26.4.07

Adélia Prado (Casamento)





CASAMENTO





Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.



ADÉLIA PRADO
Terra de Santa Cruz
(1981)


[Alguma poesia]

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Corpo presente (32)





BICHOS-1








O falcão, já velho:


“Ainda voo, às vezes. Mas é só para ver a vista”…

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24.4.07

Olhar (3)





Paúl de Arzila

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Coitado do Jorge (35)





A MORTE DA MÃE





- Então a tua mãe morreu?
- Foi, agora anda a aprender para anjo da guarda…
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Carlos Drummond de Andrade (As sem-razões do amor)











AS SEM-RAZÕES DO AMOR













Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.


Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.


Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.


Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.




Carlos Drummond de Andrade


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19.4.07

Um verso (33)





Um verso de David
(aliás, três, qual é o problema?):








“Nós temos cinco sentidos:
são dois pares e meio de asas.
- Como quereis o equilíbrio?”



18.4.07

Ruy Belo (Contigo aprendi)





Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhaste súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já a minha única viúva
Não posso dar-te mais do te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente



Ruy Belo










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16.4.07

Yvette Centeno (A árvore)







A ÁRVORE




Chegaste
com a tua tesoura de jardineiro
e começaste a cortar:
umas folhas aqui e ali
uns ramos
que não doeram...
Eu estava desprevenida
quando arrancaste a raiz.



Yvette Centeno







10.4.07

Fernão Lopes (Querençoso)








(Querençoso…)













ElRei Dom Fernando era gramdioso de voontade, e queremçoso daquello que todolos homeens naturallmente desejam, que he acreçentamento de sua boa fama, e homrroso estado: e quamdo vio que sem seu requerimento o mundo lhe offerecia caminho assi aazado pera cobrar tam gramde homrra, sem mais esguardando contrairos que avijnr podessem, determinou em toda maneira de seguir este feito e levar adeante; veemdo em sua voontade tantas ajudas pera ello prestes, que lhe pareçeo ligeira cousa toda Castella seer sua em pouco tempo.




- FERNÃO LOPES, Crónica do Senhor Rei Dom Fernando, Nono Rei destes Regnos, cap. XXVI.


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Juan Luis Panero (Um velho em Veneza)





UM VELHO EM VENEZA





Em Veneza, velho e envelhecido, quase mudo,
rodeado de livros, de solidão, de gatos,
o poeta Ezra Pound
falou, num breve, muito breve encontro, com Grazia Livi.
Comentou-lhe, sem autocompaixão e sem desprezo,
secamente, com voz entrecortada:
«No fim penso que não sei nada.
Não tenho nada para dizer, nada.»
Se depois de tão alto exemplo, de tão clara sentença,
ainda continuo a escrever e risco palavras no fumo,
não é, que a morte me livre,
por bastardo interesse ou absurda vaidade,
mas apenas por uma simples razão,
porque não conheço outro meio, a não ser o suicídio
- desnecessário é um poema, como um cadáver -
para dar testemunho de nada a ninguém,
do mundo que contemplo, desta vida,
do seu horror gasto e quotidiano.
Que o velho Pound, na sua cova,
me perdoe por ligar o seu nome
a estas sórdidas palavras desesperadas.


Juan Luis Panero


[Poesia ilimitada]


>> A media voz (bio+25p) /  Portal de poesia (3-linques-3p)

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Coitado do Jorge (34)





(Sábio, esse Sabines…)





Há um modo, amor meu, de me fazeres completamente feliz:
Morrendo.



Jaime Sabines


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2.4.07

Paul Valéry (Ser lido)





Aprecio mais ser lido várias vezes por um só que uma só vez por vários.
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Paul Valéry
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Um verso (32)









Um verso de Neruda
(que também não deixou poucos):





Quero fazer contigo o que a Primavera faz com as cerejeiras.


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Amalia Bautista (Duas gotas de suor)





DOS GOTAS DE SUDOR





I

Hay alguien en el mundo, no sé dónde,
o sí lo sé, pero mejor lo olvido,
que me desnuda sólo con mirarme
y me sueña vestida de princesa.
Alguien con quien no puedo resistirme
a arder bajo la ducha.
Alguien con quien resulta inevitable
sudar en un iglú.




II

Lloro cuando no estás, sudo contigo.
Mi sudor y mi llanto son iguales,
tenaces y salados,
como el mar de mis sueños y el océano
inabarcable de mis pesadillas.
No pido demasiado, pero me gustaría
sudar un poco más y llorar menos.



AMALIA BAUTISTA, Estoy ausente

Pre-Textos, Valencia, 2004






I

Há alguém no mundo, não sei onde,
ou antes sei, mas prefiro esquecê-lo,
que me despe só com um olhar
e me sonha vestida de princesa.
Alguém com quem não posso resistir
a arder debaixo do duche.
Alguém com quem se torna inevitável
suar dentro de um iglu.




II

Choro quando não estás, suo contigo.
O suor e as lágrimas são iguais,
tenazes e salgados,
como o mar dos meus sonhos e o oceano
abissal dos meus pesadelos.
Não quero pedir demasiado, mas gostava
de suar um pouco mais e chorar menos.




(Versão: at)




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