9.6.21

Vasco Graça Moura (Ofício de morrer)


OFÍCIO DE MORRER

 

eu imagino assim a morte de pavese:
era um quarto de hotel em turim,
decerto um hotel modesto, de uma ou duas
estrelas, se é que havia estrelas. 

uma cama de pau, de verniz estalado,
rangendo de encontros fortuitos, um colchão mole e húmido
com a cova no meio, a do costume.
corria o mês de agosto com sua terra escura

encardindo as cortinas. nada ia explodir
naquele mês de agosto àquela hora da tarde
de luz adocicada. e alguém pusera
três rosas de plástico num solitário verde. 

vejo como pavese entrou, como pousou a maleta
com indiferença, dobrou alguns papéis
e despiu o casaco (como nos filmes
italianos da época). depois foi aos lavabos 

no corredor, ao fundo. talvez tenha pensado
que esta vida é uma mijadela ou que.
voltou ao quarto, havia
uma fétida alma em tudo aquilo. 

ele abriu a janela
e pediu a chamada telefónica.
a noite ia caindo sem palavras, mesmo sem buzinas
excessivas. encheu um copo de água. e esperou. 

quando a campainha tocou, havia muito pouco
a dizer e ele já o tinha dito:
já tinha dito quanto amar nos torna
vulneráveis; e míseros, inermes; 

que é precisa humildade, não orgulho;
e parar de escrever;
e que dessa nudez é que morremos.
foi mais ou menos isto – a nossa condição

demasiado humana, a voz humana, a frágil
expressão disso tudo, uma firmeza tensa.
«e até rapariguinhas o fizeram».
tinham nomes obscuros e nenhum 

remorso lancinante, ninguém pra falar delas.
a mais temida coisa é a coragem
do que parecia fácil: tudo o que não se disse
carregado num acto de súbitas fronteiras. 

foi mais ou menos isto. não sei se ele a seguir
pôs do lado de fora um letreiro
com do not disturb ou coisa assim
nem se tomou as pastilhas uma a uma, ou se as contou. 

não sei se o encontrou uma criada,
se a polícia veio logo, se deixou uma carta
ao seu melhor amigo, se apagou a luz,
nem se pousou ao lado a carteira, o relógio, a esferográfica. 

não sei se entrou na morte como quem
traz imagens pungentes na cabeça,
palavras marteladas de desejo, ou como quem friamente
está no avesso do sono e vai calar-se e é justo. 

não sei se foi assim, se existe uma outra
verdade imaginável ou vedada. sei que ele tinha
um olhar decidido, alguma instigadora, e quarenta e dois anos,
e sei que nessa altura há já poucas verdades 

e nenhuma dimensão biográfica na morte.
já vem nas escrituras. eu prefiro
dizer que ele fechou a porta à chave
e sei que era viril a sua transparência.


Vasco Graça Moura

 [Poesia &limitada]

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