OFÍCIO DE MORRER
eu imagino assim a
morte de pavese:
era um quarto de hotel
em turim,
decerto um hotel
modesto, de uma ou duas
estrelas, se é que
havia estrelas.
uma cama de pau, de
verniz estalado,
rangendo de encontros
fortuitos, um colchão mole e húmido
com a cova no meio, a
do costume.
corria o mês de agosto
com sua terra escura
encardindo as
cortinas. nada ia explodir
naquele mês de agosto
àquela hora da tarde
de luz adocicada. e
alguém pusera
três rosas de plástico
num solitário verde.
vejo como pavese
entrou, como pousou a maleta
com indiferença,
dobrou alguns papéis
e despiu o casaco
(como nos filmes
italianos da época).
depois foi aos lavabos
no corredor, ao fundo.
talvez tenha pensado
que esta vida é uma
mijadela ou que.
voltou ao quarto, havia
uma fétida alma em
tudo aquilo.
ele abriu a janela
e pediu a chamada
telefónica.
a noite ia caindo sem
palavras, mesmo sem buzinas
excessivas. encheu um
copo de água. e esperou.
quando a campainha
tocou, havia muito pouco
a dizer e ele já o tinha
dito:
já tinha dito quanto
amar nos torna
vulneráveis; e
míseros, inermes;
que é precisa
humildade, não orgulho;
e parar de escrever;
e que dessa nudez é
que morremos.
foi mais ou menos isto
– a nossa condição
demasiado humana, a
voz humana, a frágil
expressão disso tudo,
uma firmeza tensa.
«e até rapariguinhas o
fizeram».
tinham nomes obscuros
e nenhum
remorso lancinante,
ninguém pra falar delas.
a mais temida coisa é
a coragem
do que parecia fácil:
tudo o que não se disse
carregado num acto de
súbitas fronteiras.
foi mais ou menos
isto. não sei se ele a seguir
pôs do lado de fora um
letreiro
com do not disturb ou
coisa assim
nem se tomou as
pastilhas uma a uma, ou se as contou.
não sei se o encontrou
uma criada,
se a polícia veio
logo, se deixou uma carta
ao seu melhor amigo,
se apagou a luz,
nem se pousou ao lado
a carteira, o relógio, a esferográfica.
não sei se entrou na
morte como quem
traz imagens pungentes
na cabeça,
palavras marteladas de
desejo, ou como quem friamente
está no avesso do sono
e vai calar-se e é justo.
não sei se foi assim,
se existe uma outra
verdade imaginável ou
vedada. sei que ele tinha
um olhar decidido,
alguma instigadora, e quarenta e dois anos,
e sei que nessa altura
há já poucas verdades
e nenhuma dimensão biográfica
na morte.
já vem nas escrituras.
eu prefiro
dizer que ele fechou a
porta à chave
e sei que era viril a
sua transparência.
Vasco Graça Moura