3.7.14

Raul Brandão (São nadas)





São nadas que farão sorrir os outros.

São efectivamente nadas...

E no entanto reconheço que essa foi a melhor parte da minha existência, minuto único de saudade em que a luz se suspende e o universo se entranha para sempre na alma.

É a própria vida com um encanto que não torna, é o abrir dos olhos para uma manhã deliciosa, quando se salta pela primeira vez do ninho e se sente ainda o calor do ninho.

Tudo é novo e esplêndido.

Embriaga o ar que se respira e o primeiro sonho que sonhamos.

É novo e cheio de surpresas o Verão, quando os grandes barcos rabelos, a vela latina cheia de vento e o homem em ceroulas no alto da caranguejola, carregados de achas que cheiram a bravio, descem devagar as águas; é novo o Inverno quando a grande toalha líquida das cheias brilha e o sol reluz com mais gosto, ou quando aquela voz rude engrossa, começa a pregar e a lufada não cessa de bater nas vidraças.

– Está alguém fora da barra?

E as vigas do travejamento rangem como as quilhas dos navios, e a noite trágica, em que suponho ouvir gritos, nunca mais acaba.

A voz cresce...

Ouço-a agora perto, ouço-a melhor.


- RAUL BRANDÃO, Os Pescadores