(Estou cansada de ti, Hemingway...)
Nesse dia 25 de Agosto, a minha mulher e eu libertámos os nossos impulsos mais secretos, como se estivéssemos a libertar as caves do Ritz, libertámo-nos talvez demasiado.
Começámos por pedir dois daiquiris e, quando me animei um pouco, contei-lhe o choque militar de Malraux com Hemingway no Ritz.
“Estou cansada de ti, Hemingway”, disse-me de repente a minha mulher, filha e neta de militares.
E eu deveria ter-me lembrado nesse momento que nela pernoitava – o verbo mais adequado é precisamente este termo castrense, pernoitar – uma fobia sua do tipo militar, um ódio apenas nocturno e com álcool pelo meio, uma oculta mas séria aversão contra mim e sobretudo contra a minha mania de que alguém finalmente um dia, mesmo que seja sob a forma de mentira piedosa, me diga que me pareço fisicamente com Hemingway.
Mas não dei a devida importância àquele primeiro toque de agressividade.
Pedimos mais dois daiquiris e depois outros dois e a seguir mais dez, e eu passei a chamar aos daiquiris cocktails Malraux.
Soava bem, parecia-me que soava na perfeição: cocktails Malraux.
Mas já se tinha tornado tudo perigoso, como um gigantesco cocktail molotov.
De repente descobrimos que estávamos ali passava já da madrugada e, para o dizer em termos bem hemingwaianos, na outra margem e entre as árvores.
Rindo como felizes e verdadeiros palermas, as horas tinham-nos passado a voar e fazia-se-nos dia no bar.
- ENRIQUE VILA-MATAS, Paris nunca se acaba, 68.
Nesse dia 25 de Agosto, a minha mulher e eu libertámos os nossos impulsos mais secretos, como se estivéssemos a libertar as caves do Ritz, libertámo-nos talvez demasiado.
Começámos por pedir dois daiquiris e, quando me animei um pouco, contei-lhe o choque militar de Malraux com Hemingway no Ritz.
“Estou cansada de ti, Hemingway”, disse-me de repente a minha mulher, filha e neta de militares.
E eu deveria ter-me lembrado nesse momento que nela pernoitava – o verbo mais adequado é precisamente este termo castrense, pernoitar – uma fobia sua do tipo militar, um ódio apenas nocturno e com álcool pelo meio, uma oculta mas séria aversão contra mim e sobretudo contra a minha mania de que alguém finalmente um dia, mesmo que seja sob a forma de mentira piedosa, me diga que me pareço fisicamente com Hemingway.
Mas não dei a devida importância àquele primeiro toque de agressividade.
Pedimos mais dois daiquiris e depois outros dois e a seguir mais dez, e eu passei a chamar aos daiquiris cocktails Malraux.
Soava bem, parecia-me que soava na perfeição: cocktails Malraux.
Mas já se tinha tornado tudo perigoso, como um gigantesco cocktail molotov.
De repente descobrimos que estávamos ali passava já da madrugada e, para o dizer em termos bem hemingwaianos, na outra margem e entre as árvores.
Rindo como felizes e verdadeiros palermas, as horas tinham-nos passado a voar e fazia-se-nos dia no bar.
- ENRIQUE VILA-MATAS, Paris nunca se acaba, 68.