31.10.16

João Guimarães Rosa (Projetos)





Porque ele tinha me estatutado os todos projetos.
Como estava reunindo e pervalendo aquela gente, para sair pelo Estado acima, em comando de grande guerra.
O fim de tudo, que seria: romper em peito de bando e bando, acabar com eles, liquidar com os jagunços, até o último, relimpar o mundo da jagunçada braba.
– “Somente que eu tiver feito, siô Baldo, estou todo: entro direito na política!”


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)

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Jorge Luis Borges (O nosso caso)





LO NUESTRO


   
     Amamos lo que no conocemos, lo ya perdido.
     El barrio que fue las orillas.
     Los antiguos, que ya no pueden defraudarnos,
     porque son mito y esplendor.
     Los seis volúmenes de Schopenhauer,
     que no acabaremos de leer.
     El recuerdo, no la lectura, de la segunda parte del Quijote.
     El Oriente, que sin duda no existe para el afgano,
     el persa o el tártaro.
     Nuestros mayores, con los que no podríamos conversar
     durante un cuarto de hora.
     Las cambiantes formas de la memoria,
     que está hecha de olvido.
     Los idiomas que apenas desciframos.
     Algún verso latino o sajón, que no es otra cosa que un hábito.
     Los amigos que no pueden faltarnos,
     porque se han muerto.
     El ilimitado nombre de Shakespeare.
     La mujer que está a nuestro lado y que es tan distinta.
     El ajedrez y el álgebra, que no sé.


Jorge Luis Borges





Amamos o que não conhecemos, o já perdido.
O bairro que já foi arredor.
Os antigos, que não podem já desiludir-nos,
porque são agora mito e esplendor.
Os seis volumes de Schopenhauer,
 que não acabaremos de ler.
A lembrança, não a leitura, da segunda parte do Quixote.
O Oriente, que não existe, é claro, para o afegão,
para o persa ou para o tártaro.
Os nossos ascendentes, com quem não seríamos capazes
de conversar um quarto de hora.
As cambiantes formas da memória,
que é feita de esquecimento.
As línguas que mal entendemos.
Um verso ou outro, latino ou saxónico, que
não é mais do que um hábito.
Os amigos que não podem falhar-nos,
porque estão mortos.
O ilimitado nome de Shakespeare.
A mulher que está a nosso lado e que é tão diferente.
O xadrez e a álgebra, que eu desconheço.


(Trad. A.M.)

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30.10.16

José Paulo Paes (Lisboa, aventuras)





Lisboa: aventuras


tomei um expresso
                    cheguei de foguete
subi num bonde
                    desci de um elétrico
pedi cafezinho
                    serviram-me uma bica
quis comprar meias
                    só vendiam peúgas
fui dar à descarga
                    disparei um autoclisma
gritei "ó cara!"
                     responderam-me "ó pá!"

                     positivamente
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá



José Paulo Paes

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29.10.16

Joan Margarit (Cena)






ESCENA



Una pareja joven en la barra.
Ella lleva los labios muy pintados,
las manos de uñas largas, perfiladas.
Él es ágil y fuerte, con un fondo
de ternura y los ojos negros de gavilán.
Se están mirando, hablan en voz baja,
sonríen en silencio y se acarician.

De la barra a las mesas, unos pasos tan sólo.
Allí, en una de ellas, se sienta una pareja
–una vieja y un viejo– que callan sin mirarse.
Mientras, afuera pasa una ambulancia
igual que la trompeta del Juicio.


Joan Margarit






Um par jovem ao balcão.
Ela de lábios muito pintados,
mãos de unhas compridas, arranjadas.
Ele forte e ágil, com um fundo
de ternura e olhos negros de gavião.
Olham-se, falam em voz baixa,
acariciando-se e sorrindo em silêncio.
Do balcão às mesas, apenas uns passos.
Ali, numa delas, senta-se um par, calado
 – uma velha e um velho – sem se olharem.
Entretanto, lá fora passa uma ambulância
tal como a trombeta do Juízo.


(Trad. A.M.)

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28.10.16

João Guimarães Rosa (Saudade)





A gente se encostava no frio, escutava o orvalho, o mato cheio de cheiroso, estalinho de estrelas, o deduzir dos grilos e a cavalhada a peso.
Dava o raiar, entreluz da aurora, quando o céu branquece.
Ao o ar indo ficando cinzento, o formar daqueles cavaleiros, escorrido, se divisava.
E o senhor me desculpe, de estar retrasando em tantas minudências.
Mas até hoje eu represento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, é saudade.


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)

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Jesús López Pacheco (Canção dançável)





CANCIÓN BAILABLE



Lo más cómodo es
llorar desde Madrid
al que muere en Bolivia
(¡quién tuviera un fusil!).

Lo más cómodo es
no tener un fusil,
no luchar en Bolivia
y llorar en Madrid.

Lo más cómodo es
no luchar ni en Madrid,
llorar muertes lejanas
y soñar sin fusil.


 Jesús López Pacheco






O mais cómodo
é chorar em Madrid
o que morre na Bolívia
(quem tivesse uma espingarda!).

O mais cómodo é
não ter espingarda
não lutar na Bolívia
e chorar em Madrid.

O mais cómodo é
não lutar sequer em Madrid,
chorar mortes longínquas
e sonhar sem espingarda.



(Trad. A.M.)

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27.10.16

Carlos de Oliveira (Salmo)





SALMO




A vida
é o bago de uva
macerado
nos lagares do mundo
e aqui se diz
para proveito dos que vivem
que a dor
é vã
e o vinho
breve.



Carlos de Oliveira



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5.10.16

Javier Salvago (Convém não esquecer)






CONVIENE NO OLVIDARLO



Por esta senda,
que llaman vida, todos
vamos a tientas,

igual que un ciego.
En ceniza terminan
todos los fuegos.


Javier Salvago




Por este atalho,
a que chamam vida, todos
vamos às apalpadelas,

tal como um cego.
Em cinza terminam
todos os fogos.


(Trad. L.P.)

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4.10.16

João Guimarães Rosa (Lidante)





– “De não ter conhecido você, estes anos todos, purgo meus arrependimentos...” – foi a sincera primeira palavra que ele me disse, me olhando antes.
Levei dias pensando que ele não fosse de juízo regulado.
Nunca falou em minha mãe.
Nas coisas de negócio e uso, no lidante, também quase não falava.
Mas gostava de conversar, contava casos.
Altas artes de jagunços isso ele amava constante – histórias.


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)

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Jaime Sabines (A procissão do enterro)





A PROCISSÃO DO ENTERRO nas ruas da cidade é omino-
samente patética. Atrás do carro que leva o cadáver, vai
o autocarro, ou autocarros negros, com os doridos, familiares
e amigos. As duas ou três pessoas chorosas, realmente doridas,
são ultrajadas pelos cláxones vizinhos, pelos gritos dos
vendedores, pelos risos dos transeuntes, pela terrível
indiferença do mundo. A carreta avança, pára, acelera
de novo, e uma pessoa pensa que até os mortos têm de
respeitar os sinais de trânsito. É um enterro urbano, decente,
expedito. Não tem a solenidade nem a ternura do enterro de província.

Uma vez vi um camponês carregar nos ombros uma caixa
pequena e branca. Era uma menina, talvez filha. Atrás dele não ia
ninguém, nem sequer uma dessas vizinhas que deitam o xale pela
cabeça e se põem muito sérias, como se pensassem na morte.
O homem ia sozinho, pelo meio da rua, apertando o sombreiro
com uma das mãos sobre a caixa branca. Ao chegar ao centro da
povoação iam quatro carros atrás, quatro carros de desconhecidos
que não se tinham atrevido a ultrapassar.

É claro que não quero que me enterrem. Mas se algum dia tiver
que ser, é melhor enterrarem-me em casa, na cave, do que ir morto
por essas ruas de Deus sem ninguém me ligar. (...)


Jaime Sabines




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3.10.16

José Miguel Silva (Ao amanhecer)





AO AMANHECER



As lágrimas não sabem
o que dizem, deixam-se cair
em turvos argumentos,
lembram-se de coisas.
Quase nos estragam as bebidas.

Ao fim de três whiskies,
abres uma porta
e tudo se aclara.
As memórias, os cadernos,
os aprestos do negrume,
ficaram para trás.

Agora já conheces 
os fósforos que tens,
abriga-os da chuva de dezembro.
Quem sabe que cigarros
estarão à tua espera.


José Miguel Silva



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2.10.16

Jaime Gil de Biedma (Happy ending)





HAPPY ENDING



Aunque la noche, conmigo,
no la duermas ya,
sólo el azar nos dirá
si es definitivo.

Que aunque el gusto nunca más
vuelve a ser el mismo,
en la vida los olvidos
no suelen durar.


Jaime Gil de Biedma

[Otra iglesia]





Embora a noite, comigo,
não a durmas já,
só o acaso nos dirá
se é definitivo.

Que embora o gosto não volte
nunca mais a ser o mesmo,
o esquecimento na vida
não costuma durar muito.


(Trad. A.M.)

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1.10.16

João Guimarães Rosa (No descampante)





Em o que afundamos num cerrado de mangabal, indo sem volvência, até perto de hora do almoço.
Mas o terreno aumentava de soltado.
 E as árvores iam se abaixando menorzinhas, arregaçavam saia no chão.
De vir lá, só algum tatu, por mel e mangaba.
Depois, se acabavam as mangabaranas e mangabeirinhas.
Ali onde o campo largueia.
 Os urubus em vasto espaceavam.
Se acabou o capinzal de capim-redondo e paspalho, e paus espinhosos, que mesmo as moitas daquele de prateados feixes, capins assins.
Acabava o grameal, naquelas paragens pardas.
Aquilo, vindo aos poucos, dava um peso extrato, o mundo se envelhecendo, no descampante.


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)

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Irene Sánchez Carrón (Reflexões prévias)





REFLEXIONES PREVIAS A LA SIGUIENTE ESCENA



El verdadero mérito de muchas acciones consiste en saber esperar.

Saber esperar es, en muchos casos, uno de los grandes méritos
de ser hombre.

Es preciso especializarse en esperar

un turno,
un día,
una escena,
el momento.

Entretanto, esperar.

La gente pasa.

Es preciso seguir esperando.

El pensamiento persigue a la voz que atravesó la tarde
o al sonido de unos pasos que se acercan,
se paran,
vacilan
y, por fin, se pierden.

En la espera se sueña,
se alargan amores,
se manosean recuerdos.

Una historia progresa a fuerza de desechar posibilidades
que juntas
serían otra historia.

Es posible vivir todas las posibilidades
mientras se espera
lo único posible.

El tiempo pasa.

El verdadero mérito de muchas acciones consiste en saber esperar.


Irene Sánchez Carrón






O verdadeiro mérito de muitas acções reside em saber esperar.

Saber esperar, muitas vezes, é um dos grandes méritos
de ser homem.

É preciso especializar-se em esperar

uma vez,
um dia,
uma cena,
o momento.

Entretanto, esperar.

A gente passa.

É preciso continuar a esperar.

O pensamento persegue a voz que atravessou a tarde
ou o som de uns passos que se avizinham,
param,
vacilam
e por fim perdem-se.

Na espera sonha-se,
alongam-se amores,
manuseiam-se lembranças.

Uma história avança por descartar possibilidades
que juntas
seriam outra história.

É possível viver todas as possibilidades
enquanto se espera
o possível.

O tempo passa.

O verdadeiro mérito de muitas acções reside em saber esperar.



(Trad. A.M.)

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