30.4.21

Eucanaã Ferraz (18.5.1961)



(18.5.1961)

  

Nasci num lugar pobre,
onde o hospital era longe,
onde era longe a estrada
e os anjos não conheciam:

Nasci mês de maio, azul
de tardes macias,
de pai José,
mãe Maria.

Batizaram-me: Terra Prometida.
Terra pobre, onde a felicidade passa 
longe, mas daqui eu a vejo
e todo o meu corpo brilha.

Eucanaã Ferraz

[Acontecimentos]

 .

28.4.21

Efi Cubero (Equilíbrio)



EQUILIBRIO

 

Ser manantial tan solo,
huir de los espejos,
pues aquél que conoce los exilios
siente que en el principio se halla todo
que todo vuelve siempre a comenzar
ya que todo final es insaciable.
Siempre este espacio de revelación
de un agua especular que apenas sacia
nuestra sed de infinito.


Efi Cubero

 

 

Ser manancial apenas,
fugir dos espelhos,
pois aquele que conhece os exílios
sente que tudo está no princípio,
que tudo volta sempre a começar,
já que todo o fim é insaciável.
Sempre este espaço de revelação 
de uma água especular que mal sacia
a nossa sede de infinito.


(Trad. A.M.)

 .

27.4.21

Miguel Gaya (Hoje comprei um livro)



Hoy compré un libro. No pude leerlo.
No me resultó caro, pero el precio es alto 
cuando no se puede leer lo que se tiene.
No entiendo el lenguaje en que está escrito,
no sé lo que dice el autor, los signos 
no tienen significado para mí.
Repaso las páginas con cuidado, 
las doy vuelta con esmero, las aliso
y aplasto suavemente, siguiendo con el dedo
los renglones escritos, los espacios en blanco,
y nada me dicen. Ajusto mis anteojos 
sobre el puente de la nariz, suspiro
y recomienzo. No importa cuánto me esmere,
no importa mi voluntad: el libro es mudo
y yo soy ciego ante él.
Cierro el libro y me pregunto
a cuántos mundos cierro 
con ese gesto, cuántas
historias he cegado, qué hombres y mujeres jamás
me hablarán, abrirán su corazón 
y sus mentes para mí, solo,
en la noche, contándome muy quedamente
sus mentirosas inconcebibles verdades.  


Miguel Gaya



Hoje comprei um livro, não consegui lê-lo.
Nem me ficou caro, mas é alto o preço
quando não se pode ler o que se tem.
Não entendo a linguagem da escrita,
nem sei o que diz o autor, aqueles signos
não têm significado para mim.
Remiro as páginas com cuidado,
volto-as com escrúpulo, aliso-as 
e carrego suavemente, seguindo com o dedo
as carreiras da escrita, os espaços em branco,
e nada me dizem. Ajusto os óculos 
no nariz, suspiro e recomeço.
Por muito que me esmere,
por muito que me esforce, o livro fica mudo
e eu cego diante dele.
Fecho o livro e pergunto-me
quantos mundos fecho eu nesse gesto,
quantas histórias apaguei, que homens e mulheres
jamais me falarão, ou abrirão o coração
e as mentes para mim apenas, na noite,
contando-me serenamente
suas mentirosas inconcebíveis verdades.

(Trad. A.M.)

.

25.4.21

Fernando Assis Pacheco (Tentas, de longe)



TENTAS, DE LONGE

 

Tentas, de longe, dizer que estás aqui. 
Com passo triste caminha na rua o Outono.
E o meu coração debruça-se à janela 
a ver pessoas e carros, e as folhas caindo.  

Mastigo esta solidão 
como quando era pequeno e jantava 
diante dos pais zangados: 
devagar, ausente.

 
Fernando Assis Pacheco

.

23.4.21

Adolfo González (Contemplação)



CONTEMPLACIÓN

 

Me pregunto, asombrado,
qué es lo que contemplo.
Me respondo que nada,
que tan sólo contemplo. 

No es verdad ni mentira,
simplemente es amor,
no se sabe qué es.
Se diría que Dios: 

Tiene forma de rama,
y de nube, y de ola…
Tiene forma de todo
y carece de forma.

 
Adolfo González

 

  

Pergunto-me, assombrado,
o que é que contemplo.
E respondo que nada,
que apenas contemplo.

Não é verdade nem mentira,
é amor simplesmente,
ninguém sabe o que é.
Dir-se-ia que Deus:

Tem forma de ramo,
e de nuvem, e de onda…
Tem forma de tudo
e carece de forma.


(Trad. A.M.)


>>  Adolfo Gonzalez (55p) /  Lexia (23p)


.

22.4.21

María Teresa Andruetto (Kodak)



KODAK



Yo
los miraba 
tras la lente de la Kodak
con la que padre
registró la guerra
antes 
que la muerte
disolviera sus pupilas
y delegara en mis ojos
el dolor de mirarme
devastada
por la ausencia.


María Teresa Andruetto

[Sibilas y pitias]

 

 

Eu
olhava para eles
pela lente da Kodak
com que meu pai
registou a guerra
antes
de a morte
lhe dissolver as pupilas
e delegar em meus olhos
a dor de me olhar
devastada
pela ausência.


(Trad. A.M.)

.

20.4.21

Artur Cruzeiro Seixas (Dedicatória)




 DEDICATÓRIA



Meu amor
além desta noite 
não tenho que dar
Assino a um canto
e aqui está para ti
-  com as minhas desculpas 
por daqui a nada
ser já manhã


Artur do Cruzeiro Seixas

.

18.4.21

María Laura Decésare (Caminho para casa)



CAMINO A CASA

 

De memoria voy
por el camino que me lleva
a la casa materna,
desde la plaza veo el molino
al que pocas veces me atreví a subir
para ver desde lo alto los techos,
no cualquiera tiene uno en su patio.
Cruzo la puerta, atravieso el jardín
mientras tarareo una canción.
Que pase lento el tiempo, pido
para mis adentros.
La misma escena: mamá en el sillón,
yo de rodillas le abrazo las piernas
y dejo que sus manos me despeinen.
Una caricia repetida
que me vuelve niña y me trae
sin paradas intermedias,
derechito
al comienzo de todo.

Maria Laura Decésare

 

 

Vou na memória 
pelo caminho que me leva
à casa materna,
da praça vejo o moinho
onde raro me atrevia a subir
para ver os telhados lá do alto,
e poucos o tinham no seu pátio.
Passo a porta, atravesso o jardim
a trautear uma canção.
Que o tempo corra devagar, digo-me
interiormente.
A mesma cena, mamã no cadeirão,
eu de joelhos a abraçar-lhe as pernas,
deixo que as mãos me despenteiem.
Uma carícia repetida
que me faz tornar a menina e me leva,
sem paragens intermédias,
direitinho
ao começo de tudo.


(Trad. A.M.)

 .

17.4.21

Marcelo Daniel Díaz (Satélites)



SATÉLITES


Para el ojo del astrónomo
somos pequeñas gotas que caen en la tierra
desde un cielo ladeado en sus extremos.
Y para el ojo de los seres queridos
brillan los paneles de los satélites.
No sé explicarlo: es un candado de luz
ahogando la materia oscura.


Marcelo Daniel Díaz




Aos olhos do astrónomo
nós somos pequenas gotas caindo na terra
de um céu ladeado nos extremos.
E aos olhos dos seres queridos
brilham os painéis dos satélites.
Não sei explicar, é uma corrente de luz
a abafar a matéria escura.

(Trad. A.M.)

.

15.4.21

Cesare Pavese (Verão)



ESTATE


È riapparsa la donna dagli occhi socchiusi
e dal corpo raccolto, camminando per strada.
Ha guardato diritto tendendo la mano,
nell’immobile strada. Ogni cosa è riemersa.
Nell’ímmobile luce dei giorno lontano
s’è spezzato il ricordo. La donna ha rialzato
la sua semplice fronte, e lo sguardo d’allora
è riapparso. La mano si è tesa alla mano
e la stretta angosciosa era quella d’allora.
Ogni cosa ha ripreso i colori e la vita
allo sguardo raccolto, alla bocca socchiusa.
È tornata l’angoscia dei giorni lontani
quando tutta un’immobile estate improvvisa
di colori e tepori emergeva, agli sguardi
di quegli occhi sommessi. È tornata l’angoscia
che nessuna dolcezza di labbra dischiuse
può lenire. Un immobile cielo s’accoglie
freddamente, in quegli occhi.
Era calmo il ricordo
alla luce sommessa del tempo, era un docile
moribondo cui già la finestra s’annebbia e scompare.
Si è spezzato il ricordo. La stretta angosciosa
della mano leggera ha riacceso i colori
e l’estate e i tepori sotto il vívido cielo.
Ma la bocca socchiusa e gli sguardi sommessi
non dan vita che a un duro inumano silenzio.

Cesare Pavese



Voltou a mulher de olhos semicerrados,
encolhida, a andar pelo caminho.
Fitou a direito, a mão estendida
no caminho imóvel. E tudo ressurgiu.
Na luz imóvel do dia distante
estilhaçou-se a lembrança. A mulher reergueu
a fronte, e o olhar de então reapareceu.
A mão estendeu-se para a mão e o aperto
da angústia era o mesmo de antes.
Tudo recuperou vida e cor
com aquele olhar fito, aquela boca entreaberta.
Voltou a angústia dos dias antigos,
quando um súbito e imóvel verão
de cambiantes e calores emergia perante a vista
daqueles olhos submissos. Voltou a angústia
que nem a doçura de uns lábios pode 
consolar. Um céu imóvel se acolhe,
friamente, naqueles olhos. 
Era serena a lembrança
sob a luz submissa do tempo, era um moribundo
dócil para quem a janela se enevoa já e desvanece.
Desfez-se a lembrança. O aperto de angústia 
da mão ligeira reacendeu as cores
e o verão e os calores debaixo do céu.
Mas a boca meio aberta e o olhar submisso
não deram senão num duro inumano silêncio.

(Trad. A.M.)

.

13.4.21

Carlos Iglesias Díez (Hoje)



HOY


EL amor es un grifo
que gotea de vez en cuando.
La soledad es una película
con demasiados extras.
El dolor es un gato
nacido sin cola.
Tú y yo somos una promesa
que cumple solo
el aire.
Y tu silencio son
estas palabras ciegas
que hoy te escribo.

Carlos Iglesias Díez



O amor é uma torneira
a pingar de vez em quando.
A solidão um filme
com demasiados extras.
A dor um gato
que nasceu sem rabo.
Tu e eu somos uma promessa
que apenas o ar
cumpre.
E o teu silêncio
estas palavras cegas
que hoje te escrevo.

(Trad. A.M.)


>>  El Cuaderno (9p) / CDL (entrevista) / Biblioasturias (outra)


.


12.4.21

Manuel Vilas (Cincinnati)



CINCINNATI



Llegué casi a la medianoche a Cincinnati,
media hora de taxi desde el aeropuerto hasta el hotel,
y las luces de la ciudad al final de la autopista. 

Al día siguiente vi el río Ohio y mi alma se alegró. 

Desde una colina vi el río dividiendo dos Estados,
a un lado Kentucky, al otro Ohio,
con sus puentes, sus barcos, sus camiones,
y abajo, el agua turbia, y los rascacielos de la ciudad. 

Me decía a mí mismo la palabra Cincinnati,
como una oración, como una palabra sagrada
que le robara a la oscuridad un sol merecido. 

Llamé a mi hijo pequeño a España para decirle que estaba aquí,
en esta ciudad y al lado de este río,
y nadie descolgó el teléfono. 

Vi que llevaba cuarenta llamadas realizadas. 

Comí en un restaurante asiático,
comí arroz y un pez de agua dulce,
era un día primaveral, con brisa y luz,
y pensé: ojalá encontrara trabajo aquí,
una casa, una familia, unos hijos, un perro.

Ojalá encontrara aquí un sol merecido.

 Y decía todo el rato Cincinnati,
porque parecía una palabra sanadora,
porque parecía una palabra italiana,
porque parecía la palabra perfecta
para decir adiós a quien fui. 

Después de comer hice la llamada cuarenta y uno. 

Me alojé en el Fairfield, un hotel agradable
en el barrio de la universidad, había gente joven
por las calles, gente alegre, bebiendo cerveza,
di un paseo y otra vez
dije Cincinnati, porque es una fiesta
esa palabra, un desfile de íes que bailan en mi alma. 

Quiero vivir treinta años más, Cincinnati,
quiero llegar a ser octogenario. 

Necesito toda la vida del planeta Tierra.
No puedo morir ahora,
cuando me quedan tantas cosas por hacer. 
Hice otra llamada. 

Hola, hijo, estoy en Cincinnati,
es una ciudad preciosa,
¿qué quieres que te compre, cariño?,
terminé diciéndole a la recepcionista
afroamericana del Fairfield en español,
y ella no entendió ni una palabra,
pero al menos me escuchaba,
y me miró con ojos incrédulos,
pero también apenados. 

Abril del año dos mil dieciocho,
tengo cincuenta y cinco años,
y dije mil veces la palabra Cincinnati.


Manuel Vilas




Cheguei perto da meia-noite a Cincinnati,
meia hora de táxi do aeroporto até ao hotel,
e as luzes da cidade no fim da auto-estrada.

Dia seguinte vi o rio Ohio e a alegria nasceu-me na alma.

De cima de uma colina vi o rio a dividir dois Estados,
de um lado Kentucky, do outro Ohio,
com suas pontes, seus barcos, seus camiões,
e em baixo. a água turva e os arranha-céus da cidade.

Dizia a mim mesmo a palavra Cincinnati,
como uma oração, como palavra sagrada
que roubasse à escuridão um sol merecido.

Liguei para o meu filho pequeno em Espanha a dizer-lhe que estava aqui,
nesta cidade, à beira do rio,
e ninguém atendeu.

Reparei que já levava quarenta chamadas.

Comi num restaurante asiático,
um arroz e peixe de rio,
era um dia de primavera, com brisa e luz,
e pensei: oxalá encontrasse trabalho aqui,
uma casa, família, filhos, um cão.

Oxalá encontrasse aqui um sol merecido.

E dizia Cincinnati a cada instante,
porque me parecia uma palavra milagrosa,
uma palavra italiana,
a palavra perfeita para dizer adeus àquele que fui.

Depois de comer fiz a chamada quarenta e um.

Alojei-me no Fairfield, um hotel agradável
no bairro da universidade, havia gente nova
nas ruas, pessoas alegres a beber cerveja,
dei um passeio e mais uma vez
disse Cincinnati, porque tal palavra é uma festa,
um desfile de is a bailarem na minha alma.

Quero viver trinta anos mais, Cincinnati,
quero chegar a octogenário.

Preciso de toda a vida do planeta Terra.
Não posso morrer agora,
quando me falta fazer tanta coisa.
Fiz outra chamada.

Olá filho, estou em Cincinnati,
é uma cidade fantástica,
o que queres que te compre, querido?
- terminei, em espanhol, virado para a recepcionista do hotel,
uma afro-americana, que não percebeu uma palavra,
mas ao menos escutava-me,
olhando para mim com olhos incrédulos,
mas também compassivos.

Abril, dois mil e dezoito,
tenho cinquenta e cinco anos,
e disse mil vezes a palavra Cincinnati.

(Trad. A.M.)

.

10.4.21

António Ramos Rosa (Creio nas palavras)



Creio nas palavras
transparentes
que pertencem ao vento
ao sal
à latitude pura

Aqui
no meu reduto
entre ramos de ar
entre a cintilante indolência da água
creio no que nos une
em ondas vagas
apaixonadamente lentas

Aqui
eu pertenço
ao centro da nudez
como uma gota de água
ao rés do solo
na sua imediata e nua felicidade


António Ramos Rosa

.

8.4.21

Yolanda Castaño (Deixa alongar-se esta inquietação)



Deja que se alargue esta inquietud del ahora.
Que tarde, que tarde tanto
                                                        la patria de este
movimiento de la servidumbre del pan.

Yo me acaramelaba encerrada en una urna
pero no enlazaba nunca la miseria de una carencia.

Deja que mane
                       una prisa lentísima

y que el deseo sea
                      inmovilización de la urgência.


Yolanda Castaño

 

 

Deixa alongar-se esta inquietação do presente.
Que tarde, que tarde tanto
                                            a pátria deste
movimento da servidão do pão.

Eu oferecia-me fechada numa urna
mas não abraçava nunca a miséria da carência.

Deixa manar
               uma lentíssima pressa

e que o desejo seja
                               a imobilização da urgência.


(Trad. A.M.)

.

7.4.21

Luis Rosales (Esta lenta cisão)



ESTA LENTA ESCISIÓN DE LA CARNE Y EL CUERPO



No es la vida, es la carne lo que siento,
la carne silenciosa y sucedida
que me empieza a dictar su propia vida
y me ha legado el cuerpo en testamento.

Luis Rosales




Não é a vida, é a carne o que eu sinto,
a carne silenciosa e já vivida
que começa a impor-me a sua vida
e me tem legado o corpo em testamento.

(Trad. A.M.)

.

5.4.21

António Cabral (Retrato de família)



RETRATO DE FAMÍLIA



Lisboa, dama oceânica acocorada sobre o Tejo
porque tem perturbações graves nos intestinos.
Bragança, Vila Real e Chaves, três raparigotas bem-educadas.
E submissas. Nunca mandaram a tia à merda.


ANTÓNIO CABRAL
Emigração Clandestina
(1977)

.

3.4.21

Luis García Montero (O amor)




EL AMOR



Las palabras son barcos
y se pierden así, de boca en boca,
como de niebla en niebla.
Llevan su mercancía por las conversaciones
sin encontrar un puerto,
la noche que les pese igual que un ancla.

Deben acostumbrarse a envejecer
y vivir con paciencia de madera
usada por las olas,
irse descomponiendo, dañarse lentamente,
hasta que a la bodega rutinaria
llegue el mar y las hunda.

Porque la vida entra en las palabras
como el mar en un barco,
cubre de tiempo el nombre de las cosas
y lleva a la raíz de un adjetivo
el cielo de una fecha,
el balcón de una casa
la luz de una ciudad reflejada en un río.

Por eso, niebla a niebla,
cuando el amor invade las palabras,
golpea sus paredes, marca en ellas
los signos de una historia personal,
y deja en el pasado de los vocabularios
sensaciones de frío y de calor,
noches que son la noche,
mares que son el mar,
solitarios paseos con extensión de frase
y trenes detenidos y canciones.

Si el amor, como todo, es cuestión de palabras,
acercarme a tu cuerpo fue crear un idioma.


LUIS GARCÍA MONTERO
Completamente viernes
(1998)





As palavras são barcos
e perdem-se assim, de boca em boca,
como de névoa em névoa.
Andam com a veniaga por entre as falas
sem achar porto,
noite que lhes pese feita âncora.

Têm de habituar-se a envelhecer
e a viver com paciência de madeira
à flor das ondas,
desfazer-se,  ferir-se lentamente,
até que o porão rotineiro
chegue ao mar e as afunde.

Porque a vida entra nas palavras
como o mar num navio,
cobre de tempo o nome das coisas
e leva à raiz de um adjectivo
o céu de uma data,
uma varanda de casa,
a luz da cidade espelhada num rio.

Por isso, névoa a névoa,
quando o amor invade as palavras,
agride as paredes, grava nelas
os signos de uma história pessoal
e deixa no passado dos vocabulários
sensações se frio e calor,
noites que são a noite,
mares que são o mar,
solitários passeios com extensão de frase
e comboios suspensos e canções.

Se o amor, como tudo, é questão de palavras,
acercar-me do teu corpo foi como inventar um idioma.


(Trad. A.M.)

.

2.4.21

Luis Feria (O poema)



EL POEMA



Ramo de sangre, arpón en todo el pecho, 
lengua que propiciaba el corazón voraz. 
Su estirpe apasionada nos arrojó a la vida; 
no se someten ni el amor ni el mar.

Rosa fiel que el tiempo no ha secado,
mayor que el celo, no menor que el vacío, 
sudor o sangre, o vida, o tierra, o muerte; 
nunca nos faltes; 
el hueco de tu ausencia huele a miedo.


Luis Feria




Ramo de sangue, arpão cravado no peito, 
língua que o voraz coração propiciava. 
Sua estirpe apaixonada atirou-nos para a vida; 
não se submetem nem o amor, nem o mar.

Rosa fiel que o tempo não secou, 
maior que o zelo, não menor do que o vazio, 
suor ou sangue, ou vida, ou terra, ou morte; 
não nos faltes nunca; 
cheira a medo o vazio da tua ausência.

(Trad. A.M.)

.