniçados, peleja mais arduamente em todo o caminho; nenhuma outra nesga de terra nossa possui mortórios tão vastos, tão estéreis e tão malditos.

Basta sentir no corpo, uma só vez, a dentada daquelas fragas que devolvem ao céu, agressivamente, a luz recebida, ou molhar os pés na levada barrenta que o garrote dos espinhaços tenta estrangular, para se ver que não há desgraça maior dentro da pátria, nem semelhante via-sacra de meditação.

De ponta a ponta do ano nenhuma bênção possível mitiga a crucificação do sofrimento.

No verão, um calor de forja caldeia o xisto e transforma a corrente numa alucinação de lava a mover-se; no Inverno, até os olhos das videiras choram de frio.




- MIGUEL TORGA, Portugal (O Doiro).


9.10.07

Corpo presente (35)









ACACIANA








È terrível a morte,
transforma uma pessoa
num monte de esterco.




É terrível a morte,
definitiva,
sem remédio.



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Jaime Sabines (Ainda a morte da mãe)





(Ainda a morte da mãe…)




XVII




Lloverás en el tiempo de lluvia,
harás calor en el verano,
harás frío en el atardecer.
Volverás a morir otras mil veces.




Florecerás cuando todo florezca.
No eres nada, nadie, madre.




De nosotros quedará la misma huella,
la semilla del viento en el agua,
el esqueleto de las hojas en la tierra.
Sobre las rocas, el tatuaje de las sombras,
en el corazón de los árboles la palabra amor.




No somos nada, nadie, madre.
Es inútil vivir
pero es más inútil morir.




JAIME SABINES
Maltiempo (1972)







Choverás em tempo de chuva,
farás calor no verão,
farás frio no entardecer.
Voltarás a morrer mil vezes.




Florescerás quando tudo floresça.
Não és nada, mãe, ninguém.




De nós ficará o mesmo rasto,
a semente do vento na água,
o esqueleto das folhas na terra.
Sobre as rochas, a tatuagem das sombras,
no coração das árvores a palavra amor.




Não somos nada, mãe, ninguém.
É inútil viver
mas é mais inútil ainda morrer.




(Trad. A.M.)



2.10.07

Olhar (11)





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Gosende
(Montemuro)
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Adélia Prado (A boa morte)





A BOA MORTE





Dona Dirce chorava a morte da filha
e com sincera dor o fazia,
estendendo a mão em direção ao café
que a irmã da morta servia.
Eu prestava atenção em Dona Dirce
que escutava Alzirinha admirada:
...o médico me proibiu expressamente...
Alguém pôs a cara na porta procurando Dona
Dirce:
A senhora sabe a placa da caminhonete do Artur?
Alzirinha não queria café, por motivo de regime,
era possível que Artur não fosse avisado a tempo.
A adolescente sardenta, visivelmente feliz,
chorava a morte da mãe.
Também quis chorar,
por diversos motivos,
mas era impossível ali,
celebrava-se a vida
sob caras contritas,
sob os véus da morte,
mais que sete.
A cada desnudamento
ela própria cobria-se
visivelmente pra nos proteger:
Ninguém quer mais café não?
Modesta a morte, companheira,
nos consolando, quase da família.
Lucinda virou santa.
Não contei a ninguém,
pra não amolar a tristeza.




Adélia Prado






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