31.1.17

Bertolt Brecht (Sobre o significado da décima)





SOBRE O SIGNIFICADO DA DÉCIMA
DO NÚMERO 888 DA FACKEL
(OUTUBRO 1933)



Depois de fundado o Terceiro Reich,
Só uma breve mensagem chegou do eloquente.
Num poema com dez versos
A voz dele ergueu‑se, para lastimar sem mais
Não ter força bastante.
Quando os horrores atingem certa dimensão,
Os exemplos esgotam‑se.
As malfeitorias multiplicam‑se
E os gritos de dor calam‑se.
Saem insolentes os crimes para a rua
E escarnecem alto da descrição.
Ao que está a ser estrangulado
Ficam as palavras presas na garganta.
Espalha‑se o silêncio e, visto de longe,
Semelha assentimento.
O triunfo da força
Parece consumado.
Já só os corpos mutilados
Dão notícia de que ali campearam criminosos.
Sobre as casas arrasadas já só o silêncio
Denuncia o crime.
Terminou pois o combate?
Pode o crime ser esquecido?
Pode enterrar‑se os assassinados e amordaçar‑se as testemunhas?
Pode a injustiça ganhar, mesmo sendo a injustiça?
O crime pode ser esquecido.
Os assassinados podem ser enterrados e as testemunhas, amordaçadas.
A injustiça pode ganhar, mesmo sendo a injustiça.
A opressão senta‑se à mesa e começa a servir‑se
Com as mãos ensanguentadas.
Mas os que carregam com a comida
Não esquecem o peso dos pães; e a fome atormenta‑os
Ainda quando a palavra fome está proibida.
Quem disse fome foi abatido.
Quem gritou opressão foi amordaçado.
Mas os que pagam os juros não esquecem a usura.
Mas os oprimidos não esquecem o pé que lhes pisa o pescoço.
A violência não atingiu ainda o ponto máximo
E já começa de novo a resistência.
Quando o eloquente pediu desculpa
Por a voz lhe falhar,
O silêncio apresentou‑se ante o juiz,
Tirou o lenço do rosto
E deu‑se a conhecer como testemunha.


Bertolt Brecht

(Trad. A.S.Ribeiro)


.

30.1.17

Antonio Porchia (Situado en alguna nebulosa)





Situado en alguna
nebulosa lejana hago lo que hago,
para que el universal equilibrio de
que soy parte no pierda el equilibrio.


Antonio Porchia



>>  Poesur (Voces/ fragmento) / Taringa (Voces/ mais) / Poemas del alma (9p) / Wikipedia

.

29.1.17

Alejandra Pizarnik (Carência)





LA CARENCIA



Yo no sé de pájaros,
no conozco la historia del fuego.
Pero creo que mi soledad debería tener alas.

Esta lila se deshoja.
Desde sí misma cae
y oculta su antigua sombra.
He de morir de cosas así.


Alejandra Pizarnik





Eu não sei de pássaros,
nem conheço a história do fogo.
Mas creio que devia ter asas a minha solidão.

Desfolha-se este lilás.
De si mesmo cai
e oculta sua antiga sombra.
Eu hei-de morrer de coisas assim.


(Trad. A.M.)





28.1.17

João Guimarães Rosa (Em-hora do norte)




Era uma noite de toda fundura.
Estava dando um vento, esquisito para aquele tempo, por ser um vento em-hora do lado suão, em-hora do norte, conforme se riscando um fósforo, ou jogando punhado de areia fina clara para cima, se conhecia.
Andamos.
Mas, agora, eu já tinha demudado o meu sentir, que era por Diadorim uma amizade somente, rei-real, exata de forte, mesmo mais do que amizade.
Essa simpatia que em mim, me aumentava.
De tanto, que eu podia honestamente dizer a ele o meu bemquerer, constância da minha estimação.


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)

.

Fernando Luis Chivite (Poética)





POÉTICA



Nunca imitar a imitadores.

Nunca adular a los poderosos.

Nunca dorar la mediocridad.



Fernando Luis Chivite




27.1.17

Maria Teresa Horta (Poema)





POEMA



Deixo que venha
se aproxime ao de leve
pé ante pé até ao meu ouvido

Enquanto no peito o coração
estremece
e se apressa no sangue enfebrecido

Primeiro a floresta e em seguida
o bosque
mais bruma do que neve no tecido

Do poema que cresce e o papel absorve
verso a verso primeiro
em cada desabrigo

Toca então a torpeza e agacha-se
sagaz
um lobo faminto e recolhido

Ele trepa de manso e logo tão voraz
que da luz é a noz
e depois o ruído

Toma ágil o caminho
e em seguida o atalho
corre em alcateia ou fugindo sozinho

Na calada da noite desloca-se e traz
consigo o luar
com vestido de arminho

Sinto-o quando chega no arrepio
da pele, na vertigem selada
do pulso recolhido

À medida que escrevo
e o entorno no sonho
o dispo sem pressa e o deito comigo


Maria Teresa Horta




26.1.17

Aldo Luis Novelli (Deponham por mim)





ATESTIGUEN POR MÍ



escribo esto como un poema
pero no lo es.
rechazo de plano
el arte por el arte.
escribo para que el mundo
sea cada vez más mundo menos inmundo.
rechazo la poesía elitista
y las élites dominantes.
escribo para espantar a los imbéciles
(tocayo Pellegrini dixit).
rechazo la poesía abstracta
por inconsistente sucesión de imágenes.
escribo para salvar mi propio culo
(gracias viejo Bukowski).
rechazo la poesía rosa
por ridículizar el amor 
y castrar los sexos.
escribo para mentir con elegancia
y que todos aplaudan.
rechazo la poesía que no dice
algo al menos
de lo mucho por decir.
escribo para que me plagien
y mi plagiador se haga famoso.


Aldo Luis Novelli




escrevo esta coisa como poema
mas não é tal.
recuso de todo
a arte pela arte.
escrevo para o mundo ser
cada vez menos imundo.
recuso a poesia elitista
tal como as elites dominantes.
escrevo para espantar os imbecis
(homónimo Pellegrini dixit).
recuso a poesia abstracta
de inconsistente sucessão de imagens.
escrevo para salvar meu próprio rabo
(obrigado velho Bukowski).
recuso a poesia cor-de-rosa
por ridicularizar o amor
e castrar os sexos.
escrevo para mentir com elegância 
e todos aplaudirem.
recuso a poesia que não diz
algo ao menos 
do muito que há para dizer.
escrevo para ser plagiado
e para o plagiador ficar famoso.


(Trad. A.M.)



25.1.17

João Guimarães Rosa (Um relanço fatal)




A mais, o inimigo não tinha o recurso de se apostar – por tanto que perdiam os cavalos. Advindo que o baixadão dali não dava esconderijos de mato para tocaia à jagunça.
E os poucos foram os que pegar as distantes brenhas conseguiam, ou o cheio do capinzal, aonde não íamos desentocar ninguém.
Aqueles deviam de estar de faca em fúria na mão, cobrejando; somente por meio de cachorros-mestres, afirmados em caça de gente, era que podiam ser pegos, o que não se tinha.
Os mais, em desrédea, meteram doida fuga, enquanto mal pudessem, de debaixo de balaços.
Menos de poucos passaram.
Ao rascampo em viemos, soprando a perseguição.
Tinha um valo, varamos um mato de lobeiras.
Aí era para a banda das roças novas.
 Uns morrinhos; demos fogo.
Uma tapera, outra tapera.
Demos fogo.
Poucos dos poucos deles escaparam.
Os que desladeavam, caíam, por nossos esteiras.
Era um relanço bem fatal...


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)


Alberto Vega (O duplo)





EL DOBLE



Hay un problema entre nosotros: tú
sonríes a los gatos por la calle,
mientras yo cruzo los dedos y les temo
su memoria salvaje.

Pasan rostros anónimos y tú
les vas poniendo nombres y señales,
yo en cambio me descuido entre las nubes
y silbo si me place.

Hay un problema entre nosotros: tú
vives dentro de mí y eso es muy grave.


Alberto Vega




Há um problema entre nós dois, tu
ris-te para os gatos na rua,
enquanto eu cruzo os dedos e temo-lhes
a memória selvagem.

Há rostos anónimos que passam
e tu vais-lhes dando nomes e signos,
eu em troca perco-me nas nuvens
e assobio de vez em quando.

Há um problema entre nós, tu
vives dentro de mim e isso é muito grave.


(Trad. A.M.)


24.1.17

Mário Cesariny (Voz numa pedra)





VOZ NUMA PEDRA



Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Ísis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco e flecha negro e azul do vento

Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do mênstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe a cidade futura
onde “a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela”
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhes como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
“a machadada e o propósito de não sacrificar-se não constituirão ao sol coisa nenhuma”
nada está escrito afinal


Mário Cesariny





23.1.17

Ángeles Mora (Contradições)





CONTRADICCIONES, PÁJAROS



Las verdades son la única verdad,                          
esas pequeñas huellas                
de nuestra historia.                      
Si las verdades dijeran la verdad                            
mentirían.                         

Aunque las verdades                   
también mienten con su verdad:                           
la contradicción,                             
ese nido de pájaros crujiendo.                

Las contradicciones parecen insufribles                              
en nuestro mundo.                      
Pero uno intenta                           
huir de ellas                      
como los pájaros:                          
huir quedándose.                          


Ángeles Mora



As verdades são a única verdade,
essas pequenas marcas
da nossa história.
Se dissessem a verdade, as verdades,
mentiriam.

Apesar de as verdades
também mentirem com a sua verdade,
a contradição,
esse ninho de pássaros ruidosos.

Parece que não se suportam, as contradições,
neste mundo nosso.
Mas tentamos
fugir-lhes
como os pássaros,
fugir, ficando.
  

(Trad. A.M.)



>>  Cervantes (perfil>biblio>antologia) / A media voz (20p) / Wikipedia


22.1.17

João Guimarães Rosa (Só comandei)





Quem era que ia poder botar naquilo uma ordem, para um fim com vitória?
E estralou bala...
Repisei em minhas estribeiras, apertei as pernas nas espendas.
Eu tinha de comandar.
Eu estava sozinho!
Eu mesmo, mim, não guerreei.
Sou Zé Bebelo?!
Permaneci.
Eu podia tudo ver, com friezas, escorrido de todo medo.
Nem ira eu tinha.
A minha raiva já estava abalada.
E mesmo, ver, tão em embaralhado, de que é que me servia?
Conservei em punho meu revólver, mas cruzei os braços.
 Fechei os olhos.
Só com o constante poder de minhas pernas, eu ensinava a quietidão a Siruiz meu cavalo.
E tudo perpassante perpassou.
O que eu tinha, que era a minha parte, era isso: eu comandar.
Talmente eu podia lá ir, com todos me misturar, enviar por?
Não!
Só comandei.
Comandei o mundo, que desmanchando todo estavam.
Que comandar é só assim: ficar quieto e ter mais coragem.


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)


Alberto Szpunberg (Esta é a dança)





XVI


Esta es la danza
de los cuerpos que desbordan
el cauce de las manos
y rozan
el goce regalado entre nosotros,
como si lloviera sobre el mar
la tenue luz de la mañana.


Alberto Szpunberg

[Marcelo Leites]




Esta é a dança
dos corpos que transbordam
o limite das mãos
e roçam
o prazer oferecido entre nós
como se a luz ténue da manhã
chovesse sobre o mar.


(Trad. A.M.)


21.1.17

W. B. Yeats (A espora)





THE SPUR



You think it horrible that lust and rage
Sould dance attention upon my old age;
They were not such a plague when I was young;
What else have I to spur me into song?


W. B. Yeats





Parece-te horrível que luxúria e ira
Cortejem a minha velhice;
Quando jovem não me flagelavam assim;
Que mais tenho eu que esporeie até cantar?

(Trad. J.A.Baptista)


20.1.17

Adolfo Cueto (Aluimento)





SOCAVÓN
(calle en obras)


Se parece a ti misma, soledad, esta acera, ahí
abierta, con su herida asomada, su intestino
de plástico. Ese plástico lleno
de aluminio y de frío, su azul descolorido,
empozado entre fango. Por las secas bajantes del olvido,
donde ya
nadie pasa
ni llega, y sólo abundan pasado y otros útiles
de ferretería, esta acera llagada, ahí
abierta, se parece a ti misma, soledad,
seas quien seas.


Adolfo Cueto




É parecida contigo, solidão, esta calçada,
esventrada, com as tripas à mostra, seu intestino
de plástico. Esse plástico cheio
de alumínio e de frio, seu azul descolorido,
atascado de lama.
Pelas ladeiras do esquecimento,
onde já ninguém passa,
a ir ou a vir,
onde abundam o passado e algumas ferramentas,
esta calçada em ferida, assim exposta,
é parecida contigo, solidão,
sejas lá tu quem fores.


(Trad. A.M.)


19.1.17

João Guimarães Rosa (Mirei e vi)





Sobre isto, eu tirei um pé do estribo e ajoelhei no coxim da sela.
Porque era a hora de olhar; mirei e vi.
Como o inimigo vinha: as listras de homens, récua deles: passante de uns cem.
Tive mão em tudo, eles ainda estando longe.
Fafafa encostou dois dedos no meu joelho, como se até às mudas quisesse poder receber a ordem.
Ele esperava um instante certo de meu respirar.
Eu brinquei com a mão no arção.
Vez de um, vez: todos e todos.
Falo o dito de jagunço: que eles mesmos não conseguiam saber se tinham algum medo; mas, em morte, nenhum deles pensava.
O senhor xinga e jura, é por sangue alheio.


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)


Valeria Pariso (Agora vem)





(17)


Ahora llega
esta paz
como si fuese
una visita que se espera hace mucho.

La miro.
Me mira.
Podríamos quedarnos
muchos años así.

Ahora
la casa me permite
seguir poniendo flores
para armar la alegría.

Ya hemos aprendido a no soñar la sed.

Por suerte,
afuera,
son otros los que esperan
que alguna vez
les pase.


Valeria Pariso





Agora vem
esta paz
como se fosse
uma visita há muito esperada.

Olho para ela,
ela para mim,
podíamos ficar assim
muitos anos.

Agora
a casa deixa-me
pôr sempre flores
para armar a alegria.

Aprendemos já a não sonhar a sede.

Por sorte,
lá fora,
outros são os que esperam
que um dia
lhes aconteça.



(Trad. A.M.)


18.1.17

Sophia de Mello Breyner Andresen (Pátria)





PÁTRIA                               



Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo



Sophia de Melo Breyner Andresen



17.1.17

Roger Wolfe (O copo)





EL VASO



Siéntate
a la mesa.
Bebe un vaso
de agua. Saborea
cada trago.
Y piensa
en todo el tiempo
que has perdido.
El que estás perdiendo.
El tiempo
que te queda por perder.


Roger Wolfe




Senta-te.
Bebe um copo
de água. Saboreia
cada gole.
E pensa
no tempo todo
que perdeste.
No que estás perdendo.
No tempo que te resta
para perder.



(Trad. A.M.)


16.1.17

João Guimarães Rosa (Descendo na cava)





Descendo na cava, por feliz a gente vinha em oculto.
E, justo, já embaixo, no principiar da várzea, era um capim com mais viço, capinzal do fresco de pé-de-serra.
Capim mais alto do que eu – nele à gente se tapava.
Coincidido que, permeio o verde dos talos, a gente via algumas borboletas, presas num lavarinto, batendo suas asas, como por ser.
Caiu o açúcar no mel!
Porque, igual também convim que podíamos ladear um tanto; e, daí, separei, de cabeça, um grupo de homens, que iam ir com o Fafafa: esses avançarem primeiramente – como a certa isca – perturbando o cálculo do inimigo, ao dar o dar.
Respiramos tempo, naqueles transitórios.
De rechego, coçando as caras no capim em pontas, que dava vontade de se espirrar.
Só o rumor que se ouvia era o dos cavalos abocanhando.
Eu tinha pressa de um final, mas o que ia mor em mim era um lavorar de paciência: talento com que eu podia ficar retardando lá, a toda a vida.
Safas – que eu podia dar também um pulo, enorme, sustirado, repentemente.
Vi: o que guerreia é o bicho, não é o homem.


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)


Rocío Wittib (Tu estás ali)





tú estás ahí
donde termina la palabra lejos
miras como el otoño se desprende
de la piel rojiza de los árboles
y sientes en los ojos que es noviembre
del mismo modo que sientes
y sabes y callas
que demasiadas veces
dijimos pronto será
tal vez por no decirnos adiós


 Rocío Wittib




tu estás ali
onde termina a palavra longe
observas o Outono a desprender-se
da pele avermelhada das árvores
e sentes nos olhos que é Novembro
tal como sentes
e sabes e calas
que demasiadas vezes
dizemos ‘breve será’
talvez só para não dizer ‘adeus’


(Trad. A.M.)


15.1.17

Jorge de Sena (Suma Teológica)






SUMA TEOLÓGICA




Não vim de longe, meu amor, nem sossobraram
navios no alto mar, quando nasci.

Nada mudou. Continuaram as guerras;
continuou a subir o preço do pão;
continuaram os poetas, uma vez por outra,
a perguntar por ti.

É certo que, então, imensa gente
envelheceu instantânea e misteriosamente.

Mas até isso, meu amor, se não sabe ainda
se foi por minha causa,
se por causa de outros que terão nascido
ao mesmo tempo que eu.


JORGE DE SENA
Poesia-I
 Moraes Editores (1977)



14.1.17

Roberto Juarroz (Cada um se vai como pode)





Cada uno se va como puede,
unos con el pecho entreabierto,
otros con una sola mano,
unos con la cédula de
identidad en el bolsillo,
otros en el alma,
unos con la luna atornillada en la sangre
y otros sin sangre, ni luna, ni recuerdos.

Cada uno se va aunque no pueda,
unos con el amor entre dientes,
otros cambiándose la piel,
unos con la vida y la muerte,
otros con la muerte y la vida,
unos con la mano en su hombro
y otros en el hombro de otro.

Cada uno se va porque se va,
unos con alguien trasnochado
entre las cejas,
otros sin haberse cruzado con nadie,
unos por la puerta que da
o parece dar sobre el camino,
otros por una puerta dibujada
en la pared o tal vez en el aire,
unos sin haber empezado a vivir
y otros sin haber empezado a vivir.

Pero todos se van con los pies atados,
unos por el camino que hicieron,
otros por el que no hicieron
y todos por el que nunca harán.


Roberto Juarroz




Cada um se vai como pode,
uns com o peito aberto,
outros só com uma mão,
uns com o bilhete de
identidade no bolso,
outros na alma,
uns com a lua enfiada no sangue
e outros sem sangue, nem lua, nem lembranças.

Cada um se vai mesmo sem poder,
uns com o amor entre dentes,
outros trocando a pele,
uns com a vida e a morte,
outros com a morte e a vida,
uns com a mão no seu ombro
e outros no ombro alheio.

Cada um se vai porque se vai,
uns com alguém tresnoitado entre as celhas,
outros sem cruzar com ninguém,
uns pela porta que dá
ou parece dar para caminho,
outros por uma porta desenhada
na parede ou no ar talvez,
uns sem começar a viver
e outros sem começar a viver.

Mas todos se vão de pés atados,
uns pelo caminho que fizeram,
outros pelo que não fizeram
e todos, todos, pelo que nunca farão.


(Trad. A.M.)


13.1.17

João Guimarães Rosa (Levantei nos estribos)





E ele endireitou pontudo para sobre mim, jogou o cavalo...
O demo? Em mim, danou-se! Como vinha, terrível, naquele agredimento de boi bravo. Levantei nos estribos. - “E-hê!...”
Esse luzluziu a faca, afiafe, e urrou de ódio de enfiar e cravar, se debruçando, para diante todo. Tirou uma estocada.
Cerrei com ele...
A ponta daquela pegou, por um mau movimento, nas coisas e trens que eu tinha na cintura e a tiracol: se prendeu ali, um mero.
Às asas que eu com a minha quicé, a lambe leal – pajeuzeira – em dura mão, peguei por baixo o outro, encortei-recortei desde o princípio da nuca – ferro ringiu rodeando em ossos, deu o assovião esguichado, no se lesar o cano-do-ar, e mijou alto o sangue dele.
 Cortei por cima do adão...
 Ele Outro caiu do cavalo, já veio antes do chão com os olhos duros apagados...


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)

Fernando Luis Chivite (À beira das hortas)






AL LADO DE LAS HUERTAS         
                


Veintinueve de noviembre por la mañana.
Solo, en el viejo camino de las huertas,
a eso de las once.

El ladrido de algún perro, el sonido
de algún coche lejano, algunos pájaros.
Y el sol, pálido y vulnerable en el aire frío.

Entonces me detengo. Me paro de repente
y digo para mí: voy a pararme un poco,
sólo para saber que puedo pararme cuando quiera.

Voy a pararme aquí, al lado de las huertas,
durante unos minutos. Quiero mirar despacio esta luz
de noviembre, la luz de esta mañana soleada.

Quiero mirar esta luz y quedarme con ella,
por si en los días futuros nos faltara.
Por si la oscuridad llegara a hacerse
demasiado terrible en los días futuros.


FERNANDO LUIS CHIVITE
Calles poco transitadas
(1998)




Vinte e nove de Novembro pela manhã,
sozinho, no velho caminho das hortas,
aí pelas onze.

O latido de um cão, o ruído
de algum carro distante, alguns pássaros.
E o sol, pálido e vulnerável no ar frio.

Então detenho-me. Paro de repente
e digo cá para mim, vou parar um pouco,
só para saber que consigo parar
quando quiser.

Vou parar aqui, à beira das hortas,
por uns minutos. Quero olhar
com vagar esta luz
de Novembro, a luz desta manhã ensolarada.

Quero olhar esta luz e ficar com ela,
para o caso de nos faltar em dias futuros.
Para o caso de a escuridão no futuro
se tornar demasiado terrível.


(Trad. A.M.)


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12.1.17

Mark Strand (Manter as coisas)





KEEPING THINGS WHOLE



In a field
I am the absence
of field.
This is
always the case.
Wherever I am
I am what is missing.

When I walk
I part the air
and always
the air moves in
to fill the spaces
where my body’s been.

We all have reasons
for moving.
I move
to keep things whole.


 Mark Strand





Num campo
eu sou a ausência 
de campo.
É sempre assim,
onde quer que esteja,
eu sou o que falta.

Ao caminhar,
aparto o ar,
mas o ar desloca-se sempre,
preenchendo o espaço
que meu corpo ocupara.

Todos nós temos razões 
para mexer.
Eu mexo-me
para manter as coisas.

(Trad. A.M.)


11.1.17

Rita Ramones (Glória)





GLORIA



Gloria a mí
y a ustedes.
Gloria a mis padres,
porque cuanto más ruines fueron sus trabas,
más excelsos mis logros (esta es una ley de la dramaturgia).
Gloria a toda esta miseria de clase media
porque me hace sentir muy cínica,
muy punzante.

Gloria a los fanáticos del fútbol
a los religiosos
a los insensibles
a los insensatos
y a la partida de imbéciles
que no entienden mi poema
porque así me cuesta menos ser genial.


Rita Ramones





Glória a mim
e a vós.
Glória a meus pais,
pois quanto mais fortes as peias,
mais gloriosos meus saltos
(uma lei da dramaturgia, esta).
Glória a toda esta miséria de classe média,
já que me faz sentir muito cínica,
muito picante.

Glória aos fanáticos da bola
aos religiosos
aos insensíveis
aos insensatos
bem como à caterva de imbecis
que não me entendem o poema
pois assim me custa menos ser genial.



(Trad. A.M.)

10.1.17

João Guimarães Rosa (Aí, narro)





As partes, que se deram ou não se deram, ali na Barbaranha, eu aplico, não por vezo meu de dar delongas e empalhar o tempo maior do senhor como meu ouvinte.
 Mas só porque o compadre meu Quelemém deduziu que os fatos daquela era faziam significado de muita importância em minha vida verdadeira, e entradamente o caso relatado pelo seo Ornelas, que com a lição solerte do dr. Hilário se tinha formado.
 Aí, narro.

O senhor me releve e suponha.


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)
.

Raúl Nieto de la Torre (Se meus versos falassem)





SI MIS VERSOS HABLARAN



Si mis versos hablaran
dirían que las chimeneas mienten,
que la lluvia te escribe en los tejados
largas cartas de amor y de odio,
que tus amantes tienen algo mío,
que en cada nube viaja un telegrama,
que sus letras se cuelan por tus labios
cuando los dices,
dirían que les digas lo que dices
de ellos por la espalda,
que no pueden hablar mientras trabajan;
dirían que hace frío para andar
tan lejos de la cama.

(Yo, en cambio, sigo fiel a la palabra
que te di, y no te digo nada)


Raúl Nieto de la Torre




Se meus versos falassem,
diriam que as chaminés mentem,
que a chuva te escreve no telhado
longas cartas de amor e ódio,
que teus amantes têm algo de meu,
que um telegrama viaja em cada nuvem
e suas letras se coam por teus lábios
quando os dizes;
diriam que, digas tu deles
o que disseres pelas costas,
eles não podem falar enquanto trabalham;
diriam que está muito frio
para andar tão longe da cama.

(Eu, por mim, continuo fiel à palavra
dada, e não te digo nada)



(Trad. A.M.)
.

9.1.17

Ricardo Silvestrin (Juro dizer a meia-verdade)





Juro dizer a meia-verdade
a meia-mentira
o centauro por inteiro

nada mais que a sedução da sereia
o passo em falso, verdadeiro
na beira de um desfiladeiro

juro com a mão direita
sobre a bíblia
e a mão esquerda abanando

em nome de Deus, de Zeus
de Oxalá ou da besta

juro que os que quiserem
somente a verdade
vão perder o melhor da festa


Ricardo Silvestrin





8.1.17

Raúl Ferruz (Vives sozinho)





vives solo
comes solo
paseas solo
duermes solo

¿no es un exceso
de ausencia?

seguramente,

pero sólo ahora
entiendo qué es
estar solo

hablas solo
escribes solo


Raúl Ferruz
  



vives sozinho
comes sozinho
passeias sozinho
dormes sozinho

não será um excesso
de ausência?

seguramente,

mas só agora
entendo o que é
estar sozinho

falas sozinho
escreves sozinho



(Trad. A.M.)
.

7.1.17

João Guimarães Rosa (A cavalhada)





Quando, então, trouxeram reunidos todos os animais, estavam ajuntando a cavalhada. Regulava subida manhã, orçado o sol, e eles redondeavam no aprazível – tropilha grande, pondo poeira, dado o alvoroço de muitos cascos.
Fiz um rebuliz?
Dou confesso o que foi: era de mim que eles estavam espantados.
Aí porque a cavalaria me viu chegar, e se estrepoliu.
O que é que cavalo sabe?
Uns deles rinchavam de medo; cavalo sempre relincha exagerado.
Ardido aquele nitrinte riso fininho, e, como não podiam se escapulir para longe, que uns suavam, e já escumavam e retremiam, que com as orelhas apontavam.
 Assim ficaram, mas murchando e obedecendo, quando, com uma raiva tão repentina, eu pulei para o meio deles: - “Barzabu! Aquieta, cambada!” – que eu gritei.
Me avaliaram.
Mesmo pus a mão no lombo dum, que emagreceu à vista, encurtando e baixando a cabeça, arrufava a crina, conforme terminou o bufo de bufor.


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)
.

Pedro César Alcubilla (Tarde de chuva)





TARDE DE LLUVIA



Somos paraguas rotos
bajo una tormenta que nunca acaba.
Chocamos unos con otros
sin importar el daño que hacemos.
Aguantando el chaparrón.
La lluvia no para.
Demasiado viento.
Demasiada agua
en demasiados charcos.
Aún miramos hacia el cielo
buscando una esperanza.
Y no escampa.


Pedro César Alcubilla





Somos chapéus de chuva rasgados
numa tempestade que não se acaba.
Chocamos uns contra os outros
sem cuidar do mal que fazemos.
Aguentando a bátega.
Não pára a chuva.
Muito vento,
muita água,
em muitos charcos.
Olhamos para o céu ainda,
buscando uma esperança.
E não escampa.



(Trad. A.M.)


6.1.17

Pedro da Silveira (Calmaria)





CALMARIA



Verão. Dois velhos
sentados à Praça.
Lembram casos dos tempos das baleias
e vêem quem passa.

Um vapor que lá vai
pela linha do pego, lado a lado.
E uma chuva de sol
no mar parado.

Dir-se-á que nada
acaba ou começa.
Um relógio dá horas.
Devagar. Molemente. Não tem pressa.



Pedro da Silveira

[Pico da vigia]