4.9.25

Nuno Dempster (Tílias antes do solstício)

 



TÍLIAS ANTES DO SOLSTÍCIO 

 

Na cidade sabemos as estações
pelo lado vulgar,
o do sol que se inclina como os corpos.
O mais tem-se mostrado impróprio
para poemas.
Ninguém vai escrever
sobre as tílias urbanas que enchem
com o aroma de Junho
as noites desta praça.
Se a poesia se cala acerca
dos sinais de verão,
porque haviam as tílias de existir?
 

Nuno Dempster

 .

2.9.25

Roberto Fernández Retamar (Agradecendo o presente)

 



AGRADECIENDO EL REGALO DE UNA PLUMA DE FAISÁN



Con esta hermosa pluma tornasolada puedo
escribir las palabras en que García Lorca
dijo
Herido de amor huido.
Dijo que en tus ojos
había un constante desfile de pájaros,
Un temblor divino como de agua clara
sorprendida siempre sobre el arrayán.

Escribir las palabras en que Góngora dijo
A batallas de amor campos de pluma.

Escribir las palabras en que Antonio Machado
dijo
Hoy es siempre todavía.


Roberto Fernández Retamar

 

 

Com esta bela pena posso
escrever as palavras em que García Lorca
disse
Ferido de amor fugido.
Disse que em teus olhos
havia um constante desfile de pássaros,
um tremor divino como de água clara
surpreendida sempre sobre a murta.

Escrever as palavras em que Gôngora disse
A batalhas de amor campos de pluma.

Escrever as palavras em que Antonio Machado
disse
Hoje é sempre ainda.


(Trad. A.M.)

.

1.9.25

Raúl Zurita (Queridas todas coisas)

 





QUERIDAS TODAS COISAS

 

Do amor do Chile, do amor das coisas
todas, que de Norte a Sul, de Leste a
Oeste se abrem e falam
As torrentes e as neves que se tocam
e falam amando-se porque neste mundo
todas as coisas falam de amor;
as pedras com as pedras e os pastos
com os pastos
Porque assim se amam as coisas; as praias,
os desertos, as cordilheiras, os 
bosques mais ao Sul, os glaciares e
todas as águas que se abrem tocando-se
Para que tu as vejas se abrem
Só para que tu o escutes Chile se 
levanta
Só para que tu e eu nos olhemos
por todo horizonte, sim olha:

levantam-se

Raúl Zurita

(Trad. A.M.)

 

[El amor de Chile]

.


30.8.25

Jorge de Sena (No comboio de Edimburgo a Londres)




NO COMBOIO DE EDIMBURGO A LONDRES 

 

Que coisas se fariam — tão de seios
redonda e esbelta aqui sentada e loira
e lendo um livro idiota à minha frente!
As pernas que se juntam quanto abri-las
a duras mãos com dedos titilantes
para depois se unirem apertando
em húmidas paredes o que se entesa vendo-a…
E ah como a boca se arredonda rósea!
E os dedos que são esguios, serão sábios?
Tão sábios como os meus e minha boca?
Que loura juventude nem me vê — quem pode
envelhecer sem raiva aos olhos dela,
se de alma e de entre pernas se é tão jovem sempre?
 

Jorge de Sena

 .

28.8.25

Piedad Bonnett (Aqui dava o pai)




(IV)                                                                                                                                                  

 

Aquí golpeaba airadamente el padre sobre la mesa
causando un temblor de cristales, una zozobra en la sopa,
volcaba el jarro de su autoridad aprendida, de sus miedos,
de su ternura incapaz de balbuceos.
Adelantaba su dedo acusador y el silencio
era como una puerta obstinada que defendía a los niños del llanto.
Aquí solo hay ahora una mesa de cedro, unos taburetes,
un modesto frutero que alguien hizo
con doméstico afán.
¿Dónde los niños,
dónde el padre y la madre arrulladora?
La tarde esplendorosa asoma añil y roja detrás de los vitrales.
Y pareciera que tanta paz, tanto silencio pesaroso,
fuera el golpe de Dios sobre la mesa.
 

Piedad Bonnett

  

Aqui dava o pai um murro na mesa, de ira,
fazendo tremer os vidros e saltar a sopa,
virava o jarro da sua autoridade e dos seus medos,
da sua ternura incapaz de meias tintas.
Apontava um dedo acusador e o silêncio
era como uma porta obstinada
defendendo do pranto as crianças.
Aqui agora há apenas uma mesa de cedro,
alguns bancos, uma fruteira feita por alguém
com doméstico afã.
Onde é que estão as crianças,
onde está o pai e a mãe protectora?
A tarde esplendorosa aparece nas vidraças
em anil e vermelho.
Dir-se-ia que esta paz toda, este pesaroso silêncio,
são como que o murro de Deus sobre a mesa.
 

(Trad. A.M.)

 .

27.8.25

Julia Bellido (O poema)




EL POEMA

 

Es un precipitarse
a un abismo de sed que nunca cesa
y al que vamos ardiendo. 

Es como un arañazo
o una puñalada.
El aguijón, de pronto, de una abeja. 

Un chupito de vodka
en una madrugada de verano
donde ya no esperabas
encontrarte con nadie. 

Y es a la vez tan breve,
y resulta tan simple
como un cuenco de agua que se vuelca.

Julia Bellido

[Autorretrato]



É uma queda
num abismo de sede que nunca acaba
e onde vamos ardendo.

É como um arranhão
ou punhalada,
o aguilhão, de repente, de uma abelha.

Um gole de vodka
numa madrugada de verão
onde não esperavas já
encontrar ninguém.

E é a um tempo tão breve,
e vai-se a ver tão simples
como uma concha de água que se vira.


(Trad. A.M.)

.

25.8.25

Valerio Magrelli (Eu sou aquilo que falta)





IO SONO CIÒ CHE MANCA

 

Io sono ciò che manca
dal mondo in cui vivo,
colui che tra tutti
non incontrerò mai.
Ruotando su me stesso ora coincido
con ciò che mi è sottratto.
Io sono la mia eclissi
la contumacia e la malinconia
l’oggetto geométrico
di cui per sempre dovrò fare a meno.


Valerio Magrelli 

 

Eu sou aquilo que falta
no mundo em que vivo,
aquele que jamais encontrarei
de todos.
Rodando sobre mim mesmo,
coincido agora com aquilo que me roubaram.
Eu sou o meu eclipse,
a contumácia, a melancolia,
o objecto geométrico de que sempre
terei de prescindir.


(Trad. A.M.)

.