30.10.18

Leopoldo Panero (Epitáfio)






EPITAFIO                           



Ha muerto
acribillado por los besos de sus hijos,
absuelto por los ojos más dulcemente azules
y con el corazón más tranquilo que otros días,
el poeta Leopoldo Panero,
que nació en la ciudad de Astorga
y maduró su vida bajo el silencio de una encina.
Que amó mucho,
bebió mucho y ahora,
vendados sus ojos,
espera la resurrección de la carne
aquí, bajo esta piedra.

Leopoldo Panero





Morreu
crivado de beijos dos filhos,
absolvido pelos mais doces olhos azuis
e com o coração mais tranquilo que noutros dias,
o poeta Leopoldo Panero,
que nasceu na cidade de Astorga
e sua vida levou à sombra do silêncio de uma azinheira.
Que amou muito,
bebeu muito e agora,
de olhos vendados,
espera a ressurreição da carne
aqui, sob esta pedra.

(Trad. A.M.)


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28.10.18

Juan Manuel Villalba (O silêncio)






O SILÊNCIO 



Vão caindo as folhas do silêncio,
que fica despido feito árvore,
inteiro, definido. Entra em casa
e toma as esquinas, os recantos
batidos pelo sol, trama de poeira
suspensa no ar. Para além da fundura
da tarde, o silêncio uiva de longe
como um lobo impossível na freguesia.
Inundou todo o espaço da casa,
sabendo agora que eu sou o inimigo.
E vence-me, sem ignorar a minha
humilhante rendição.

Juan Manuel Villalba

(Trad. A.M.)

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26.10.18

Mário de Carvalho (Arrepiar conversa)






(Arrepiar conversa)



Joel conseguiu perceber que a proximidade entre Eduarda e Jorge não constituía apenso do seu processo.

E assim como aqueles caminheiros que vão afoitos e alegres, numa manhã orvalhada, em que há libélulas e repipilam aves, e saltam uma vedação para ir colher lá longe, no meio do prado, a papoula brilhante que o enfeita, ao serem surpreendidos pelo feroz touro que, incomodado, já escarva o solo com a pata, baixando as hastes e levantando grumos de terra por todo o lado, se apressam a saltar de novo a vedação e se afastam do local, assobiando baixinho, ainda mal certos de que a vedação aguente a massa bruta em investida, assim, dizia eu, Joel Strosse resolveu arrepiar conversa.

MÁRIO DE CARVALHO
Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto
(1995)

24.10.18

Leopoldo Panero (Canção da beleza melhor)





CANCIÓN DE LA BELLEZA MEJOR



¿Tan alegre estás tú que te has quedado,
corazón, sin palabras?
¿Ya no sabes decir? ¿Hablar no sabes
como ayer? ¿Estás mudo
para siempre y en paz? ¿No ves los ojos
más dulces cada día que cantaste;
la frente un poco triste, levantada
pálidamente hacia el cabello leve
la cabeza de niña...?
¿No es mejor y más honda su belleza?
¿Tan alegre estás tú que te has quedado
ciego como al andar sobre la nieve?
¿No ves ya su hermosura? ¿No la sabes
decir? ¿Estás callado
para mejor soñar lo que has vivido?
¿No queda primavera entre tus huesos?
¡Oh vida retirada en lo más dulce!
¡Oh límite en penumbra, casi el alma!

Leopoldo Panero




Tão alegre estás tu que te ficaste,
coração, sem palavras?
Não sabes já que dizer? Falar
não sabes como ontem? Estás mudo
para sempre e em paz? Não vês os olhos
mais doces cada dia que cantaste;
a fronte um pouco triste, erguida
a cabeça de menina
palidamente para o cabelo leve...
Não está melhor e mais profunda sua beleza?
Tão alegre estás tu que ficaste cego
como a andar sobre a neve?
Não vês já sua beleza? Não a sabes
dizer? Estás calado
para melhor sonhar o que viveste?
Não te resta Primavera nos ossos?
Oh vida retirada no mais doce!
Oh limite em penumbra, a alma quase!

(Trad. A.M.)




>>  A media voz (20p) / Poesi.as (21p) / Nodulo (perfil) / Wikipedia


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22.10.18

Javier Egea (Eram tempos bem duros)






Eran tiempos muy duros. No era fácil vivir.
Por eso madrugué por los despachos,
volví mañana, les expuse el caso
y conseguí un empleo para ella:
tras mirarla a los ojos -al menos eso dijo-
le entregaron la llave más preciada,
pusieron a su cargo el alumbrado.
Yo hice lo que pude, lo que en mi mano estaba,
y no la he vuelto a ver:
aquella misma noche me cortaron la luz.


Javier Egea





Eram tempos bem duros, viver não era fácil.
Por isso madruguei pelas repartições,
voltei dia seguinte, expus o caso
e consegui um emprego para ela.
Depois de a mirarem nos olhos - assim pelo menos disse ela -
entregaram-lhe a chave mais cobiçada
confiando-lhe o cargo da iluminação.
Eu fiz aquilo que pude, o que estava na minha mão,
e não tornei a vê-la:
nessa mesma noite cortaram-me a luz.

(Trad. A.M.)

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20.10.18

Camilo Pessanha (Branco e vermelho)






BRANCO E VERMELHO

                  

A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento. 

Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser, suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim! 

Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distância reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)

Na areia imensa e plana
Ao longe a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana...
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte. 

Até o chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis. 
A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Palidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra. 

Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror...
Até que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem!
Ei-los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor... 

E ali fiquem serenos,
De costas e serenos.
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas.
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas! 

A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento. 

Ó morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa...
Tudo vermelho em flor...

Camilo Pessanha


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18.10.18

Eugenio Montejo (Meu amor)





MI AMOR




En otro cuerpo va mi amor por esta calle,
siento sus pasos debajo de la lluvia,
caminando, soñando, como en mí hace ya tiempo...
Hay ecos de mi voz en sus susurros,
puedo reconocerlos.
Tiene ahora una edad que era la mía,
una lámpara que se enciende al encontarnos.
Mi amor que se embellece con el mar de las horas,
mi amor en la terraza de un café
con un hibisco blanco entre las manos,
vestida a la usanza del nuevo milenio.
Mi amor que seguirá cuando me vaya,
con otra risa y otros ojos,
como una llama que dio un salto entre dos velas
y se quedó alumbrando el azul de la tierra.


Eugenio Montejo




Noutro corpo segue meu amor por esta rua,
sinto os seus passos sob a chuva,
caminhando, sonhando, como em mim há tempo...
Há ecos de minha voz nos seus sussurros,
posso reconhecê-los.
Tem agora uma idade que era a minha,
uma lâmpada que se acende ao encontrar-nos.
Meu amor que se adorna com o mar das horas,
meu amor na esplanada de um café
com um hibisco branco entre as mãos,
vestida à moda do novo milénio.
Meu amor que prosseguirá quando eu partir,
com outro riso e outros olhos,
como uma chama que deu um salto entre duas velas
e ficou iluminando o azul terreno.

(Trad. J.E.Simões)

[Luz & sombra]


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16.10.18

Estela Figueroa (Princípios de Fevereiro)





PRINCIPIOS DE FEBRERO



No.
El hermoso verano
no ha terminado aún.
Nos queda un mes para estarse en los patios
y descalzarnos
mientras charlamos
de esto y aquello
sin ton ni son.
Todavía habrá hombres de brazos tostados
en las calles
de la ciudad envuelta por la noche
brotada toda
como un lazo de amor.

No.
No me sostengas que no voy a caerme.
Sólo se caen las estrellas fugaces
y yo -te dije-
quiero permanecer.

Un hombre es bueno para una noche.
Cuando amanece es un reflejo dorado
sobre la cama donde se toma café.
Y es agradable el olor que deja.
Dura todo un día.
Pero no toda la vida.

Luego hay que descansar.
El libro de Kavafis y el de Pavese
sobre la mesa de luz.
Hay que aminorar la marcha.
Sentarse un rato a solas
en el sillón del patio.
Mujeres: tendríamos
que aprender de los gatos.
Cómo agradecen el tazón
que rebosa de leche!
Falta para el otoño.
Que nos encuentre intactas.
Sin habernos negado
a estas pasiones
que cada tanto
asaltan.

Estela Figueroa




Não,
ainda não terminou
o belo Verão.
Sobra um mês para se ficar no pátio
e descalçar
enquanto falamos
disto e daquilo
sem tom nem som.
Haverá ainda homens de braços queimados
pelas ruas
da cidade que a noite envolve
como um laço de amor.

Não,
não me segures que eu não caio,
as estrelas cadentes é que caem
e eu quero, já te disse, permanecer.

Um homem é bom para uma noite,
quando vem o dia é um reflexo dourado
sobre a cama onde se toma o café.
E é agradável o cheiro que deixa,
dura um dia inteiro,
mas não a vida toda.

Depois há que descansar,
o livro de Kavafis e o de Pavese
na mesinha.
Há que reduzir a marcha,
sentar-se um pouco a sós
no cadeirão do pátio.
Nós, mulheres, devíamos
aprender com os gatos
- como agradecem o prato de leite
a transbordar!
Ainda falta para o Outono
- que nos venha achar intactas,
sem nos negarmos a essas paixões
que às vezes nos assaltam.

(Trad. A.M.)

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14.10.18

Leopoldo Castilla (O recanto)






EL RINCÓN



Se acuesta en el hueco del trinchante oscuro.
Visto desde ahí
el mueble parece un ataúd. El niño juega
a que ya se ha muerto.
O va a la cocina, a un rinconcito
y mira a las mujeres pelando choos
mientras cuentan historias de mayores
(esas bandadas de sentidos no lo alcanzan
pues él todavía no llegó al presente).

Mira a su madre. Si ella está allí, debe ser de este mundo.
Él, que viene de tan lejos, no tiene donde ir.
Juega a que está vivo
mientras arde, indefenso, el rincón
y más allá toda la tierra,
de vida
arde,
inocente,
alrededor de ese leve meteorito.


Leopoldo Castilla




Deita-se no vazio do escuro cortante.
Visto dali
o móvel parece um ataúde. A criança brinca
a ter morrido.
Ou vai à cozinha, a um canto
e olha para as mulheres a esfolhar milho
enquanto contam histórias dos antigos
(que não o atingem
pois ele ainda não chegou ao presente).

Olha para a mãe, se ela ali está, há-de ser
deste mundo.
Ele, vindo de tão longe, não tem aonde ir.
Brinca a estar vivo,
enquanto o recanto arde, indefeso,
o recanto e mais além a terra toda,
arde de vida,
inocente,
em volta desse leve meteorito.

(Trad. A.M.)

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12.10.18

Gil Vicente (Nós somos vida das gentes)






(Nós somos vida das gentes)


Sempre é morto quem do arado
há-de viver.

Nós somos vida das gentes,
e morte de nossas vidas;
a tiranos pacientes
que a unhas e a dentes
nos têm as almas roídas.
Pera que é parouvelar?
Que queira ser pecador
o lavrador,
não tem tempo nem lugar
nem somente d'alimpar
as gotas do seu suor.

N'ergueija bradam co'ele,
porque assoviou a um cão;
e logo excomunhão na pele,
o fidalgo, maçar nele,
atá o mais triste rascão.
Se não levam torta a mão,
não lhe acham nenhum dereito.
Muito atribulados são!
Cada um pela o vilão
per seu jeito.

Trago a prepósito isto,
perque veio a bem de fala.
Manifesto está e visto
que o bento Jesu Cristo
deve ser homem de gala.
E é rezão que nos valha
neste serão glorioso,
que é gram refúgio sem falha.
Isto me faz forçoso,
e não estou temeroso
nemigalha.


GIL VICENTE
Auto da Barca do Purgatório
(excerto)


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10.10.18

Gloria Fuertes (Carta a mim mesma)





CARTA A MI MISMA



Querida Glorita:
Hace mucho tiempo que no me gusta cómo estás,
deberías de ir a Dios y que hiciera un reconocimiento a fondo,
o que te recetara Sumanoentucabeza.
Esas bolsas que empiezas a tener bajo los ojos
pueden ser de llorar -como tú dices-
pero también síntoma de corazón.
Cuídate hija, por el bien de todos.
Sé que tienes miedo,
un miedo solo,
un tierno miedo,
miedo a que no….
¡ Alégrate Glorita
que quien amas te vive !


Gloria Fuertes





Querida Glorita:
Há muito que não me agrada o teu estado,
devias ir ter com Deus para te fazer um exame
ou receitar Sua-mão-por-cima-da-cabeça.
Esses papos que te começam a aparecer por baixo dos olhos
podem ser de chorar - como dizes -
mas também sintoma de coração.
Cuida-te filha, para o bem de todos.
Bem sei que tens medo,
um medo só,
um medo mole,
medo que não...
Alegra-te Glorita
que quem tu amas te vive!

(Trad. A.M.)

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8.10.18

Gloria Bosch (Intervenção)




INTERVENCIÓN



El amor coge el bisturí
y antes de marcharse
te hace una incisión en el alma.
Es su peculiar manera de decir adiós.


Gloria Bosch 





Pega no bisturi o amor
e antes de ir embora
faz-te uma incisão na alma.
É o seu modo de dizer adeus.


(Trad. A.M.)

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6.10.18

Mário de Carvalho (Lançar a escada)






(Lançar a escada) 



Entrou, lançou o saco para um canto, atirou-se para o sofá e foi contando das ruins contingências do caminho, dos autocarros sobrelotados, dum grupo de rufias provocadores no barco, do francês que falava pelos cotovelos, acrescentando drama e complicação onde não a tinha encontrado e captando descaradamente a benevolência de Jorge, neste particular bastante ingénuo.

Atentos como estais, já reparastes que Eduarda sub-repticiamente já tinha abandonado no trato o ‘senhor doutor’, passando a ‘doutor’, abrindo a progressão para o ‘você’, ou mesmo ‘o Jorge’ e, sabe-se lá, se ‘tu’.

A isto se chama, em linguagem popular, esperta para as estratégias, ‘lançar a escada’.



MÁRIO DE CARVALHO
Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto
(1995)


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4.10.18

Gisela Galimi (Carta astral)





CARTA ASTRAL



Ella no tiene la culpa
las constelaciones se alinearon pétreas
en su nacimiento.
No tiene la culpa piedra
de la rigidez del miedo.

Sus moléculas rocas
arman coraza
para protegerla.
Pero adentro,
un corazón de lava
le clava
la duda. 

Gisela Galimi





Ela não tem culpa
as constelações é que se alinharam
pétreas em seu nascimento.
Não tem a pedra culpa
da rigidez do medo.

Suas moléculas rochas
fazem couraça
para protegê-la.
Mas dentro
um coração de lava
crava-lhe
a dúvida.

(Trad. A.M.)

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2.10.18

Montanha (CA-2)





MONTANHA



Não duna
que o vento desfaz
       Antes montanha


(A.M.)

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