4.9.18

Mário de Carvalho (Um frasco em cada mão)





(Um frasco em cada mão) 



Eu preparava-me para descrever agora melhor o gabinete de Bernardo, e já ensaiava vários ângulos, com movimentos cinematográficos do olhar, a que não faltava um contrapicado, quando alguém, truz, truz!, bateu à porta e me estragou os arranjos.

A porta entreabriu-se e espreitou uma cara feminina, sorridente, a mais não poder.

Eva, a – por assim dizer – namorada de Bernardo, apresentava-se triunfal com dois boiões, dos de compota, um em cada mão.

O que eu passo agora a contar é inacreditável.

Prossigo a custo, após uma perplexa hesitação.

A vida, não raro, ficciona, devaneia, absurdiza e eu hei-de conformar-me a ela, mais do que ao famoso pacto de verosimilhança outorgado com o leitor.

Mas reparem no conteúdo dos frascos para que não digam que estou a mentir.

Um está vazio, pronto, não conta.

E o outro?


MÁRIO DE CARVALHO
Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto
(1995)

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