16.10.25

Victor Herrero de Miguel (Casta)





CASTA

 

Um homem desnuda-se diante dum rio.
Sabe que o importante nos é dado
sempre com leveza
                            e que a graça
foge daquilo que pesa.
Acerca-se lentamente, como a um templo.
Passa a soleira do ar.
Desfruta contemplando
a forma das pedras.
Mergulha com os peixes.
Leva tempo, atrás do adjectivo
que diga aquilo que sente
ao abraçar a água.
E achou-o por fim:
                              casta.


Victor Herrero de Miguel

(Trad. A.M.)

 

 >>  La linea amarilla (perfil)

 .

14.10.25

Vinicius de Moraes (Ausência)




AUSÊNCIA



Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
e eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
e eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
e todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


Vinicius de Moraes

[Vinicius de Moraes]

 .

12.10.25

Jenaro Talens (Paisagens-2)





 PAISAGENS-2


A florista passa à frente do café. Leva uma menina
pela mão. Vai muito depressa. Ao fundo da rua
um carro aguarda no meio da neve.
O homem mal baixa o vidro.
Posso ver-lhe, no entanto, o casaco de couro,
o chapéu texano e o sorriso. São
rosas ou crisântemos? Várias pétalas caem
sobre a poeira do chão. Envolto num jornal
o ramo está agora nos braços da menina.
O capucho do seu anoraque como uma imagem rasgada.
As flores são de plástico no café.
Olho para esta imitação de jardim,
o contorno apagado das túlipas, assépticas,
lembrando o fastio das empregadas
a servir as bebidas. Tomo o meu brunch.
É domingo. No canto ao lado
dois jovens beijam-se e falam das montanhas do Perú.

 
Jenaro Talens

(Trad. A.M.)

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11.10.25

Raquel Lanseros (O homem que espera)

 



O HOMEM QUE ESPERA

 

A colherita triste remexe
uma vez mais a borra do café.
Dez dedos bailam no tampo da mesa do bar
um tango à média luz com o esquecimento.
               Está sozinho, cansado,
               sentado no meio de gente alheia
              que olha para ele sem o ver.
Um anel de ouro gasto pelos anos
é o único traço de brilho que lhe resta.

A paixão rebentou-lhe nas mãos uma vez.
E perdeu a esperança nos abismos
                              de um coração humano.

Não há desventura que lhe fosse alheia,
nem humilhação que lhe seja desconhecida.
É por isso que sabe falar de amor.
Por isso espera.

 

Raquel Lanseros

(Trad. A.M.)

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9.10.25

Dinis Moura (Eu queria um poema)




eu queria um poema que pagasse as minhas facturas 
m poema que reduzisse o meu ácido úrico 
um poema que fosse passear o meu cão 
um poema que me ajudasse 
a tirar bem as nódoas do vinho tinto
eu queria um poema que acalmasse os meus vizinhos 
um poema que me tirasse de vez o vício do tabaco
um poema que me explicasse deus e as mulheres 
eu queria um poema que me afugentasse as insónias
um poema que calasse a boca àquele fascista que todos
   os dias palra no telejornal 
um poema que fosse dietético analgésico e hidratante
um poema com a magia
e a garra do futebol  

eu queria um poema curto
exacto fiável funcional 
e com garantia 

mas quando eu abro as antologias
infelizmente ou inexplicavelmente 
eu só me deparo com poemas  

nos dias em que me acho
menos paciente e mais birrento 
eu pergunto-me sempre:
para que porra servem afinal os poetas?
 

Dinis Moura

 .

7.10.25

Valeria Pariso (Podia dizer-se que chove)




Podría decirse: llueve
hay cientos
de inesperadas
gotas
cayéndose del mundo.

 
Valeria Pariso

 

Podia dizer-se que chove
há centenas
de gotas
inesperadas
a caírem do mundo.


(Trad. A.M.)

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6.10.25

Santiago Sylvester (O poema não escrito)




EL POEMA NO ESCRITO


Una declaración honesta en la pared de una calle: 
“No sé por dónde empezar”.

En ese mensaje
hay un apremio que nos ha llegado, un desconcierto, 
y no estaría bien invadirlo por ostentación, 
por irresponsabilidad. 

Ahí se oculta un poema, 
y un poema que se oculta en la pared de una calle 
merece estar donde está: donde arranca una moto, pasa una  chica y 
los loros cruzan llenos de noticias.
Que nadie caiga en la vanidad de escribirlo.

Santiago Sylvester

[Marcelo Leites]

 

 

Uma declaração honesta numa parede na rua:
‘Não sei por onde começar’.

Nessa mensagem
há uma urgência que nos toca, um desconcerto,
e não ficaria bem invadi-la por ostentação,
por irresponsabilidade.

Ali oculta-se um poema,
e um poema que se oculta na parede de uma rua
merece estar onde está: onde arranca uma moto,
passa uma miúda e os carros se cruzam apressados.
Que ninguém caia na vaidade de o escrever.


(Trad. A.M.)

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4.10.25

Ferreira Gullar (Gato pensa?)




 

GATO PENSA? 

 

Dizem que gato não pensa
mas é difícil de crer.
Já que ele também não fala
como é que se vai saber?
A verdade é que o Gatinho
quando mija na almofada
vai depressa se esconder:
sabe que fez coisa errada.
E se a comida está quente,
ele, antes de comer,
muito calculadamente
toca com a pata pra ver.
Só quando a temperatura
da comida está normal
vem ele e come afinal.
E você pode explicar
como é que ele sabia
que ela ia esfriar?
 

Ferreira Gullar

 .

2.10.25

Francisco Caro (Como a praia)



COMO LA PLAYA

 

Como la playa ociosa
a final de septiembre, allí
donde la luz asume que su vigor caduca
ajeno a la existencia de los otros,
así contempla el hombre
mansa y leve su mano, la herramienta
con la que atesorara
el esplendor azul de cada instante.
 

Francisco Caro

 

Como a praia ociosa
nos fins de Setembro, lá
onde a luz assume que seu vigor falece
alheio à existência dos outros,
assim contempla o homem
mansa e leve sua mão, o instrumento
com que guardara
o esplendor azul de cada instante.
 

(Trad. A.M.)

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1.10.25

Francisco García Marquina (Autorretrato)



AUTORRETRATO 

 

Porque la muerte no puede tener razón
Francisco, fiel amante de la tierra,
espectador de todo, seductor a traición,
contradictorio y lleno de humor de Dios,
nació sobre las ruinas de un jovenzuelo
lírico y barroco, viajero gravemente
enamorado, hijo –sin duda póstumo–
de un tierno niño juicioso, muerto
por sobredosis de cordura.
 

Francisco García Marquina



Porque a morte não pode ter razão
Francisco, amante fiel da terra,
de tudo espectador, sedutor à traição,
contraditório e cheio de humor de Deus,
nasceu sobre as ruínas de um mocinho
lírico e barroco, viajante gravemente
apaixonado, filho – póstumo, sem dúvida –
de um terno menino sensato, morto
por sobredose de prudência.


(Trad. A.M.)



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