30.6.17

Sophia de Mello Breyner Andresen (Homero)





HOMERO



Escrever o poema como um boi lavra o campo
Sem que tropece no metro o pensamento
Sem que nada seja reduzido ou exilado
Sem que nada separe o homem do vivido


Sophia de Mello Breyner Andresen




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29.6.17

Joan Margarit (Mãe e filha)





MADRE E HIJA



Todo el pasado de ella son tus manos:
treinta amorosos años al fondo de tus palmas.
La has velado a lo largo de la noche:
te tiendes en la cama junto a ella,
tu pecho cálido contra su espalda,
sus cansados cabellos en tu rostro.
La abrazas y le hablas en voz baja
y, mientras, la acaricias.
Son las últimas noches, y sientes el calor
de su cuerpo agotado que tú tan bien conoces.
Ahora aprenderás a cuidarla en la muerte.
Siempre ha sido una niña: debes velar su sueño,
que se va pareciendo, más y más,
a la profunda sombra de alegría
por donde se desliza entre tus manos.


Joan Margarit

[Escrito en el viento]





Todo o passado dela são tuas mãos,
trinta amorosos anos nas palmas das mãos.
Velaste-a ao longo da noite toda,
estendes-te na cama a seu lado,
o teu peito contra as costas dela
os cabelos dela na tua cara.
Abraça-la, falando-lhe baixinho,
e vai-la acariciando.
São as últimas noites, e sentes o calor
do seu corpo exausto que tão bem conheces.
Agora aprendes a cuidar dela na morte.
Foi sempre uma criança, tens de velar-lhe
o sono, que se vai parecendo, mais e mais,
à profunda sombra de alegria
por onde se te desliza entre as mãos.


(Trad. A.M.)

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28.6.17

Joan Brossa (O último homem)





Apesar das aparências e das teorias, diz
que tem medo da solidão; sente-se distanciado
dos objectos; tem medo de não ser mais do que uma
coisa entre as coisas, entre objectos sem nome:
tem consciência de não estar aqui.


(Trad. A.M.)

- Sobre versão Carlos Vitale

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27.6.17

Luís Quintais (Ética)





ÉTICA



Vou falhando as pequenas coisas
que me são solicitadas.
Sentindo que as ciladas
se acumulam cada vez que falo.
Preferi hoje o silêncio.
A ausência de equívocos
não é partilhável.
No inegociável deste dia,
destituo-me de palavras.
O silêncio não se recomenda.
Deixa-nos demasiado sós,
visitados pelo pensamento.


Luís Quintais


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26.6.17

Jesús López Pacheco (Agradeço às árvores)





Agradezco a los árboles sus sombras,
 la protección delgada de sus troncos.
 Al banco la amistad de su respaldo
 y a los faroles su bombilla rota.

 Agradezco a las calles sus esquinas,
 sus rincones oscuros como nidos,
 sus portales sin nadie, resguardados
 de la lluvia y el viento y las miradas.

 Agradezco a los cines sus butacas,
 su oscuridad amiga de los labios,
 y a la tarde su luz porque se marcha
 para que venga el beso y el abrazo.

 Ciudad donde yo amé: ya tiempo y tiempo
 ha pasado de aquel beso primero.
 Hoy te agradezco todos tus paseos,
 tus calles y tus plazas, tus tranvías,

 tus barrios pobres, cómplices de amor,
 toda tu oscuridad amada y triste,
 donde ha nacido, sin embargo, el beso
 largo y continuo en el que vivo ahora.


Jesús López Pacheco




Agradeço à árvore sua sombra,
a protecção delgada do tronco.
Ao banco a amizade do apoio
e ao candeeiro a lâmpada partida.

Agradeço à rua sua esquina,
seus cantos escuros como ninhos,
seus portais sem ninguém, protegidos
da chuva, do vento e dos olhares.

Agradeço ao cinema seus lugares,
a escuridão amiga dos lábios,
e à tarde sua luz porque se vai
para que venha o beijo e o abraço.

Cidade onde em tempo amei, e o tempo
passou desse beijo primeiro.
Grato te estou por tuas avenidas,
teus eléctricos, ruas e praças,

teus bairros pobres, cúmplices de amor,
tua escuridão amada e triste.
onde contudo nasceu o beijo
em que vivo agora, longo e contínuo.


(Trad. A.M.)

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25.6.17

José Watanabe (Fábula)





FÁBULA



En el cauce del río seco
una espigada yegua orina sobre un sapo agradecido.
Yo, que voy de paso, sonrío y recuerdo
                    una antigua ley de compensaciones
de la magia: más feo el sapo
más bello y deslumbrante el príncipe.

Ay, pero la abundante orina de la yegua no es amor
y, aunque amorosamente regada,
                  no rompe los hechizos más perversos:
es sólo un poco de agua ácida en esta sequedad solar.

La yegua se aleja trotando aliviada, moviendo
las ancas
como una muchacha. Yo voy por los espinos resecos
recordando al sapo:
                       el pobre no tenía encantamiento
y se quedó solo
y soportando su fealdad inmutable
                                               y ahora meada.

 
José Watanabe




No leito do rio seco
uma égua urina sobre um sapo agradecido.
E eu, que vou a passar, sorrio e recordo
uma lei antiga de compensações 
da magia, quanto mais feio o sapo
mais belo e deslumbrante o príncipe.

Ah, mas a abundante urina da égua não é amor
e, mesmo amorosamente regada,
não quebra os feitiços mais perversos,
é apenas um pouco de água ácida nesta sequia solar.

A égua afasta-se choutando aliviada, a mexer
as ancas
como uma moça. E eu vou pelos ressecos espinhos
a lembrar-me do sapo:
o coitado não tinha encanto
e ficou sozinho,
a sofrer sua fealdade imutável,
mas agora mijada.


(Trad. A.M.)


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24.6.17

António Osório (Ainda me acolho)





AINDA ME ACOLHO



Ainda me acolho, Pai,
à tua madressilva.
Ali tens a passiflora,
não envelheceu.
O cedro grande, maior ainda.
O forno, dedadas
expungidas pelas portas.
A buganvília, não esqueço,
é preciso cortá-la.
A Mãe não está nem volta.



António Osório

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23.6.17

Jesús Lizano (As ratas)





LAS RATAS



Las ratas
insidiosas, peludas,
voraces, ingratas,
innumerables, puntiagudas,
alucinantes, piratas,
escurridizas, zancudas,
por los rincones, por las escalinatas,
cataratas de ratas,
expectantes y mudas,
selva de dientes, de patas,
enormes, menudas,
mortificantes, peliagudas,
a saltos, a gatas,
agobiantes, cornudas,
lúgubres, insensatas...
Las ratas:
¡las dudas!

Jesús Lizano




As ratas,
insidiosas, peludas,
vorazes, ingratas,
inumeráveis, pontiagudas,
alucinantes, piratas,
escorredias, pernudas,
pelos cantos e escadarias,
cataratas de ratas,
expectantes e mudas,
selva de dentes, de patas,
enormes, miúdas,
chatas, bicudas,
aos saltos, de gatas,
angustiantes, cornudas,
lúgubres, insensatas...
As ratas:
as dúvidas!


(Trad. A.M.)

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22.6.17

Jenaro Talens (Anjos sobre Roma)





ÁNGELES SOBRE ROMA



(II)

Recorrerte sin pausa, como quien
se despereza al sol; ser el sendero
donde inscribir tus huellas. Heme aquí,
acurrucado junto al estallido
que amaga el roce de tu piel.
Cobijo mi pasión a la intemperie
bajo el árbol frondoso de tus sensaciones,
esa implosión de un cuerpo
en el que busco anclarme. Vieja luz
que alumbra, sin embargo, todavía.


(IV)

Daré tu nombre a cuanto vea,
me aferraré a la imagen de tu cuerpo
como la yedra al sol de mediodía.
Igual que el mirlo al recorrer las hojas
busca en la nervadura
los gusanos, iré
a trabajar los surcos,
a sembrar la memoria
si es cierto que para morir,
como dijo el anciano,
basta sólo un ruidillo:
el de otro corazón
(¿mío, tuyo?) al callarse.
   (...)


Jenaro Talens




(II)

Percorrer-te sem descanso, como quem
se espreguiça ao sol; ser o carreiro
onde assinalar o teu rasto. Eis-me aqui,
agachado junto ao estampido
que ameaça o toque da tua pele.
Minha paixão abrigo-a da tormenta
sob a árvore frondosa de teus sentidos,
essa implosão de um corpo
a que tento segurar-me. Velha luz
que ainda ilumina, apesar de tudo.


(IV)

Darei teu nome a tudo quanto vir
e hei-de agarrar-me à imagem do teu corpo
como a hera ao sol do meio-dia.
Tal como o melro correndo as folhas
procura os bichos na nervura,
irei abrindo os sulcos,
a semear a memória,
se certo é que para morrer,
como disse o outro,
basta só um barulhinho,
o de outro coração
(meu? teu?) ao parar.
   (...)

(Trad. A.M.)

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21.6.17

Luís Amaro (Tarde)




TARDE



Vago sabor de outono
E de coisas extintas.
Nem desejos nem dor...
Meu coração esquece.

No ar parado voga
Talvez uma saudade
De tudo que perdi,
De tudo que não fui.

Ninguém chama por mim
Nem chamo por ninguém.
Instante calmo e triste...
Como a vida está longe!

No dia húmido cai
Um silêncio dormente.
Uma música ausente
Meu coração embala.


Luís Amaro


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20.6.17

Javier Salvago (Fim de festa)





FIN DE FIESTA



Al fin solos, vida. Terminó la fiesta
y no queda nadie que pueda obligarnos
a forzar sonrisas, ni a inventar molestas
mentiras piadosas. Todos se han marchado.

Vete desnudando sin miedo. Conozco
las viejas arrugas de tu triste carne.
Las he acariciado. Sé lo que tu rostro
oculta debajo de ese maquillaje.

Al fin solos, vida. La casa en silencio
y tú y yo desnudos, callados y ausentes
—juntos por rutina, más que por deseo—
como dos amantes cansados de verse.


 Javier Salvago




Enfim sós, vida. Terminou a festa
e não resta ninguém que possa obrigar-nos
a forçar sorrisos, ou a inventar incómodas
mentiras piedosas. Todos se foram.

Vai-te desnudando sem medo. Conheço
as velhas rugas de tua carne triste.
Acariciei-as. Sei o que teu rosto
oculta por baixo da maquilhagem.

Enfim sós, vida. A casa em silêncio
e tu e eu nus, calados e ausentes,
 - juntos por rotina, mais que por desejo -
como dois amantes cansados de se verem.


(Trad. A.M.)

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19.6.17

Javier Lasheras (Um postal para o futuro)





UNA POSTAL PARA EL FUTURO



Si algún día inevitablemente
o si alguna noche por casualidad
nos encontráramos, seré salvaje
y a dentelladas te probaré
por todas partes.

¿En qué ávido animal me has convertido!


Javier Lasheras






Se um dia sem remédio
ou uma noite por acaso
tropeçarmos um no outro,
vou-me fazer selvagem
e às dentadas hei-de
morder-te por todo o lado.

Que ávido animal de mim fizeste!



(Trad. A.M.)

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18.6.17

Almada Negreiros (O valor das palavras)





O VALOR DAS PALAVRAS          
                 


Há palavras que fazem bater mais depressa o coração 
– todas as palavras – 
umas mais do que outras, 
qualquer mais do que todas. 
Conforme os lugares e as posições das palavras. 
Segundo o lado de onde se ouvem  
do lado do Sol ou do lado onde não dá o Sol.

Cada palavra é um pedaço do universo. 
Um pedaço que faz falta ao universo. 
Todas as palavras juntas formam o Universo.

As palavras querem estar nos seus lugares!


José de Almada Negreiros



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17.6.17

Javier Galarza (Final)





FINAL



vamos
que
no incendiaste tu casa
ni cantaste sin resguardo
para dejarte morir
en el sagrario
de una obra


Javier Galarza

[Sibilas y pitias]





vamos
que
não puseste fogo à casa
nem cantaste sem resguardo
pra te deixares morrer
no sacrário
de uma obra


(Trad. A.M.)

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16.6.17

Jaime Sabines (Se me deixasses)





Si me dejas arrancarte los ojos,
amor mío, me harías feliz.
Quisiera quemarte el corazón,
sellarte la memoria.
No quiero que me ames.
Quiero dejarte la boca para que me hables
y para que me beses.
Y todo lo demás de tu cuerpo,
que es delicioso.


Jaime Sabines






Se me deixasses, amor meu,
arrancar-te os olhos, fazias-me feliz.
Queria queimar-te o coração,
selar-te a memória.
Não quero que me ames.
Quero deixar-te a boca para falares
e me dares beijos.
E tudo o mais do teu corpo,
que é uma delícia.

(Trad. A.M.)


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15.6.17

Luiza Neto Jorge (Minibiografia)





MINIBIOGRAFIA



Não me quero com o tempo nem com a moda
Olho como um deus para tudo de alto
Mas zás! do motor corpo o mau ressalto
Me faz a todo o passo errar a coda.
Porque envelheço, adoeço, esqueço
Quanto a vida é gesto e amor é foda;
Diferente me concebo e só do avesso
O formato mulher se me acomoda
E se nave vier do fundo espaço
Cedo raptar-me, assassinar-me, cedo:
Logo me leve, subirei sem medo
À cena do mais árduo e do mais escasso.
Um poema deixo, ao retardador:
Meia palavra a bom entendedor.


Luiza Neto Jorge

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14.6.17

Jaime Gil de Biedma (Apologia e petição)





APOLOGÍA Y PETICIÓN



Y qué decir de nuestra madre España,
este país de todos los demonios
en donde el mal gobierno, la pobreza
no son, sin más, pobreza y mal gobierno
sino un estado místico del hombre,
la absolución final de nuestra historia.

De todas las historias de la Historia
sin duda la más triste es la de España,
porque termina mal. Como si el hombre,
harto ya de luchar con sus demonios,
decidiese encargarles el gobierno
y la administración de su pobreza.

Nuestra famosa inmemorial pobreza,
cuyo origen se pierde en las historias
que dicen que no es culpa del gobierno
sino terrible maldición de España,
triste precio pagado a los demonios
con hambre y con trabajo de sus hombres.

A menudo he pensado en esos hombres,
a menudo he pensado en la pobreza
de este país de todos los demonios,
y a menudo he pensado en otra historia
distinta y menos simple, en otra España
en donde si que importa un mal gobierno.

Quiero creer que nuestro mal gobierno
es un vulgar negocio de los hombres
y no una metafísica, que España
debe y puede salir de la pobreza,
que es tiempo aún para cambiar su historia
antes que se la lleven los demonios.

Porque quiero creer que no hay demonios.
Son hombres los que pagan al gobierno,
los empresarios de la falsa historia,
son hombres quienes han vendido al hombre,
los que le han convertido a la pobreza
y secuestrado la salud de España.

Pido que España expulse a esos demonios.
Que la pobreza suba hasta el gobierno.
Que sea el hombre el dueño de su historia.


Jaime Gil de Biedma

[Apología de la luz]




E que dizer de nossa madre Espanha,
este país de todos os demónios
onde o mau governo e a pobreza
não são apenas pobreza e mau governo,
mas uma espécie de estado místico,
absolvição afinal da nossa história?

De todas as histórias da História,
sem dúvida, a mais triste é a de Espanha,
porque termina mal. Como se o homem,
farto já de lutar com seus demónios,
decidisse entregar-lhes o governo
e a gestão da sua pobreza.

A nossa famosa pobreza imemorial
cuja origem se perde nas histórias
que dizem que não é culpa do governo
mas maldição terrível de Espanha,
triste preço pago aos demónios
em fome e trabalho dos homens.

Muita vez pensei nesses homens,
como pensei na pobreza
deste país de todos os demónios,
e pensei em outra história
distinta e menos simples, em outra Espanha
onde, sim, contasse o mau governo.

Cá para mim o mau governo
é uma coisa vulgar de homens,
não tem nada a ver com a metafísica,
e a Espanha pode e deve sair da pobreza,
estamos a tempo de mudar-lhe à história
antes que a tomem os demónios.

Porque quero crer que não há demónios,
são homens os que pagam o governo,
esses empresários da falsa história,
são homens os que venderam o homem,
os que o condenaram à pobreza
e sequestraram a saúde de Espanha.

O que eu peço a Espanha é que expulse tais demónios,
que a pobreza suba ao governo
e seja o homem enfim dono da sua história.


(Trad. A.M.)

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13.6.17

Jacob Iglesias (Na ponta da língua)





NA PONTA DA LÍNGUA          

     

Não buscar nomes novos
para o que já baptizámos,
nem descobrir a sequência de sons
para designar aquilo que sempre nos escapa,
porque não consente nome.
Trabalhar na ponta da língua.
Agarrar palavras que todos aprendemos
e combiná-las na ordem precisa,
nomeando o que já todos intuem
mas tanta vez resiste a ser dito.
Escrevê-las de modo que cada um reconheça
na tua busca a sua
e na tua melodia a sua canção.


Jacob Iglesias


(Trad. A.M.)

.

12.6.17

Corpo presente (51)






DA MORTE




Dura pouco
aquilo que morre

#

É sempre curta a vida,
mesmo que longa

#

Fica pouco
daquilo que morre

#

Morte malina,
faz de uma pessoa
um monte de esterco


#

É terrível a morte,
definitiva,
sem remédio

#

A morte da mãe
torna o filho mortal

#

Como tapar esse buraco
na casa da vida
- a ausência?


.

11.6.17

Irene Sánchez Carrón (Borboletas no estômago)





MARIPOSAS EN EL ESTÓMAGO



Sentada en la piedra de siempre
te esperaba.
A la orilla del tiempo
escribía mis versos en el suelo
mientras atardecía el valle
y la línea de sombra
ascendía despacio
por la otra ladera.
Inmóvil deshojaba la solitaria flor del desaliento.
Vendrá. No vendrá.
Cuando lleguen las sombras a la casa,
cuando el último rayo acaricie la cumbre…
Y tú volvías siempre
con los bolsillos llenos de calor
cuando empezaba el frío.


Irene Sánchez Carrón




Sentada esperava-te
na pedra de sempre.
À margem do tempo
escrevia meus versos no chão
enquanto o vale entardecia
e a linha da sombra
subia devagar
pela outra encosta.
Imóvel desfolhava a solitária flor do desalento.
Virá, não virá.
Quando as sombras atingirem a casa,
quando o último raio acariciar o cume...
E tu sempre voltavas,
os bolsos cheios de calor,
ao chegar o tempo frio.


(Trad. A.M.)

.

10.6.17

Irene Gruss (Mas a arte)





PERO EL ARTE



Lo bueno y lo malo que he perdido no ha sido arte
sino malentendidos: no saber oír,
trastabillarme;
raro cansancio hacía que diera cosas
por sentado: el abrazo;
hasta un puré era algo tan elaborado que evité pelar papas,
decir sí,
ya fuera por bueno
o malo, sin arte alguna, me equivocaba.

Después descubrí que el errar o el perderse
podrían ser lo mismo, un oficio extravagante. Pero el arte,
ah el arte, no es oficio
sino servir
un simple puré de papas, ni muy caliente
ni tibio. 

  
Irene Gruss





O bom e o mau que perdi não foi por arte,
mas por mal-entendidos, não saber ouvir, por exemplo,
ou engasgar-me;
um estranho cansaço que eu desse certas coisas
por assentes: o abraço;
mas até um puré me parecia tão elaborado,
que eu fugia a pelar as batatas,
mesmo dizer sim me custava,
fosse por bem ou por mal, sem outro jeito.

Depois descobri que perder-se ou errar
poderiam dar no mesmo, um extravagante
ofício. Mas a arte,
ah, a arte, não é bem um ofício,
mas mais servir
um simples puré de batata, nem muito quente
nem frio.


(Trad. A.M.)

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9.6.17

Sophia de Mello Breyner Andresen (Espera)





ESPERA                                              



Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa

É então que se vê passar o silêncio

Navegação antiquíssima e solene


SOPHIA MELLO BREYNER ANDRESEN
Geografia
(1967)

.


8.6.17

Idea Vilariño (A solidão)





LA SOLEDAD




Esta limitación esta barrera
esta separación
esta soledad la conciencia
la efímera gratuita cerrada
ensimismada conciencia
esta conciencia
existiendo nombrándose
fulgurando un instante
en la nada absoluta
en la noche absoluta
en el vacío.


Esta soledad
esta vanidad la conciencia
condenada impotente
que termina en sí misma
que se acaba
enclaustrada
en la luz
y que no obstante se alza
se envanece
se ciega
tapa el vacío con cortinas de humo
manotea ilusiones
y nunca toca nada
nunca conoce nada
nunca posee nada.
Esta ausencia distancia
este confinamiento
esta desesperada
esta vana infinita soledad
la conciencia.

  
Idea Vilariño





Esta limitação esta barreira
esta separação
esta solidão a consciência
a efémera gratuita fechada
ensimesmada consciência
esta consciência
existindo nomeando-se
fulgurando um instante
no nada absoluto
na noite absoluta
no vazio.


Esta solidão
esta vaidade a consciência
condenada impotente
que termina em si mesma
que se acaba
enclaustrada
na luz
e que não obstante se alça
se enfuna
se cega
tapa o vazio com cortinas de fumo
manipula ilusões
e nunca toca nada
não conhece nada
não possui nada.
Esta ausência distância
este confinamento
esta desesperada
esta vã infinita solidão
a consciência.

  

(Trad. A.M.)

.

7.6.17

José Watanabe (O vau)





EL VADO



Si vas por la playa donde se vadea el río
verás,
plantadas en el limo,
                 largas varas de eucalipto. Están allí
para los caminantes que van a la otra ribera.
                                   Una será tu cayado:
con ella tantearás, sin riesgo, un camino
entre las aguas turbias
                      y las piedras de resbaloso musgo.

Cuida de dejar hundida la vara
               con gratitud
en la otra orilla: otro viene:
acaso mi padre
que en las tierras amarillas busca sandías silvestres,
                   acaso yo
que regreso, retrasado y viejo,
                   mirando ansioso mi pueblo que tras el río
ondula o se difumina en el vaho solar.
                                                     Allí,
según costumbre, sembraron mi ombligo
entre la juntura de dos adobes
para que yo tuviera patria.
Deja el cayado clavado en el limo.


José Watanabe




Se fores pela beira onde se passa o rio a vau,
hás-de ver,
plantadas no lodo,
varas longas de eucalipto. São para os caminhantes
que vão para a outra margem.
Uma será teu cajado,
com ela tentearás, sem risco, um caminho
entre as águas turvas
e as pedras cobertas de musgo.

Trata de deixar a vara espetada
com gratidão, 
na outra margem, outro virá,
talvez meu pai,
que busca na terra amarela melancias silvestres,
talvez eu,
que regresso, velho e atrasado,
olhando ansioso além do rio a minha terra
a esfumar-se na tremulina do sol.
Ali semearam meu umbigo,
segundo a tradição, entre dois adobes,
para que eu tivesse pátria.
Deixa o cajado espetado no fundo.


(Trad. A.M.)



>>  A media voz (13p) / Poemas del alma (15p) / Wikipedia

.

6.6.17

Corpo presente (50)







LUZ




Acende uma luz nos meus olhos
e deixa-a acesa
brilhando na tua ausência

.

5.6.17

Ida Vitale (Cultura do palimpsesto)





CULTURA DEL PALIMPSESTO



Todo aquí es palimpsesto,
pasión del palimpsesto:

a la deriva,
              borrar lo poco hecho,
empezar de la nada,
afirmar la deriva,
mirarse entre la nada acrecentada,
velar lo venenoso,
matar lo saludable,
escribir delirantes historias para náufragos.

Cuidado:
            no se pierde sin castigo el pasado,
no se pisa en el aire.


Ida Vitale

[Life vest under your seat]




Tudo aqui é palimpsesto,
paixão do palimpsesto:

à deriva,
           apagar o pouco feito,
começar do nada,
afirmar a deriva,
mirar-se no meio do nada,
velar o veneno,
matar o saudável,
escrever delirantes histórias para náufragos.

Cuidado,
          o passado não se perde sem castigo,
não se pisa no ar.

(Trad. A.M.)

.

4.6.17

Vicente Gaos (Testamento)





TESTAMENTO



Yo, Vicente Gaos, natural de la nada, de mil siglos de edad, de estado civil
 solitario, inestable,
domiciliado, refugiado en un rincón del cosmos,
de profesión náufrago en la sombra,
sin documento nacional de identidad, sin títulos, condecoraciones ni diplomas de clase alguna,
sin señal particular visible en el pecho ni en ninguna otra parte del cuerpo,
sin más cicatriz que una necrosis de miocardio,
una vieja herida que me produje yo mismo,
quiero decir, que me causaron siglos de sufrimiento,
de amor oculto, de ternura encubierta por un falso orgullo,
el de no sentir envidia de nada y de nadie,
el de haber creído que siempre había tiempo de sobra,
el de alegrarme seriamente del bien ajeno,
el de no autocompadecerme jamás,
el de llorar hacia dentro por el daño hecho al prójimo,
el orgullo o la confusión de haberme figurado que era yo la víctima, siendo el   verdugo,
ya que todos los hombres somos simultáneamente lo uno y lo otro,
y no es fácil en este punto el discernimiento...


Yo, Vicente Gaos (¿Vicente Gaos?), ahora,
cuando empiezo a sentir ya en la boca el amargo gusto de la ceniza
postrera, cuando recuerdo en medio de la tormenta final las postrimerías,
porque he pecado, he pecado,
y a pesar de ello ninguna de las cuatro me devuelve a la inocencia pueril,
al amparo filial, a la remota fe cándida de no sé qué antaño,
de no sé qué antesiglo...


Yo, natural de la nada,
habitante de la nada,
destinado a la nada, anónimo,
me acerco ya al encuentro del supremo Notario,
del Decano universal - nihil prius fide -
y le hago entrega de este testamento ológrafo
donde dispongo
- si acaso no es cierto que quien dispone es Él y el hombre sólo propone -
dispongo, suplico,
que cuando mi añoso corazón, mi lastimado corazón haya dado ya su último latido,
incineren piadosamente esta carne que gozó y sufrió,
estos huesos que se estremecieron ya de júbilo, ya de horror,
que me despojen de todo, de nada, pues siempre fui un despojado
(es la verdad, no me autocompadezco),
y que arrojen mis cenizas al viento, al agua, al espacio estelar, al vacío cósmico de donde vine, al cósmico vacío al que he de volver, espero volver sin retorno,
pues nadie regresa de la última orilla.


Y cerca ya del máximo consuelo, de la extrema esperanza,
confío en que Nadie me amenace más con otra existencia.


Y este es el testamento ilusorio que otorgo en plena posesión de mis facultades mentales,
posesión de quien sólo posee dolor, ignorancia, muerte,
y un corazón cuyo único deseo es el de cesar ya en su trémulo palpito, en su amoroso latido,
aunque (porque) la vida sea al fin y al cabo, y al principio, hermosa, lo es,
y prosiga renovada, siempre igual, afortunadamente monótona,
como en el paraíso primero,
como en el edén funeral que nunca termina, que jamás terminará,
jamás.


Vicente Gaos






Eu, Vicente Gaos, do nada natural, com mil séculos de idade, de estado civil
solitário e instável,
domiciliado, digo, refugiado num canto do cosmos,
de profissão de náufrago na sombra,
sem cartão de identidade, nem títulos ou condecoração, nem diploma de nenhum tipo,
sem sinais particulares à vista no peito ou noutra parte do corpo,
sem mais cicatriz que uma necrose do miocárdio,
uma ferida antiga que eu mesmo me fiz,
quero dizer, causada por séculos de sofrimento,
de amor oculto, de ternura encoberta por um falso orgulho,
de não invejar nada nem ninguém,
de crer que sempre haveria tempo de sobra,
de exultar com o bem alheio,
de não conhecer auto-compaixão,
de chorar para dentro por qualquer mal feito ao próximo,
o orgulho ou confusão de fazer de vítima, sendo o carrasco,
já que os homens são ambas as coisas ao mesmo tempo
e não é fácil a destrinça neste ponto...



Eu, Vicente Gaos (Vicente Gaos?), agora que começo a sentir na boca
o gosto amargo da cinza póstuma,
agora que me lembram as agonias no meio da tormenta final,
porque pequei e pequei,
e apesar disso nada me restitui a inocência pueril, o amparo de pais
ou a remota e cândida fé de não sei que antigamente,
de não sei que anteséculo...

Eu, do nada natural,
habitante do nada,
destinado ao nada, anónimo,
chego-me junto do supremo Notário,
do Decano universal – nihil prius fide –
e faço-lhe entrega deste testamento ológrafo
onde disponho
 – se não é verdade, acaso, que quem dispõe é Ele e o homem apenas propõe –
disponho, suplico,
que quando meu anoso, meu pobre coração, der seu último latejo,
incinerem esta carne que gozou e sofreu,
estes ossos que estremeceram,  já de júbilo, já de horror,
que me despojem de tudo, aliás de nada, pois sempre fui um despojado
(é a verdade, não me lamento),
e que me atirem as cinzas ao vento, à água, ao espaço sideral, ao vazio cósmico de que vim
e a que espero voltar sem retorno,
pois ninguém volta da última margem.


E perto já do máximo consolo, da esperança última,
confio em que Ninguém ma ameace mais com outra vida.


E este é o testamento ilusório que eu outorgo na posse plena das minhas faculdades.
posse de quem só possui dor, morte, ignorância,
assim como um coração cansado já de bater, morto por parar,
embora (ou porque...) a vida seja bela, ao fim e ao cabo, e no princípio também,
e prossiga renovada, sempre igual, felizmente monótona,
como no paraíso primeiro,
como no éden funéreo que nunca se acaba,
que jamais terminará, jamais.



(Trad. A.M.)

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