28.2.18

Cristian Aliaga (Ressentidos, remotos, artistas)





RESENTIDOS, REMOTOS, ARTISTAS



Resentidos, remotos, artistas
donde los artistas son pordioseros
alzamos copas en lo oscuro
devorados por el país.

Sin lástima ni perdón,
abrimos nuestros libros
rodeados de asesinos.

Nada ilumina como el fósforo
en mitad de la noche.

Cristian Aliaga




Ressentidos, remotos, artistas
onde os artistas são pobres de pedir
erguemos os copos no escuro
devorados pelo país.

Sem lástima nem perdão
abrimos os livros
rodeados de assassinos.

Nada ilumina como o fósforo
no meio da noite.

(Trad. A.M.)

.

27.2.18

Ana Margarida de Carvalho (Lugares comuns)






(Lugares comuns)



Não consentia que os mesmos adjectivos andassem incestuosamente casados com os mesmos substantivos.

Os areais imensos/ As bases fundamentais/ Os horizontes longínquos/ Os banhos retemperadores/ As árvores frondosas/ O silêncio sepulcral…

Já não podia mais com o ‘grande manto branco’ que era a neve, com os cataclismos que ‘deixam atrás de si um rasto de destruição’.

Gostava demasiado de palavras para permitir que elas se transformassem em cuspo (como dizia Sophia), repugnantes, viscosas, pouco higiénicas de tão usadas, a saírem da boca de toda a gente.

Ou para as deixar tornarem-se estafadas, triviais, consensuais e neutras, de tanto usar sem agitar. (10)




ANA MARGARIDA CARVALHO
Que importa a fúria do mar
(2013)


.

26.2.18

Manuel Bandeira (Vozes na noite)





VOZES NA NOITE



Cloc cloc cloc...
Saparia no brejo?
Não, são os quatro cãezinhos policiais bebendo água.



Manuel Bandeira


.


25.2.18

Claudio Bertoni (Poema para uma vietnamita)





POEMA PARA UNA VIETNAMITA...



No soy digno
de ser tu zapatito
(diminutivo
porque tienes
pequeños los pies).

Tampoco soy digno
de ser tus calcetines
(¿o andabas
sin calcetines?).

Ni siquiera soy digno
de ser la suela
de tus zapatos
(¿o andabas
con zapatillas?).

Y mucho menos soy digno
de ser alguna otra prenda tuya
de los tobillos para arriba.

Yo soy el polvo
que pisan tus pies
y beso desde ahí
todos tus pasos.


Claudio Bertoni





Eu não sou digno
de ser o teu sapatito
(diminutivo
por tu teres
os pés pequeninos).

Tão pouco sou digno
de ser os teus soquetes
(ou tu andavas
sem soquetes?).

Não sou digno sequer
de ser a sola
dos teus sapatos
(ou tu andavas
de sapatilhas?).

E muito menos sou digno
de ser outra qualquer parte tua
dos tornozelos para cima.

Eu sou o pó
que tu pisas aos pés
e daí beijo
todos teus passos.


(Trad. A.M.)

.

24.2.18

Cecília Meireles (De que são feitos os dias)





De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.
Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inactuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças.

Cecília Meireles

.

23.2.18

César Cantoni (Apesar dos bons costumes)





 A DESPECHO DE LAS BUENAS COSTUMBRES



A despecho de las buenas costumbres,
“mierda” es una de nuestras voces más usadas.
Los espectadores salen furiosos del cine
porque la película resultó una “mierda”.
La esposa manda a la “mierda” al marido
y se marcha con su amante.
Y hasta los poetas, puestos a opinar,
tachan de “mierda” la poesía de sus pares.
Se dirá que los tiempos que corren carecen de lirismo.
Es cierto, ¿pero cómo hablar o escribir con palabras
que no coincidan con la realidad?


César Cantoni






Apesar dos bons costumes,
‘merda’ é uma das palavras mais usadas.
Os espectadores saem furiosos do cinema
porque o filme era uma ‘merda’.
A mulher manda à ‘merda’ o marido
e foge com o amante.
E até os poetas, metidos a opinar,
tacham de ‘merda’ a poesia de seus pares.
Dir-se-ia que os tempos que correm falta-lhes lirismo.
É verdade, mas como falar ou escrever com palavras
que não coincidam com a realidade?


(Trad. A.M.)

.

22.2.18

Carlos de Oliveira (Uma Abelha na Chuva)






(Início)


Pelas cinco horas duma tarde invernosa de outubro, certo viajante entrou em Corgos, a pé, depois da árdua jornada que o trouxera da aldeia do Montouro, por maus caminhos, ao pavimento calcetado e seguro da vila: um homem gordo, baixo, de passso molengão; samarra com gola de raposa; chapéu escuro, de aba larga, ao velho uso; a camisa apertada, sem gravata, não desfazia no esmero geral visível em tudo, das mãos limpas à barba bem escanhoada; é verdade que as botas de meio cano vinham de todo enlameadas, mas via-se que não era hábito do viajante andar por barrocais; preocupava-o a terriça, batia os pés com impaciência no empedrado. 

Tinha o seu quê de invulgar: o peso do tronco roliço arqueava-lhe as pernas, fazia-o bambolear como os patos: dava a impressão de aluir a cada passo.

A respiração alterosa dificultava-lhe a marcha.

Mesmo assim galgara duas léguas de barrancos, lama, invernia.

Grave assunto o trouxera decerto, penando nos atalhos gandareses, por aquele tempo desabrido. 


CARLOS DE OLIVEIRA
Uma Abelha na Chuva
(1953)
_______________________


.

21.2.18

Ángel González (Há que ser muito valente)





Hay que ser muy valiente para vivir con miedo.
Contra lo que se cree comúnmente,
no es siempre el miedo asunto de cobardes.
Para vivir muerto de miedo,
hace falta, en efecto, muchísimo valor.

Ángel González





Há que ser muito valente para viver com medo.
Ao contrário do que se pensa,
o medo nem sempre é coisa de cobardes.
Para se viver morto de medo,
é preciso, de facto, ter muita coragem.


(Trad. A.M.)

.

20.2.18

Ana Margarida de Carvalho (Que Importa a Fúria do Mar)






(Início)


Tersa gente esta, de almas baldias, vontades torcidas pelo frio que aperta, amolecidas pelo sol que expande.

Ando aqui a ganhar a morte.

Nestes campos de giesta, engatadas raízes no chão, tão presas de seiva e vontade que não as pode a força de um homem arrancar.

Ervas daninhas mais difíceis de vergar do que um pinheiro  bravo à machadada.

O pinheiro deixa o coto apodrecido, vã ruína orgânica, mas as raízes das giestas mantêm-se sorrateiras, infiltrantes, debaixo da terra, a aguardar melhor ocasião para levantar haste.

E, mal um homem vira costas, lá estão elas, sob os pés, soturnas, insinuantes, sôfregas de todas as pingas de água, a saciarem-se, a exaurirem as lavouras, sem sequer a gentileza de uma sombra, só pasto de insectos, refúgio de furões, conspiração do matagal.

Assim ando eu.

Entre mato rasteiro e bravio.

Que a vida sempre me foi um ferro de engomar.

Quando há um prego que se destaca, martela-se.

E no entanto, mesmo amolgado e enterrado, continua lá.

De quem é o carvalhal?




ANA MARGARIDA DE CARVALHO
Que importa a fúria do mar
(2013)


.

18.2.18

Manuel António Pina (A moral da história)





A MORAL DA HISTÓRIA, SEGUNDO O SENHOR DA CAMA 2B 




A esperança é a última coisa a morrer,
disse ele antes de ter
dado o tiro na boca.
Tivesse ficado calado
e estaria ainda vivo, aqui ou noutro lado.
— OK: não posso dizer
que estivesse melhor
(em relação à sua actual, como hei-de dizer?, situação),
mas também ninguém 
me pode dizer a mim que não.


Manuel António Pina


.

16.2.18

José Villa (Natureza)




NATURALEZA



La fruta aún desconoce
su nombre. Sabe entre otras cosas
que es media tarde. Que
alguien la mira posada en la frutera
y que una gota que cae,
lenta la abre con luz por la mitad.

José Villa




A fruta desconhece ainda
seu nome. Sabe entre o mais
que é meia tarde. Que
alguém a observa deposta na fruteira
e que uma gota que cai,
lenta a abre com luz pelo meio.


(Trad. A.M.)

.

14.2.18

Rodolfo Edwards (Brechtiana)





BRECHTIANA



hay quienes escriben
con un manual de literatura
al lado

hay quienes escriben
con los pies en la palangana

hay quienes escriben
rascándose un huevo

pero hay los que escriben
con una pistola en la sien
esos son los imprescindibles


Rodolfo Edwards




há os que escrevem
com um manual de literatura
ao lado

há os que escrevem
com os pés
metidos na bacia

há os que escrevem
coçando os tomates

mas há os que escrevem
de pistola apontada à testa
esses são os imprescindíveis


(Trad. A.M.)



>>  Rodolfo Edwards (sítio) / Rey de La Boca (blogue/ 2006-14) / Círculo de poesia (10p) / Eterna cadencia (6p) / Wikipedia

.

12.2.18

Manoel de Barros (O livro de Bernardo-19)





O LIVRO DE BERNARDO



(19)

Eternidade
é palavra
encostada em
Deus.



MANOEL DE BARROS
Compêndio para uso dos pássaros
(Poesia reunida 1937-2004)
Quasi Edições, 2007

.

10.2.18

Amalia Bautista (Jardim de porta escura)





JARDÍN DE PUERTA OSCURA



Los milagros existen. Esta tarde,
con el ánimo a punto del naufragio,
me encuentro este jardín, donde no hay puerta,
y si la hubiera no sería oscura.

Me pierdo por caminos de albero flanqueados
por la alta dignidad de los cipreses,
la hermosa obstinación de las adelfas
y unos arbustos generosos
que dan flores azules, casi malvas,
compactas y elegantes
como unas diminutas coliflores.
Hay plantas cuyos nombres no conozco
y colores y aromas musicales.

Suena una copla y una canción árabe,
suenan el sol y el mar, los dos tan lejos,
suenan los dulces nombres latinos de estas flores
al decirlos despacio y en voz baja.
Y el olor denso del verano suena,
y el zureo tenaz de las sucias palomas,
y en el murmullo de la fuente escucho
tu corazón, igual que cuando apoyo
la cabeza en tu pecho.


Amalia Bautista


[Noctambulario]




Há milagres, sim. Esta tarde,
com o ânimo à beira de naufragar,
encontro este jardim, sem porta,
e se a tivesse não era escura.

Perco-me por caminhos caiados
de branco
pela dignidade alta dos ciprestes,
a obstinação bela dos loendros
e alguns arbustos generosos
com flores azuis, como malvas,
compactas e elegantes
como algumas couves-flor.
Há plantas de nomes que desconheço
e cores e aromas musicais.

Soa uma copla e uma canção árabe,
soam o sol e o mar, ambos tão longe,
soam os nomes doces latinos destas flores
ao dizê-los baixinho e devagar.
E soa o cheiro denso do verão,
e a diversão das pombas,
e no murmúrio da fonte escuto
teu coração, tal como quando apoio
a cabeça no teu peito.


(Trad. A.M.)

.

8.2.18

Alfredo Buxán (Canção de berço)





CANÇÃO DE BERÇO



Como janelas os olhos
como sementes de sementeira
à luz do tempo
quando os abres
e olhas

Como a noite os olhos
como a paz da noite
quieta de vento e silêncio
quando os fechas
e dormes


ALFREDO BUXÁN
Las Palabras Perdidas
(Poesía 1989-2008)
Bartleby Editores (2011)

(Trad. A.M.)

.

6.2.18

Luís Filipe Castro Mendes (Resposta)





RESPOSTA



Sim, andei por fora,
por vezes não reconheço as ruas da minha cidade
e há rostos que me envelhecem o coração.
Mas não tenha dúvidas, não precisa de fazer perguntas,
de ficar atento aos meus mínimos movimentos,
de esboçar por dentro de si o desenho
daquilo a que chama a minha alma.
Os comboios param em estações abandonadas, noite dentro,
e nós saímos como passageiros estremunhados e engelhados pelo frio
para cidades desconhecidas, belas e desertas
como todo o tempo que passou.
Sim, eu sei que estou a fugir ao assunto.
Importa-se de repetir a sua pergunta?


Luís Filipe Castro Mendes


.


4.2.18

Alfonso Brezmes (Crime imperfeito)





CRIME IMPERFEITO



De quantos crimes cometi
de um só me arrependo,
não ter matado o desejo de todo,
esse abutre abjecto, insaciável,
que me faz crer
que ainda estou vivo.


ALFONSO BREZMES
La Noche Tatuada
(2013)


(Trad. A.M.)

.

2.2.18

Aldo Luis Novelli (Os problemas sexuais da escrita)





LOS PROBLEMAS SEXUALES DE LA ESCRITURA



estuve toda la mañana
trabajando en un poema
en una palabra en realidad.

por la tarde
descubrí la falla
y quité una palabra del texto.

llegada la noche
me sentía raro
no encontraba la palabra
estaba inquieto
ni deseos tenía
de acostarme con la vecina.

me serví un cabernet
y fui hasta el escritorio
releí el texto
y me dí cuenta
al poema no le faltaba una palabra
le faltaba un buen poeta.


Aldo Luis Novelli




estive toda a manhã
a trabalhar num poema
em verdade numa palavra.

pela tarde
descobri o defeito
e tirei essa palavra do texto.

ao vir a noite
sentia-me esquisito
não encontrava a palavra
estava inquieto
nem desejos tinha
de ir para a cama com a vizinha.

tomei um cabernet
e fui até à secretária
reli o texto
e dei-me conta
o poema não lhe faltava uma palavra
faltava-lhe é um bom poeta.


(Trad. A.M.)

.