30.10.24

Circe Maia (Mudanças)




CAMBIOS

 

Unas veces el cambio se prepara
en forma subterránea pero estalla
de modo brusco, abierto:
nova en el cielo
inundación de luz en plena noche
lengua de fuego
asoma sorpresivamente en la mirada
del otro, vuelto Otro, vuelto ajeno.

Otros cambios se gestan
imperceptiblemente.

De una oscura manera
de un modo
silencioso
lo que no estaba está y lo que estaba
es destruido.

Pero tan gradualmente
que siempre quedan restos:
de la mirada, alguna
chispa
alguna vez.
De la voz, algún eco
(Palabra no enfriada
todavía.)

 

Circe Maia

 

Umas vezes a mudança faz-se
de forma subterrânea, mas explode
bruscamente, a céu aberto:
nova no céu 
inundação de luz em plena noite
língua de fogo 
assoma de surpresa no olhar 
do outro, tornado Outro, allheio vulto.

Outras mudanças surgem
imperceptivelmente.

De forma obscura
silenciosamente 
o que não estava está e o que estava
é destruído.

Mas tão gradualmente
que ficam sempre restos:
do olhar, uma
chispa
algumas vezes;
da voz, algum eco
(palavra ainda
não arrefecida).

(Trad. A.M.)

 .

29.10.24

David González (Metamorfose)




METAMORFOSIS

 

sobre la almohada,
en su lado de la cama,
lo que a primera vista
parece ser
el pétalo de una rosa
se revela, luego,
como un simple trozo
de cinta aislante.

David González

 

 

sobre a travesseira,
do seu lado da cama,
o que parece
à primeira vista
uma pétala de rosa
revela-se, depois,
um simples bocado
de fita isoladora.

(Trad. A.M.)

 .

27.10.24

Manuel Resende (Sai de casa)




SAI DE CASA

 

 

 

Rasga este poema depois de o leres.

E depois espalha os bocados

pelo vasto mundo

ou então na tua rua, vai à aldeia, à praia,

atira-o ao mar, deita-o ao lixo,

para que venha o vento, o sol, a chuva, os homens do lixo,

acabar com ele de vez.

Passado um dia,

sai de casa e procura

encontrá-lo de novo.

 

Manuel Resende

 

 

25.10.24

Cristina Peri Rossi (Assombro)




ASOMBRO

 

Enséñame - dices, desde tus veintiún años
ávidos, creyendo, todavía que se puede enseñar alguna cosa
y yo, que pasé de los sesenta
te miro con amor
es decir, con lejanía
(todo amor es amor a las diferencias
al espacio vacío entre dos cuerpos
al espacio vacío entre dos mentes
al horrible presentimiento de no morir de a dos)
 
te enseño, mansamente, alguna cita de Goethe
(“detente, instante, eres tan bello")
o de Kafka (una vez hubo, hubo una vez
una sirena que no cantó)
 
mientras la noche lentamente se desliza hacia el alba
a través de este gran ventanal
que amas tanto
porque sus luces nocturnas
ocultan la ciudad verdadera
 
y en realidad podríamos estar en cualquier parte
estas luces podrían ser las de New York, avenida
Broadway, las de Berlín, Konstanzerstrasse,
las de Buenos Aires, calle Corrientes
 
y te oculto la única cosa que verdaderamente sé:
sólo es poeta aquel que siente que la vida no es natural
que es asombro
descubrimiento revelación
que no es normal estar vivo
no es natural tener veintiún años
ni tampoco más de sesenta

no es normal haber caminado a las tres de la mañana
por el puente viejo de Córdoba, España, bajo la luz
amarilla de las farolas,
no es natural el perfume de los naranjos en las plazas
-tres de la mañana-
ni en Oliva ni en Sevilla
lo natural es el asombro
lo natural es la sorpresa
lo natural es vivir como recién llegada
al mundo
a los callejones de Córdoba y sus arcos
a las plazas de París
a la humedad de Barcelona
al museo de muñecas
en el viejo vagón estacionado
en las vías muertas de Berlín
 
Lo natural es morirse
 
sin haber paseado de la mano
por los portales de una ciudad desconocida
ni haber sentido el perfume de los blancos jazmines en flor
a las tres de la mañana,
meridiano de Greenwich
 
lo natural es que quien haya paseado de la mano
por los portales de una ciudad desconocida
no lo escriba
lo hunda en el ataúd del olvido
 
La vida brota por todas partes
consanguínea
ebria
bacante exagerada
en noches de pasiones turbias
pero había una fuente que cloqueaba
lánguidamente


y era difícil no sentir que la vida puede ser bella a veces
como una pausa
como una tregua que la muerte
le concede al goce.
 

CRISTINA PERI ROSSI
Detente, instante eres tan bello
(2021)

[Marcelo Leites]

 

 

Ensina-me – dizes, com os teus vinte anos
ávidos, julgando ainda que alguna coisa
se pode ensinar,
e eu, que passei dos sessenta,
olho-te com amor,
quer dizer, com distância
(todo amor é amor das diferenças
do espaço vazio entre dois corpos
do espaço vazio entre duas mentes
do pressentimento horrível de não morrer a dois)

e eu ensino-te, calmamente, alguna citação de Goethe
(‘detém-te, instante, és tão belo’)
ou de Kafka (em tempos houve, houve em tempos
uma sereia que não cantou)

enquanto a noite lentamente desliza para a aurora
coada por esta grande janela
que amas tanto
por suas luzes nocturnas
ocultarem a cidade verdadeira

e na verdade podíamos estar em qualquer lado
estas luzes podiam ser as de Nova Iorque, avenida
Broadway, ou de Berlim, Konstanzerstrasse,
ou Buenos Aires, calle Corrientes

e escondo-te a única coisa que verdadeiramente sei,
que só é poeta quem sinta que a vida não é natural
que é assombro
descoberta revelação
que não é normal estar vivo
não é natural ter vinte anos
nem tão pouco mais de sesenta

não é normal caminar às três da manhã
pela ponte antiga de Córdoba, Espanha,
com a luz amarela dos candeeiros,
não é natural o perfume das laranjeiras nas praças
- três da manhã -
seja em Oliva seja em Sevilha,
o natural é o assombro
o natural é a surpresa
o natural é viver como recém-chegada ao mundo
aos becos de Córdoba e suas arcadas
às praças de Paris
à humidade de Barcelona
ao museu de bonecas
no velho vagão estacionado
nas linhas mortas de Berlim

O natural é morrer

sem passear de mão dada
nas portas de uma cidade desconhecida
nem sentir o perfume dos brancos jasmins em flor
às três da manhã,
meridiano de Greenwich

o natural é que quem tiver passeado de mão dada
às portas de uma cidade desconhecida
não o escreva
que o afunde no caixão do olvido

A vida brota por todo o lado
consanguínea
ébria
bacante exagerada
em noites de turvas paixões
mas havia uma fonte que rumorejava
languidamente

e era difícil não sentir que a vida pode ser bela por veces
como uma pausa
como uma trégua que a morte
concede ao prazer.


(Trad. A.M.)

 .

24.10.24

Claudio Bertoni (O que no fundo)




LO QUE EN EL FONDO 
quiero
es que se muera.

para enterrarla en mí.
para ser su ataúd.
para llevarla siempre
dentro de mí.


Claudio Bertoni

 

 

O que no fundo
eu quero
é que ela morra.

para enterrá-la em mim.
para lhe servir de caixão.
para a ter sempre
dentro de mim.


(Trad. A.M.)

.

22.10.24

Manuel António Pina (A avó)




A AVÓ 

 

Tinha ao colo o gato velho
cansadamente passando
a sua branca mão pelo
pêlo dele preto e brando 

Sentada ao pé da janela
olhando a rua ou sonhando-a
todo o passado passando
a passos lentos por ela 

Dormiam ambos enquanto
a tarde se ia acabando
o gato dormindo por fora
a avó dormindo por dentro
 

Manuel António Pina 

[A voz da romazeira]

 

.

20.10.24

Chantal Maillard (O lençol)



LA SÁBANA


Y alargas la mano
buscando donde asirte y encuentras
la sábana.

¿Qué desfile de rostros
será ante tu cama
el del último día?

Tal vez vengan a verte
aquellos que no amaste.
O tal vez estés sola
y te laven el cuerpo
manos que nunca
acariciaste. 

Si al menos

pero no:
tan sólo es el tacto
de la sábana.

Chantal Maillard

[Revista Turia]


E estendendo a mão
a ver se te agarras
encontras o lençol. 

Que rostos desfilarão 
ao lado da cama
no último dia? 

Acaso virão ver-te
aqueles que não amaste.
Ou estarás só talvez
e lavarão teu corpo
mãos que nunca
afagaste. 

Se ao menos 

mas não:
é apenas o toque
do lençol.


(Trad. A.M.)

.


19.10.24

César Cantoni (Proponho deitarmo-nos)





TE PROPONGO ACOSTARNOS...

 

en el cuarto de baño,
en la cocina,
frente al espejo del ropero,
en las calles con autos
y transeúntes,
al pie de las estatuas,
sobre la tumba de los dictadores,
en las salas de cines y teatros,
en las cabinas telefónicas,
en los quirófanos,
donde haya un jergón,
un camastro,
una cucheta,
en 7 y 50,
en Nueva Delhi,
bajo la luna de Arequipa,
con la fogosidad de un cíclope,
imitando el aullido de los lobos,
isfrazados de súcubo
o de sierpe,
ya sin el peso de la culpa,
de mañana, de tarde,
a medianoche,
en plena madrugada,
con el primer albor...
y esperar abrazados
el abrazo imposible de la muerte.
 

César Cantoni 

 

... no quarto de banho,
na cozinha,
em frente do espelho do roupeiro,
na rua com carros
e transeuntes,
aos pés das estátuas,
sobre a campa dos ditadores,
nas salas de cinema e teatros,
nas cabinas telefónicas,
nas salas de cirurgia,
onde houver uma enxerga,
um catre,
um beliche,
em 7 e 50,
em Nova Deli,
sob a lua de Arequipa,
com o fogo de um ciclope,
a imitar o uivo dos lobos,
disfarçados de fauno
ou de serpente,
já sem o peso da culpa,
de manhã, de tarde,
à meia-noite,
em plena madrugada,
com a primeira alba…
e esperar abraçados
o abraço impossível da morte.


(Trad. A.M.)

.

17.10.24

Manuel Alegre (Quatro letras nos matam)

 



(Para Amália)

 

Quatro letras nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome.
Quatro facas amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome.

Este amor é de guerra. (De arma branca).
Amando ataco amando contra-atacas
este amor é de sangue que não estanca.
Quatro letras nos matam quatro facas.

Armado estou de amor. E desarmado.
Morro assaltando morro se me assaltas.
E em cada assalto sou assassinado.

Quatro letras amor com que me matas.
E as facas ferem mais quando me faltas.
Quatro letras nos matam quatro facas.

Manuel Alegre

[Livros e saltos]

.

15.10.24

Cecilia Casanova (Em nossa intenção)




EN CONMEMORACIÓN NUESTRA

 

Le pido al jardinero
que en conmemoración nuestra
no barra las hojas
Me recuerdan el jardín
de Via Aurelia Orientale
cuando los gansos nadaban en el estero
y la muerte andaba lejos


Cecilia Casanova

 

 

Peço ao jardineiro
em nossa intenção
que não varra as folhas.
Recordam-me o jardim
de Via Aurelia Orientale
quando os gansos nadavam no canal
e a morte ainda andava longe.


(Trad. A.M.)

 .

14.10.24

Circe Maia (Abril)




ABRIL

 

Este día tan lleno de niñez,
las cápsulas verdes de los eucaliptos
en el suelo, entre hojas.

El buen aroma frío y viejo trae
de la mano, consigo,
los paseos al sol y por un parque
en un abril de viento.

Por mirar la vereda así y oír el ruido
de las hojas, arriba;
por recoger las cápsulas y aspirar hasta el alma
su antiguo olor, se puede,

-a veces, sí, se puede –
abrir puertas cerradas hacía días remotos;
las mañanas del sol y un aire limpio, fino,
los bancos de madera por el borde del parque,
las veredas desiertas,
un viento decidido contra la cara, frío,
y en la mano, tibieza de la mano materna.

Circe Maia

 

 

Este dia tão pleno de meninice,
as cápsulas verdes dos eucaliptos
no chão, entre folhas.

O belo aroma frio e antigo
traz consigo, pela mão,
os passeios ao sol e pelo parque
num abril de vento.

Ao olhar a vereda assim, ouvindo
o ruído das folhas, em cima;
ao apanhar as cápsulas
e aspirar até à alma
esse odor antigo, pode-se

- às vezes, sim, pode-se –
abrir portas fechadas para dias remotos,
manhãs de sol e um ar limpo, muito fino,
os bancos de madeira pela beira do parque,
as veredas desertas,
um vento decidido contra a cara, frio,
e na mão, o morno da mão materna.


(Trad. A.M.)



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.

12.10.24

Luís Palma Gomes (Não há caminhos)




NÃO HÁ CAMINHOS

 

Afinal,
éramos apenas uma questão de tempo.

Amar
e como podíamos amar de amor inteiro?

Se em tudo
o princípio trazia o fim de tudo.


Luís Palma Gomes

.

10.10.24

Carmen Martín Gaite (Beco sem saída)




CALLEJÓN SIN SALIDA


Ya sé que no hay salida,
pero dejad que siga por aquí.
No me pidáis que vuelva.
Se han clavado mis ojos y mi
carne,
y no puedo volver.
Y no quiero volver.
Ya no me gritéis más que no hay
salida
creyendo que no oigo,
que no entiendo.
Vuestras voces tropiezan en mi costra
y se caen como cáscaras
y las piso al andar.
Avanzo alegre y sola
en la exacta mañana
por el camino mío que he
encontrado
aunque no haya salida.


Carmen Martín Gaite

 

Já sei que não há saída,
mas deixai-me ir por aqui,
não me peçais para voltar.
Cravaram-se-me os olhos
e a carne,
e não posso voltar,
e não quero voltar.
Não me griteis que não há
saída,
julgando que eu não oiço,
que não entendo.
Vossas vozes tropeçam-me na crosta
e caem como cascas,
que eu piso ao andar.
Avanço sozinha e alegre
na exacta manhã
pelo meu próprio caminho
que encontrei
embora não haja saída.


(Trad. A.M.)

.

9.10.24

Carlos Sahagún (Noite cerrada)




NOCHE CERRADA

 

Fue en la infancia, a la vera de los caminos, en el humo perdido
de los barcos que se alejaron.
Con ellos se marchaba mi corazón, con rumbo cierto
de eternidad. Y más allá, donde nuestra mirada no llegaba,
por pequeña o por triste, algo nos sostenía.
Dios, el abuelo de los niños, repartiendo
las gaviotas por el azul sin límites, estaba con nosotros
de sol a sol, como los viejos labradores,
y dejaba su mano cansada en nuestros hombros.
Por qué pensar en cosas tristes. Mis padres
volvían del trabajo con ira, se vivía mal en casa,
eran tiempos difíciles y oscuros.
Y, sin embargo, vi palomas, estoy cierto, tuve apego a las
atareadas de mi madre,
directamente conocí la vida
como algo, más o menos alegre, que no tenía final.
Yo siempre tuve un alma navegante
y una gran esperanza.
Desde el punto de vista de aquel niño
todo era claro y mañanero, quiero decir, todo era
mentira, puro engaño. Tú no estabas allí,
ni aquí, a la vera de los caminos, ni en el humo perdido
de los barcos. Un muchacho lloraba
frente al acantilado, bajo la dura enseña
de la noche sin Dios.

Carlos Sahagún

 

 

Foi na infância, à beira dos caminhos, no fumo perdido
dos barcos a afastar-se.
Com eles ia meu coração, com rumo certo
de eternidade. E mais além, onde o olhar não chegava,
por pequeno ou por triste, algo nos sustinha.
Deus, o avô das crianças, repartindo as gaivotas
no azul sem limites, estava connosco
de sol a sol, como os velhos agricultores,
e punha-nos no ombro sua mão cansada.
Para quê pensar em coisas tristes? Meus pais
voltavam do trabalho maldispostos, vivia-se mal em casa,
eram tempos negros e difíceis.
E todavia vi pombas, estou certo,
seguia a lida de minha mãe,
conheci a vida como algo,
mais ou menos alegre, que não tinha fim.
Eu tive sempre uma alma errante
e uma grande esperança.
Do ponto de vista desse menino
tudo era claro e matinal, ou seja, tudo era
mentira, engano puro. Tu não estavas lá,
nem aqui, à beira dos caminhos, nem no fumo perdido
dos barcos. Um moço chorava,
diante da falésia, sob o estandarte
da noite sem Deus.


(Trad. A.M.)

.

7.10.24

Luís Filipe Castro Mendes (Do medo)




DO MEDO

 



Não pode o poema 
circunscrever o medo, 
dar-lhe o rosto glorioso 
de uma fábula 
ou crer intensamente na sua aura. 
Nós permanecemos, quando 
escurece à nossa volta o frio 
do esquecimento 
e dura o vento e uma nuvem leve 
a separar-se das brumas 
nos começa a noite. 

Não pode o poema 
quase nada. A alguns inspira 
uma discreta repugnância. 
Outras vezes inclinamo-nos, reverentes, ante os epitáfios 
ou demoramo-nos a escutar as grandes chuvas 
sobre a terra. 
Quem reconhece a poesia, esse frio 
intermitente, essa 
persistência através da corrupção? 
Quase sempre a angústia 
instaura a luz por dentro das palavras 
e lhes rouba os sentidos. 
Quase sempre é o medo 
que nos conduz à poesia. 



Voltando ao medo: as asas 
prendem mais do que libertam; 
os pássaros percorrem necessariamente 
os mesmos caminhos no espaço, 
sem possibilidades de variação 
que não estejam certas com esse mesmo voo 
que sempre descrevem. 

Voltando ao medo: o poema 
desenha uma elipse em redor da tua voz 
e cerca-se de angústia 
e ervas bravias — nada mais 
pode fazer. 


LUIS FILIPE CASTRO MENDES
A Ilha dos Mortos
(1991)

 .

5.10.24

Belén Reyes (E o que é que acontece)




Y qué sucede
si de pronto un día
te das cuenta de que todo es mentira,
y no sabes si meterte a loca
a puta
o a suicida,
o arrancarte el alma
y sentarte en una silla
y ya
medio gilipollas,
ver cómo pasa la vida

¿Usted qué haría?


Belén Reyes
 

 

E o que é que acontece
se de repente um dia
te dás conta que é tudo mentira,
e não sabes se fazer de louca
de puta
ou suicida,
ou arrancar a alma
sentar-te
e já
meio apalermada,
ver como a vida acontece

Você aí que faria?


(Trad. A.M.)

.

4.10.24

Begoña Abad (Este meu empenho)

 



Este empeño mío
de nacer cada mañana,
me costará caro.
El mundo no soporta,
así como así,
que alguien se resista
a unirse a los adultos,
a los que saben más,
a los que dirigen mejor,
a los que “crecen”,
a los que medran,
a los que pueden.
No soporta
a alguien que se resista
a esa especie de muerte
que ellos llaman vida.
 

Begoña Abad 

[Poetas siglo XXI]  

 

Este meu empenho
de nascer cada manhã
há-de custar-me caro.
O mundo não suporta,
assim como assim,
que alguém resista
a juntar-se aos adultos,
àqueles que sabem mais,
que conduzem melhor,
aos que 'crescem',
aos que medram,
aos que podem.
Não suporta
a alguém resistir
a essa espécie de morte
que eles chamam de vida.

 
(Trad. A.M.)

.

2.10.24

Louise Glück (O lago)

 



THE POND



Night covers the pond with its wing.
Under the ringed moon I can make out
your face swimming among minnows and the small
echoing stars. In the night air
the surface of the pond is metal.

Within, your eyes are open. They contain
a memory I recognize, as though
we had been children together. Our ponies
grazed on the hill, they were gray
with white markings. Now they graze
with the dead who wait
like children under their granite breastplates,
lucid and helpless.

The hills are far away. They rise up
blacker than childhood.
What do you think of, lying so quietly
by the water? When you look that way I want
to touch you, but do not, seeing
as in another life we were of the same blood.


Louise Glück


A noite estende a asa sobre o lago
e eu consigo com a lua divisar
teu rosto, boiando por entre os peixes
e o reflexo das estrelas. A superfície do lago,
no sereno da noite, parece de metal.

Vejo-te os olhos abertos, onde há
uma lembrança que eu reconheço,
como se tivéssemos crescido juntos.
Os nossos póneis retouçavam na colina,
cinzentos e com malhas brancas. Agora,
pastam com os mortos, crianças expectantes
nas suas couraças de pedra,
lúcidos e indefesos.

Estão longe as colinas, erguem-se
mais escuras ainda que a infância.
Em que pensas tu, tão tranquilamente deitado
à beira de água? Pões-te assim e eu quero
tocar-te, mas retenho-me ao ver como
em outra vida pertencemos ao mesmo sangue.


(Trad. A.M.)

.