30.11.15

Paulo Leminski (Moinho de versos)





moinho de versos
movido a vento
em noites de boémia

vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia


Paulo Leminski


[Cartas do meu moinho]

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29.11.15

Hugo Vera Miranda (A noite era um ninho de jacarés)





LA NOCHE ERA UN NIDO DE CAIMANES



Crees conocerme y no me conoces de nada.
No me conoces de nada.
Fui un figurante que pasó por tu vida
dejando una estela de malos presagios.

¡Antiguos violines destemplados!

No fui para ti nada más que un atisbo del infierno.
Un acantilado digno del suicida
un desperdicio de la humanidad
una piedra en tu zapato.

Fui hijo de una puta y un marinero errante
que pasó por tu vida un día
en que el sol no existía
y la noche era un nido de caimanes.

Pero en definitiva no somos tan distintos.
Estamos hechos del mismo espasmo
que hizo a la comadreja y al asno.
En definitiva no somos tan distintos.

Al final nada quedará, ni un atisbo de nada.
Nada quedará, ni la comadreja, ni el asno, ni tú ni yo.
La tierra será nuestra fosa común
y giraremos hasta perdernos.


Hugo Vera Miranda

[Inmaculada Decepción]




Pensas que me conheces e não conheces nada,
conheces nada.
Eu fui um figurante que passou pela tua vida
deixando atrás um rasto de maus presságios.

Violinos antigos desafinados!

Para ti eu não fui mais que um sinal do inferno
um penhasco digno do suicida
um desperdício da humanidade
uma pedra em teu sapato.

Um filho da puta é que fui, um marinheiro errante
que passou pela tua vida um dia
em que não havia sol
e a noite era um ninho de jacarés.

Mas não somos tão diferentes assim,
somos feitos do mesmo espasmo
que fez a doninha e o asno,
não somos tão diferentes como isso.

No fim, nada restará, sequer um sinalzinho de nada.
Nada, nem doninha, nem asno, nem tu, nem eu.
A terra será nossa fossa comum
e havemos de girar até nos perdermos.


(Trad. A.M.)


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28.11.15

Egito Gonçalves (Notícias do bloqueio)





NOTÍCIAS DO BLOQUEIO



Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos …
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima …

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e, enquanto a água e os víveres escasseiam,
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.


Egito Gonçalves

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27.11.15

Pablo Neruda (O teu riso)





O TEU RISO



Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda de prata
que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.
   (…)


Pablo Neruda

(Trad. Albano Martins)

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26.11.15

Miguel Martins (Para o meu pai)





                                       (Para o meu pai)


Muito poucos foram os dias cuja acidez não tragaste do princípio ao fim,
vinho branco retintado pela morte dos teus sonhos, um a um,
e uma bola de fogo a crescer-te no estômago, uma inteireza brutal,
virada do avesso, como se uma queda tão lenta, tão evidentemente
queda, tão claramente desesperada do futuro, pudesse ser exemplo
para quem nem sequer ouve os tiros e as fábricas de fabricar cadáveres,
ufanos da sua própria falta de desejo. Eu sei, não o duvides, António:
não podias ter vivido de outro modo e, mesmo assim, a vida ficará,
para sempre, a dever-te a maior parte dos teus anos, talvez todos,
menos algumas horas de olhos ancorados entre Jersey e Granville
(onde nunca foste), menos alguns passeios entre a mística flora
intestinal do mundo, menos algumas tardes entre as coxas ardentes
de uma qualquer beirã, cujo nome recordas, e a quem foi dado o dom
de ser mais natural que a pureza dos padres. Apenas por isso escrevo,
agora, este poema e, se quiser pensar, o que não quero, talvez conclua
que já só por ti sujo os dedos de papel: é para tentar pagar-te um pouco
dessa dívida, para imaginar-te a sorrir de olhos fechados,
como quando à memória te acudia o nome de uma gueixa que leras
entre lençóis frios, no tempo em que ainda tinhas fé na madrugada.



Miguel Martins

[O único verdadeiro deus vivo]

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25.11.15

Pablo García Casado (Ford)





FORD



como un oso que despierta del letargo
nuestro ford va derritiendo la nieve del parabrisas
pongo las maletas en el asiento trasero repaso el mapa de carreteras

ahora llegas tú medio dormida
sin pintar sin arreglar rota por la noche pasada
una noche de preguntas de miedo de ropa que entra

y sale de los armarios una noche de nevera desconectada
pero hoy es distinto y te sientas a mi lado como antes
cuando viajábamos sin prisa a través de bosques y maizales en esas noches
de faros encendidos en busca del océano

el ford asciende lento por la colina
quiero viajar al sur al sur de todos los proyectos


Pablo García Casado

[Poetas andaluces]




como um urso a despertar do letargo
o nosso ford vai derretendo a neve do pára-brisas
ponho as malas no banco de trás revejo o mapa de estradas

depois vens tu meia a dormir
sem pintura nem arranjada rota da noite anterior
uma noite de perguntas de medo de roupa a entrar

e a sair dos armários uma noite de frigo desligado
mas hoje é diferente e sentas-te a meu lado como dantes
quando viajávamos sem pressa por bosques e milharais
de faróis acesos à busca do oceano

o ford sobe lento pela colina
quero ir para o sul para o sul de todos os projectos


(Trad. A.M.)

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24.11.15

Mario Quintana (Do estilo)





DO ESTILO



Fere de leve a frase... E esquece... Nada
              convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
a mesma coisa cem mil vezes dita.


Mario Quintana

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23.11.15

Pablo Casares (A contenda)





LA CONTIENDA



Lo mucho que me costó aprender
que amar se ama de golpe.

Sin concesiones.
Sin esperar nada a cambio.
Sin intermediarios.

En una lucha cuerpo a cuerpo.

Pablo Casares

[Escrito en el viento]



Muito me custou aprender
que amar ama-se de repente.

Sem concessões.
Sem esperar nada em troca.
Sem intermediários.

Numa luta corpo a corpo.

(Trad. A.M.)

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22.11.15

Marina Colasanti (Eu sei, mas não devia)




EU SEI, MAS NÃO DEVIA



Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos
e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E, porque não olha para fora,
logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E, porque não abre as cortinas,
logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E, à medida que se acostuma, esquece o sol,
esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder
o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
     (...)


Marina Colasanti

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21.11.15

José María Cumbreño (Altura)






Ejemplo de relativismo: las montañas más altas están bajo el mar.


José María Cumbreño





>>  (Casi) Diario de JMC (blogue) / Triplo V (nota+8p) / Revista El Humo (idem)

.

20.11.15

Alberto Pimenta (Elogio do kitch)





ELOGIO DO KITCH



nada é diferente do que é:
nem as coisas
nem as palavras.


tudo é como é: tanto
as coisas como
as palavras.


mesmo
quando se trata de
coisas
que encobrem as palavras
ou de
palavras
que encobrem as coisas.


porque
as coisas
são como são
e exactamente o mesmo
sucede com as palavras.


isto
não esquecendo
que as palavras
por assim dizer
são o esmegma das coisas
e as coisas
por assim dizer
o eclegma das palavras.


e é tudo,
não é verdade?


Alberto Pimenta

[Canal de poesia]


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19.11.15

Óscar Hahn (Movimento sísmico)





MOVIMIENTO SÍSMICO



Tuve una vez un gran amor
que derribó mi casa
agrietó mis puentes
y me hizo perder el equilibrio
Después vinieron las réplicas:
amoríos de baja intensidad
que ni siquiera
me hicieron temblar
En cuanto al gran amor
ay mísero de mí
todavía respira
debajo de las ruínas


Óscar Hahn

[Marcelo Leites]



Tive um grande amor uma vez
que me derrubou a casa
rachou-me as pontes
e fez-me perder o equilíbrio
Depois vieram as réplicas,
amoricos de baixa intensidade
que nem sequer
me fizeram estremecer
Quanto ao grande amor
ai pobre de mim
respira ainda
sob os escombros

(Trad. A.M.)

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18.11.15

Marcos Siscar (Trezentos anos)





TREZENTOS ANOS VOLTAIRE NASCIA



verter o café num dia sem cor o cálculo
do açúcar a colher inútil a voltear
mas olhando de dentro da espiral de fumaça
mil poetas absortos não obstante mortos
talvez se digam que quebrar esta xícara
bastaria para mudar a vida ‘changer la vie’
decidi ser feliz faz bem para a saúde
diz um deles livre uni-me ao aniversário
de sua ausência flor do ébano glauca


Marcos Siscar

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17.11.15

Oliverio Girondo (Outro nocturno)





OTRO NOCTURNO



La luna, como la esfera luminosa del reloj de un edificio
público.

¡Faroles enfermos de ictericia! ¡Faroles con gorras de
“apache”, que fuman un cigarrillo en las esquinas!

¡Canto humilde y humillado de los mingitorios cansados
de cantar! Y silencio de las estrellas, sobre el asfalto
humedecido!

¿Por qué, a veces, sentiremos una tristeza parecida a la
de un par de medias tirado en un rincón?, y ¿por qué, a
veces, nos interesará tanto el partido de pelota que el eco
de nuestros pasos juega en la pared?

Noches en las que nos disimulamos bajo la sombra de los
árboles, de miedo de que las casas se despierten de pronto
y nos vean pasar, y en las que el único consuelo es la
seguridad de que nuestra cama nos espera, con las velas
tendidas hacia un país mejor.


Oliverio Girondo



A lua, como a esfera luminosa do relógio de um edifício
público.

Candeeiros doentes de icterícia! Candeeiros com boinas de
‘apache’, a fumar um cigarro nas esquinas!

Canto humilde e humilhado dos mictórios cansados
de cantar! E o silêncio das estrelas, sobre o asfalto
humedecido!

Porque sentiremos, às vezes, uma tristeza parecida
à de um par de meias esquecido num
canto? E porque nos interessará tanto,
às vezes, a partida de bola que o eco
dos nossos passos joga na parede?

Noites em que nos disfarçamos sob a sombra das
árvores, com medo de que as casas de repente
acordem e nos vejam passar, e em que
só nos consola a certeza de que a cama nos espera,
as velas erguidas em direcção a um país melhor.


(Trad. A.M.)

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16.11.15

Manuel de Freitas (Sombras)





SOMBRAS



Iluminar o mundo - com palavras,
velas, algum vinho.
Dito assim, quase parece simples.

Mas chovia muito e resguardou-se
cada um na sua tão pequena chama
ou numa cómoda e fria indiferença.

Talvez fosse de esperar. As velas,
porém, continuaram a arder.
Enquanto cinco rostos se reflectiam na parede
e a poesia era, de novo, a única luz.


Manuel de Freitas

[Arquivo de cabeceira]

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15.11.15

Olga Orozco (A realidade e o desejo)





LA REALIDAD Y EL DESEO



La realidad, sí, la realidad,
ese relámpago de lo invisible
que revela en nosotros la soledad de Dios.

Es este cielo que huye.
Es este territorio engalanado por las burbujas de
la muerte.
Es esta larga mesa a la deriva
donde los comensales persisten ataviados por el
prestigio de no estar.
A cada cual su copa
para medir el vino que se acaba donde empieza
la sed.
A cada cual su plato
para encerrar el hambre que se extingue sin
saciarse jamás.
Y cada dos la división del pan:
el milagro al revés, la comunión tan sólo en lo
imposible

Y en medio del amor,
entre uno y otro cuerpo la caída,
algo que se asemeja al latido sombrío de unas
alas que vuelven desde la eternidad
al pulso del adiós debajo de la tierra.

La realidad, sí, la realidad:
un sello de clausura sobre todas las puertas del
deseo.


Olga Orozco

[Marcelo Leites]




A realidade, sim, a realidade,
esse relâmpago do invisível
que em nós revela a solidão de Deus.

É este céu que foge.
É este território enfeitado pelas borbulhas
da morte.
É esta mesa comprida à deriva
onde os comensais se sentam vestidos
do prestígio de não estar.
Cada um com seu copo
a medir o vinho que acaba
onde começa
a sede.
Cada um com seu prato
para enterrar a fome que se extingue
sem nunca se saciar.
E dois a dois repartindo o pão:
o milagre ao contrário, comunhão apenas
no impossível.

E a meio do amor,
entre um e outro corpo a queda,
algo semelhante ao bater sombrio
de asas que voltam lá da eternidade,
ao pulsar do adeus por baixo da terra.

A realidade, sim, a realidade:
um selo de fechar as portas todas
do desejo.

(Trad. A.M.)

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14.11.15

Manuel Bandeira (Neologismo)





NEOLOGISMO



Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.



Manuel Bandeira

[Poemas de Bandeira]

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13.11.15

Octavio Paz (Rua)





LA CALLE



Es una calle larga y silenciosa.
Ando en tinieblas y tropiezo y caigo
y me levanto y piso con pies ciegos
las piedras mudas y las hojas secas
y alguien detrás de mí también las pisa:
Si me detengo, se detiene;
si corro, corre.

Vuelvo el rostro: nadie.
Todo está oscuro y sin salida,
y doy vueltas y vueltas en esquinas
que dan siempre a la calle
donde nadie me espera ni me sigue,
donde yo sigo a un hombre que tropieza
y se levanta y dice al verme: nadie.

Octavio Paz




Rua comprida, silenciosa.
Caminho às escuras, tropeço e caio
e levanto-me e piso com pés cegos
as pedras mudas e as folhas secas
e alguém atrás de mim também as pisa:
Se me detenho, detém-se;
se eu corro, corre também.

Viro a cara: ninguém.
Tudo escuro, sem saída,
e eu dou voltas e voltas em esquinas
que dão sempre para a rua
onde ninguém me segue ou espera,
onde eu sigo um homem que tropeça
e se levanta e diz, ao ver-me: ninguém.

(Trad. A.M.)

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12.11.15

Gil T. Sousa (Memória)





MEMÓRIA


21

e vinha a luz
e guardava-te

e eu guardava-te
também

em lugares mais seguros
que fotografias
ou poemas


GIL T. SOUSA
Água Forte
(2005)

[Canal de poesia]



>>  Canal de poesia (blogue) / Amadeu Baptista (3p+nota)

.

11.11.15

Nicanor Parra (Pai nosso)





PADRE NUESTRO



Padre nuestro que estas en el cielo
Lleno de toda clase de problemas
Con el ceño fruncido
Como si fueras un hombre vulgar y corriente
No pienses más en nosotros

Comprendemos que sufres
Porque no puedes arreglar las cosas.
Sabemos que el demonio no te deja tranquilo
Desconstruyendo lo que tú construyes

El se ríe de ti
Pero nosotros lloramos contigo:
No te preocupes de sus risas diabólicas

Padre nuestro que estás donde estás
Rodeado de ángeles desleales
Sinceramente: no sufras más por nosotros
Tienes que darte cuenta
De que los dioses no son infalibles
Y que nosotros perdonamos todo.


Nicanor Parra



Pai nosso que estás no céu
Cheio de todo o tipo de problemas
Com o cenho franzido
Como se fosses um homem vulgar e comum
Não penses mais em nós.

Compreendemos que sofres
Porque não podes ajeitar as coisas.
Sabemos que o Demónio não te deixa em paz
Desconstruindo o que tu constróis.

Ele ri-se de ti
Mas nós choramos contigo:
Não te preocupes com as suas risadas diabólicas.

Pai nosso que estás onde estás
Rodeado de anjos desleais
Sinceramente: não sofras mais por nós
Tens que perceber
Que os deuses não são infalíveis
E que nós perdoamos tudo.


(Trad. J.E.Simões)

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9.11.15

Hugo Vera Miranda (A divinis)





A DIVINIS



Dios vagaba a través del espacio
sin hacer una mierda.
Un día se le ocurrió la brillante idea
de ponerse a trabajar.

Creó los cielos y la tierra
y muchas cosas más.
Luego fruto de su esquizofrenia veloz,
tomó del barro más nauseabundo
diciendo: ¡Hágase un Hugo Vera Miranda!

Más tarde en un acto de infinita crueldad
y sin mediar consulta alguna,
me saca una costilla
y crea a esa perra.


Hugo Vera Miranda

[Inmaculada Decepción]




Deus vagava através do espaço
Sem fazer uma porra.
Um dia ocorreu-lhe a brilhante ideia
De se pôr a trabalhar.

Criou os céus e a terra
E muitas coisas mais.
Depois, fruto de acelerada esquizofrenia,
Tomou da lama mais nauseabunda,
Dizendo: Faça-se um Hugo Vera Miranda!

Mais tarde, com infinita crueldade
E sem consultar ninguém,
Arranca-me uma costela
E cria essa cachorra.

(Trad. A.M.)



>>  Inmaculada Decepción (blogue) / Escritores (6p) / Letras.s5 (nota)

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8.11.15

Manoel de Barros (Sujeito)





SUJEITO



Usava um Dicionário do Ordinário
com 11 palavras de joelhos
inclusive bestego. Posava de esterco
para 13 adjetivos familiares,
inclusive bêbado.
Ia entre azul e sarjetas.
Tinha a voz de chão podre.
Tocava a fome a 12 bocas.
E achava mais importante fundar um verso
do que uma Usina Atômica!
Era um sujeito ordinário.


Manoel de Barros

[Rauau]

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7.11.15

Mirta Rosenberg (Retrato terminado)





RETRATO TERMINADO

The art of losing isn’t hard to master.
Elizabeth Bishop


Es una manera de decir
quiero quedarme sin palabras,
perder sin comentarios.

Hasta cuándo voy a hablar
de lo que ya no está.

De la que ya no está
viéndome escribir de ella.
¡Y con esos ojos!

También yo de noche los abro
y miro el silencio
en la oscuridad
donde el retrato termina
sin que lo alcance a ver

y pienso
y pienso
y pienso

en temas como vos
que no parecen tener
vencimiento,

en tu deseo de llegar a casa:
con la llave preparada,
aferrada a la puerta del taxi,
te dejabas caer en tu puerta
casi con la voluntad incierta
de una hoja en otoño,

esa clase de vencimiento,

y esos ojos más bien dorados
de los que decías en las descripciones
ojos verdes. Para mirar
cada ocasión con buenos ojos
que no me miran más,
aunque los recuerde.

Y ahora
quiero quedarme
sin palabras. Saber perder
lo que se pierde.

O eso parece.

Parece que las dos
nos hemos quedado sin madre:
yo sin vos
vos sin ella,

y sucesivamente,
como eslabones perdidos
y encontrados por un rato
con los padres,

pero ésa es otra historia
que está mejor contada
en la foto de casamiento
para la que palabras
nunca tuve,

como si fuera anticipo
de mi propio vencimiento.

De los padres decías que el tuyo
tenía ojos verdes,
como vos, tu nieto Juan,
y nadie los tenía del todo
aunque merecían tenerlos:
tu manera
de embellecer el retrato
era tu manera de verlo.

De ella decías en cambio
desde su muerte no fui la misma,
y ésa sería tal vez tu manera
de no terminar el retrato.

La palabra no.

Lo mismo digo yo.

Aunque también se diría una ocasión
más bien vulgar: en general,
todos nos quedamos sin ella,
y esa ausencia de luz parece
descansar los ojos
sin vaciarlos. Los anima,

o los vuelve hacia la oscuridad,
que es donde el retrato termina.

Dijo mi padre de la suya:
nací con ella y ahora
voy a tener que morirme
solo. Y después
lo hizo.

Dijo mi maestro de la suya:
me pasé toda la vida para tener
la letra de mamá. Y después
la tuvo.

Era un dolor perfecto:
hablando de ella,
hablaban de sí mismos.

O eso parece.

Parece que perder
no es un arte difícil:
los muertos de verdad de uno
son víctimas amadas de los vivos.

De lo que cada uno dijo.

Mirta Rosenberg




Maneira de dizer,
quero ficar sem palavras,
perder sem mais comentários.

Até quando vou eu falar
daquilo que já não existe?

Daquela que já cá não está
a ver-me escrever sobre ela?
E com aqueles olhos!

Também eu de noite abro os meus
e observo o silêncio
no escuro
onde o retrato se acaba
sem eu conseguir vê-lo

e penso
penso
penso

em coisas como tu
que não parecem caducar,

no teu desejo de chegar a casa:
a chave preparada,
a mão na porta do táxi,
deixavas-te cair à porta de casa
assim com a incerta vontade
de uma folha de Outono,

esse tipo de caducidade,

e aqueles olhos mais dourados
do que verdes como dizias. Para olhar
a circunstância com bons olhos
que a mim não mais me olham,
embora os lembre.

E agora quero ficar
sem palavras. Saber perder
aquilo que se perde.

Ou assim parece.

Parece que ficámos
as duas sem mãe:
eu sem ti
tu sem ela,

e sucessivamente,
como elos perdidos
e achados por um pouco
com os pais,

mas essa é outra história
mais bem contada
na foto de casamento
para que jamais tive
palavras,

como antecipação que fosse
da minha própria caducidade.

Dos pais dizias que tinha
olhos verdes o teu,
como tu, ou teu neto Juan,
e não era verdade,
embora os merecessem:
teu modo
de embelezar o retrato
era só teu modo de o ver.

Dela dizias em troca
nunca mais fui a mesma depois que morreu,
e esse seria talvez o teu modo
de não terminar o retrato.

A palavra não.

O mesmo digo eu.

Mas também podia dizer-se noutra
altura: em geral,
todos ficamos sem ela,
e essa ausência de luz como que
descansa os olhos
sem os esvaziar. Anima-os,

ou volta-os para o escuro,
que é onde o retrato se acaba.

Meu pai dizia da sua:
nasci com ela e agora
vou ter de morrer
sozinho. E depois
assim foi.

Meu mestre da sua dizia:
andei toda a vida para ter
a letra da mãe. E por fim
a teve.
Era a mais perfeita das dores,
ao falar dela,
de si mesmos falavam.

Ou assim parecia.

Perder não é uma arte difícil,
os verdadeiros mortos de cada um
são vítimas amadas dos vivos.

Daquilo que disse cada um.


(Trad. A.M.)

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6.11.15

Egito Gonçalves (Com palavras)





COM PALAVRAS



Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
e saio para a rua.
Com palavras - inaudíveis - grito
para rasgar os risos que nos cercam.

Ah!, de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
em quatro ou cinco línguas.
Tomamo-las à noite em comprimidos
para dormir o cansaço.

As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
roxas de silêncio. De que servem
asfixiadas em saliva, prisioneiras?

Possuímos, das palavras, as mais belas;
as que seivam o amor, a liberdade...
Engulo-as perguntando-me se um dia
as poderei navegar; se alguma vez
dilatarei o pulmão que as encerra.

Atravessa-nos um rio de palavras:
Com elas eu me deito, me levanto,
e faltam-me palavras para contar...


Egito Gonçalves



>>  Escritas (7p) / Citador (5p) / nEscritas (4p) / Wikipedia

.

5.11.15

Jorge Ampuero (Livre)





LIBRE



Te dejo mi corazón
libre como los pájaros
como un árbol
o una piedra
si me tocas
no importa
si la piedra cae
libre como un árbol
si el árbol vuela
libre como los pájaros.

Jorge Ampuero




Deixo-te meu coração
livre como um pássaro
uma árvore
uma pedra
se me tocares
não importa
se a pedra cai
livre como árvore
ou se esta voa
livre como um pássaro.

(Trad. A.M.)

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4.11.15

Luís Quintais (Medo)





MEDO



Estratos assentam uns sobre outros.
São o vestígio submerso da tua vida.
Em certos momentos
um deslocamento, uma torção, uma força
que reconhecerás pelos efeitos, denuncia
a iminente ruína.

Consagra o que te resta do porvir
ao reforço desta casa.
Consagra-lhe a tua vigília e a tua aflição.
Consagra-lhe a inteligência do teu medo.


Luís Quintais

[Luz & sombra]

.

3.11.15

Miriam Reyes (Não tenho casa a que voltar)





No tengo casa a la que volver
ni esperanza de la que colgarme
por eso camino.

Las casas se derrumban a mi paso
la tierra es una alfombra de escombros.
Me detengo a admirar la belleza de las palas mecánicas
los movimientos de las excavadoras me erizan de deseo.
De noche las contemplo:
los perfiles inmóviles de las palas
descansando sobre el cielo azul cobalto
al lado de la luna de luz nacarada
son aún más hermosos que los brazos de los hombres que las manipulan
y las excavadoras
con sus enormes bocas abiertas y llenas todavía
de tierra y escombros
parecen enormes animales muertos.

Mis padres me enseñaron a no tener nunca nada.
Ellos me enseñaron a no volver nunca a casa
a no decir nunca esta casa es mía
aquí me quedo yo
en este lugar que amo.

Cierro la puerta y no necesito mirar atrás para saber
que la casa ya no existe más.
En ninguna parte sin hablar con nadie estoy
pero si nos cruzamos
puedo enseñarte a caminar sonriente sobre la desolación.


Miriam Reyes

[La mirada del lobo]




Não tenho casa a que voltar
nem esperança a que me agarre
nesse caminho.

As casas ruem quando eu passo
a terra é uma carpete de escombros.
Detenho-me a admirar a beleza das pás mecânicas
os movimentos das escavadoras eriçam-me de desejo.
Contemplo-as à noite:
Os perfis imóveis das pás
descansando sobre o céu azul cobalto
ao lado da lua de luz nacarada
são mais belos ainda que os braços dos homens que as operam
e as escavadoras
com suas enormes bocas abertas e cheias ainda
de terra e escombros
parecem enormes animais mortos.

Meus pais ensinaram-me a nunca ter nada.
Ensinaram-me a nunca voltar a casa
a não dizer nunca esta casa é minha
aqui me fico
neste lugar que amo.

Cerro a porta e não preciso olhar para trás
para saber que a casa já não existe.
Estou em nenhum lado e sem falar com ninguém
mas se nós nos cruzarmos
posso ensinar-te a caminhar sorridente sobre a desolação.

(Trad. A.M.)

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2.11.15

Luís Filipe Castro Mendes (Noutra praia)





NOUTRA PRAIA



Mas tu pensas
que o mar te não esqueceu:
por isso voltas cada ano a esta praia
onde tudo o que permanece te ignora;
e encaras o mar como se fosses tu,
ainda tu,
quem recebe na face a mudança dos ventos.


Luís Filipe Castro Mendes


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1.11.15

Miguel Hernández (Menos teu ventre)





MENOS TU VIENTRE



Menos tu vientre
todo es confuso.

Menos tu vientre
todo es futuro
fugaz, pasado
baldío, turbio.

Menos tu vientre
todo es oculto,
menos tu vientre
todo inseguro,
todo es postrero
polvo del mundo.

Menos tu vientre
todo es oscuro,
menos tu vientre
claro y profundo.

Miguel Hernández




Menos teu ventre
tudo é confuso.

Menos teu ventre
tudo é futuro
fugaz, passado
turvo, baldio.

Menos teu ventre
tudo é oculto,
menos teu ventre
é tudo inseguro
é póstumo tudo
poeira do mundo.

Menos teu ventre
tudo é escuro,
menos teu ventre
claro e profundo.

(Trad. A.M.)

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