31.5.17

Corpo presente (49)






ACTA EST FABULA





Como foi que disse
- Demasiado perto do céu
para ser ainda da terra?
(Foi isto?)

.

30.5.17

Homero Aridjis (Autoretrato aos 13 anos)





AUTORRETRATO A LOS 13 AÑOS



Sobreviviente de mí mismo,
el pelo largo,
me siento en la silla del peluquero.
En un caballete está el espejo,
atrás de mí las casas,
más allá el cerro.
Los resortes del sillón pican la espalda.
Sobre el descansapiés miro las lenguas
de mis zapatos viejos.

Chon me hace la raya con el peine,
a tijeretazos avanza sobre mi cabeza
echando mechones sobre el empedrado.
Moscas sin vanidad se asolean en las piedras,
o se pegan a la frente de Chon.
Él las ahuyenta moviendo las orejas.
El peluquero me muestra su obra maestra:
un corte de pelo perfectamente redondo.
En el espejo de mano
miro en el cerro el sol que se pone.
"Cantaré la luz", me digo,
sintiéndome ya poeta.


Homero Aridjis




Sobrevivente de mim mesmo,
cabelo comprido,
sento-me na cadeira do barbeiro.
Num cavalete está o espelho,
as casas atrás de mim,
o cerro mais além.
As molas da cadeira picam-me nas costas,
sobre o descanso dos pés observo
as línguas dos meus sapatos velhos.
Chon faz-me o risco com o pente
e avança-me na cabeça às tesouradas
atirando os pelos para o chão empedrado.
Moscas sem vaidade apanham sol sobre as pedras
ou colam-se à testa de Chon,
que as afugenta abanando as orelhas.
O barbeiro mostra-me a sua obra-prima,
um corte de cabelo redondíssimo.
No espelho de mão
olho o sol que se põe no cerro.
"Cantarei a luz", digo para mim mesmo,
a sentir-me já poeta.

(Trad. A.M.)


.

28.5.17

Machado de Assis (D. Sancha)




D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui, abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimá-lo, para lhe não dar tentação e abri-lo outra vez.
Se, apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo pelo mal que receber.
O que já lhe tiver feito, contando os gestos daquele sábado, esse acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com eles, desmentimos a minha ilusão; mas o que agora a alcançar, esse é indelével.
Não, amiga minha, não leia mais.
Vá envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma coisa, e é ainda o melhor que se pode fazer depois da mocidade.
Um dia, iremos daqui até à porta do Céu, onde nos encontraremos renovados, como as plantas novas, come piante novelle
Rinovellate di novelle fronde.
O resto em Dante.



MACHADO DE ASSIS
Dom Casmurro
(1900)

.

27.5.17

Gonzalo Fragui (De como os antigos amores)





DE CÓMO LOS ANTIGUOS AMORES HACEN PLANES PARA MUDARSE



Quienes más sufren
cuando un nuevo amor nos abandona
son los antiguos amores

Ellas nos ven llegar desde lejos
después de una larga ausencia
nos miran sospechosamente
nos olfatean

Ellas dicen
¡Ay, poeta, de qué nueva batalla vendrás!
Yo sólo les muestro mi silencio como trofeo de guerra

A pesar de sus ironías
ellas entienden
Una me indica posiciones de tai-chi para el bazo
Otra me proporciona en la boca
pequeñas porciones de un té negro como de alacranes
Otra me aplica quemaduras en plexo solar y en las manos
con un extraño cigarro chino
Otra me acuesta en su sofá y me recorre con sus cristales
Otra me pide que respire profundo, hasta acá abajo, más abajo,
y no faltará quien me ofrezca una oración o una cerveza

Poco a poco voy saliendo a flote

Entonces ellas
hacen planes para mudarse de habitación
de trabajo
de ciudad
de planeta
lo antes posible
No quisieran verme llegar de nuevo
como perro alcanzado.


Gonzalo Fragui

[Emma Gunst]




Quem mais sofre
quando um novo amor nos deixa
são os antigos amores

Vêem-nos chegar de longe
após uma longa ausência
olham-nos com suspeita
cheiram-nos

Então dizem
Ai, poeta, de que batalha virás!
E eu mostro-lhes só o meu silêncio como troféu de guerra

Elas entendem
apesar das suas ironias
Uma indica-me posições de tai-chi para o baço
Outra dá-me na boca
umas colheres de um chá negro com sabor a lacrau
Outra aplica-me queimaduras no plexo solar e nas mãos
com um estranho charuto chinês
Outra deita-me no sofá e percorre-me com as lentes
Outra diz-me que respire fundo, até cá baixo, mais abaixo,
e não faltará quem me ofereça uma oração, uma cerveja

Pouco a pouco vou vindo à tona

Então elas fazem planos para mudar de quarto
de emprego
de cidade
de planeta
quanto antes
Não estão para me ver voltar novamente
como um cachorro abandonado.


(Trad. A.M.)

.

26.5.17

Vicente Gaos (À tristeza)





A LA TRISTEZA



Si no fuera por ti...
si no fuera por ti, que cada tarde
tuyo me haces cuando el sol declina,
cuando todo es tan bello porque es triste,
y hundes más mis raíces
de hombre en la tierra... de hombre inmensamente
solo bajo el poniente en que Dios huye.
¿Qué sería de todo, qué sería
de nosotros? Ah, nunca
nunca hubiéramos visto
el secreto misterio de las cosas.

Oh, tú, tristeza, madre
de toda la hermosura que ha creado
el hombre en el dolor que da tu mano
con su dulce castigo...
No te apartes de mí, ven cada día
a hacerme triste, a hacerme hombre, hijo tuyo...
Visítame.


Vicente Gaos





Se não fosse por ti...
se não fosse por ti, que todas as tardes
me fazes teu quando o sol se põe,
quando tudo é tão belo por ser triste,
e mais me afundas na terra
as raízes de homem, tão só
ao sol poente em que Deus se escapa.
O que seria de tudo, o que seria
de nós? Nunca jamais veríamos
o secreto mistério das coisas.


Oh, tu, tristeza, mãe da beleza toda
criada pelo homem na dor nascida
da tua mão de castigo...
Não te apartes de mim, vem cada dia
entristecer-me, fazer-me homem e fillho teu...
Visita-me.


(Trad. A.M.)




>>  A media voz (24p) / Wikipedia 

.

25.5.17

Machado de Assis (A rabeca)





Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rabeca e não tocava inteiramente mal.
Na ocasião em que ia passando, executava não sei que peça.
Parei na calçada a ouvi-lo (tudo são pretextos a um coração agoniado), ele viu-me, e continuou a tocar.
Não atendeu a um freguês, e logo a outro, que ali foram, a despeito da hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras à navalha.
Perdeu-os sem perder uma nota; ia tocando para mim.
Esta consideração fez-me chegar francamente à porta da loja, voltado para ele.
Ao fundo, levantando a cortina de chita que fechava o interior da casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido claro, flor no cabelo.
Era a mulher dele; creio que me descobriu de dentro, e veio agradecer-me com a presença o favor que eu fazia ao marido.
Se me não engano, chegou a dizê-lo com os olhos. 
Quanto ao marido, tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face no instrumento, passava a alma ao arco, e tocava, tocava...


MACHADO DE ASSIS
Dom Casmurro
(1900)

.

24.5.17

Gloria Fuertes (Vê lá, que maluquice)





Ya ves qué tontería, 
me gusta escribir tu nombre, 
llenar papeles con tu nombre, 
llenar el aire con tu nombre; 
decir a los niños tu nombre 
escribir a mi padre muerto 
y contarle que te llamas así. 
Me creo que siempre que lo digo me oyes. 
Me creo que da buena suerte: 
Voy por las calles tan contenta
y no llevo encima nada más que tu nombre.


Gloria Fuertes





Vê lá que maluquice,
gosto de te escrever o nome,
encher o papel com teu nome,
incendiar o ar com teu nome;
dizer às crianças teu nome
escrever a meu pai falecido
e contar-lhe que te chamas assim.
Creio aliás que me ouves, sempre que o digo.
Acho que me dá sorte,
vou tão contente pela rua fora
sem nada por cima, só com teu nome.


(Trad. A.M.)

.

23.5.17

Gloria Bosch (Com a alma pela gorja)





CON EL ALMA AL CUELLO



Con el alma al cuello anduve mucho tiempo
en la cuerda floja
buscando el equilibrio de un trapecista
descifrando en el mapa de otros cuerpos
las huellas borrosas de mi propia historia.
Con el alma al vuelo
busqué la compañía de los espejos
el agua tibia que me saciara
de una sed antigua de querencias y deseos.
Superviviente de algún naufragio
no opté por la fuga ni el suicidio
dejé pasar las hojas del calendario
sanando heridas, corazón en mano.
Me mueve la fe de que estoy viva
llego a fin de mes sin red y con tropiezos
los tigres me saludan y me he hecho amiga
de las magas y los titiriteros.
Aunque la vida me ha dado algún zarpazo
esquivo el látigo de los malos momentos
y doy volteretas sobre la lona
si las palabras acuden a mi encuentro.
Mi vicio es escribir a ras de suelo.


Gloria Bosch





Com a alma pela gorja andei muito tempo
na corda bamba
tentando o equilíbrio do trapezista
decifrando no mapa de outros corpos
o rasto da minha própria história.
Com a alma a voar
busquei a companhia dos espelhos
a água fresca para saciar
uma sede antiga de paixão e desejos.
Sobrevivente de naufrágio
não escolhi a fuga nem a morte,
deixei virar as folhas do calendário,
sarar as feridas, de coração nas mãos.
Move-me a fé de estar viva,
chego sem rede ao fim do mês, aos tropeções,
os tigres saudam-me, fiz-me amiga
das magas e dos saltimbancos.
Certo que a vida me fez algumas feridas,
mas fujo ao látego dos maus momentos
e dou cambalhotas na lona
se as palavras vêm ao meu encontro.
Meu vício é escrever ao rés do solo.


(Trad. A.M.)

.

22.5.17

Machado de Assis (Casada)





A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que a causa da impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado.
Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também.
E quando eu me vi embaixo, pisando as ruas com ela, parando, olhando, falando, senti a mesma coisa.
Inventava passeios para que me vissem, me confirmassem e me invejassem.
Na rua, muitos voltavam a cabeça curiosos, outros paravam, alguns perguntavam: "Quem são?" e um sabido explicava: "Este é o Doutor Santiago, que casou há dias com aquela moça, D. Capitolina, depois de uma longa paixão de crianças; moram na Glória, as famílias residem em Mata-cavalos." E ambos os dois: "É uma mocetona!"


MACHADO DE ASSIS
Dom Casmurro
(1900)

.

21.5.17

Gisela Galimi (Estação)








El invierno termina algún día incierto.
Ni antes ni después
que finalice el frío.
No importa como lo llames,
ni la fecha que dicte el almanaque.
El invierno es invierno.
Las muchachas podrán ignorarlo
y vestir primavera en septiembre,
enamoradas de las quimeras.
Pero una mujer ya tiene su experiencia.
Todo llega a su debido tiempo.


Gisela Galimi




Termina o Inverno em dia incerto,
nem antes nem depois
de se acabar o frio.
Não importa o nome
nem a data indicada pelo almanaque.
O Inverno é o Inverno.
Poderão ignorá-lo as moças
e vestir de Primavera em Setembro,
enamoradas de quimeras.
Mas uma mulher tem já a sua experiência,
tudo vem com o tempo.


(Trad. A.M.)

.

20.5.17

Gioconda Belli (Pirilampos)





LUCIÉRNAGAS



A las cinco de la tarde
cuando el resplandor se queda sin brillo
y el jardín se sumerge en el último hervor dorado del día
oigo el grupo bullicioso de niños
que salen a cazar luciérnagas.

Corriendo sobre el pasto
se dispersan entre los arbustos,
gritan su excitación, palpan su deslumbre
se arma un círculo alrededor de la pequeña
que muestra la encendida cuenca de sus manos
titilando.

Antiguo oficio humano
este de querer atrapar la luz.

¿Te acuerdas de la última vez que creímos poder iluminar la noche?

El tiempo nos ha vaciado de fulgor.
Pero la oscuridad
sigue poblada de luciérnagas.


Gioconda Belli

[Apología de la luz]




Ao fim da tarde
quando a luz amortece
e o jardim mergulha nas últimas ondas
de oiro do dia
chega-me o bulício das crianças
à caça de pirilampos.

Correndo na relva
espalham-se nos arbustos,
gritam de excitação, deslumbrados,
e fazem roda em torno da pequena
a mostrar a concha acesa
das mãos cintilando.

Humano ofício antigo
este de querer agarrar a luz.

Lembras-te da última vez em que julgámos
poder iluminar a noite?

O tempo tirou-nos o fulgor.
Mas a escuridão
continua cheia de pirilampos.

(Trad. A.M.)

____________________

Pirilampos:
Fernando Assis Pacheco - Apanhador de pirilampos
A.M.Pires Cabral - Pirilampos-I

.

19.5.17

Corpo presente (48)






ESTÁ BEM





Queres o meu corpo?
                Toma o meu espírito

.

18.5.17

Gina Saraceni (Devolveu ao mar)





Le devolvió
las piedras al mar,

las piedras guardadas por años
en frascos de mermelada.

Fue el vacío
lo que queda
en su lugar.

Igual que un abandono:
dura todavía.


Gina Saraceni





Devolveu
ao mar as pedras,

guardadas anos e anos
em frascos de marmelada.

No lugar delas
foi o vazio
o que ficou.

Tal como um abandono,
ainda dura.


(Trad. A.M.)

  .

17.5.17

Gabriel Celaya (A poesia é uma arma)





LA POESÍA ES UN ARMA CARGADA DE FUTURO



Cuando ya nada se espera personalmente exaltante,
mas se palpita y se sigue más acá de la conciencia,
fieramente existiendo, ciegamente afirmando,
como un pulso que golpea las tinieblas,

cuando se miran de frente
los vertiginosos ojos claros de la muerte,
se dicen las verdades:
las bárbaras, terribles, amorosas crueldades.

Se dicen los poemas
que ensanchan los pulmones de cuantos, asfixiados,
piden ser, piden ritmo,
piden ley para aquello que sienten excesivo.

Con la velocidad del instinto,
con el rayo del prodigio,
como mágica evidencia, lo real se nos convierte
en lo idéntico a sí mismo.

Poesía para el pobre, poesía necesaria
como el pan de cada día,
como el aire que exigimos trece veces por minuto,
para ser y en tanto somos dar un sí que glorifica.

Porque vivimos a golpes, porque apenas si nos dejan
decir que somos quien somos,
nuestros cantares no pueden ser sin pecado un adorno.
Estamos tocando el fondo.

Maldigo la poesía concebida como un lujo
cultural por los neutrales
que, lavándose las manos, se desentienden y evaden.
Maldigo la poesía de quien no toma partido hasta mancharse.

Hago mías las faltas. Siento en mí a cuantos sufren
y canto respirando.
Canto, y canto, y cantando más allá de mis penas
personales, me ensancho.

Quisiera daros vida, provocar nuevos actos,
y calculo por eso con técnica qué puedo.
Me siento un ingeniero del verso y un obrero
que trabaja con otros a España en sus aceros.

Tal es mi poesía: poesía-herramienta
a la vez que latido de lo unánime y ciego.
Tal es, arma cargada de futuro expansivo
con que te apunto al pecho.

No es una poesía gota a gota pensada.
No es un bello producto. No es un fruto perfecto.
Es algo como el aire que todos respiramos
y es el canto que espacia cuanto dentro llevamos.

Son palabras que todos repetimos sintiendo
como nuestras, y vuelan. Son más que lo mentado.
Son lo más necesario: lo que no tiene nombre.
Son gritos en el cielo; y en la tierra, son actos.


Gabriel Celaya





Quando já nada se espera de pessoalmente exaltante,
mas se palpita e se continua para cá da consciência,
ferozmente existindo, cegamente afirmando,
como um pulso que lateja nas trevas,

quando se olham de frente
os claros olhos vertiginosos da morte,
dizem-se as verdades:
as bárbaras, terríveis, amorosas crueldades.

Dizem-se os poemas
que dilatam os pulmões de quantos, asfixiados,
pedem ser, pedem ritmo,
pedem lei para o que sentem excessivo.

Com a velocidade do instinto,
com o raio do prodígio,
como mágica evidência, converte-se o real
no idêntico a si mesmo.

poesia para o pobre, poesia necessária
como o pão de cada dia,
como o ar que exigimos treze vezes por minuto,
para ser e enquanto somos dizer um sim que glorifica.

Porque vivemos de vez em quando, porque mal nos deixam
dizer que somos quem somos,
nossos cantos não podem sem pecado ser um ornamento.
Estamos a tocar o fundo.

Maldigo a poesia concebida como um luxo
cultural pelos neutrais
que lavando as mãos, se desinteressam e evadem.
Maldigo a poesia de quem não toma partido até manchar-se.

Faço minhas as faltas. Sinto em mim quantos sofrem
e canto ao respirar.
Canto, canto, e a cantar para além de minhas mágoas
pessoais, fico maior.

Quisera dar-vos vida, provocar novos actos,
e calculo por isso com técnica,que venço.
Sinto-me um engenheiro do verso e um operário
que com outros trabalha Espanha nos seus aços.

Assim é a minha poesia: poesia-ferramenta
e ao mesmo tempo pulsação do unânime e cego.
Assim é, arma carregada de futuro expansivo
com que aponto ao peito.

Não é uma poesia gota a gota pensada.
Nem um belo produto. Nem um fruto perfeito.
É algo como o ar que todos respiramos
e é o canto que difunde o que dentro levamos.

São palavras que todos repetimos sentindo
como nossas, e voam. São mais que o que elas dizem.

São o mais necessário: o que possui um nome.
São gritos no céu, e, na terra, são actos.


(Trad. José Bento)

___________________

Paco Ibañez (YouTube)
(Aditado ‘gritos’ no último verso, conforme o original). A.M.

.

16.5.17

Machado de Assis (Promessas espirituais)





Capitu, que estava na alcova, gostou de ver a minha entrada, os meus gestos, palavras e lágrimas, segundo me disse depois; mas não suspeitou naturalmente todas as causas da minha aflição.
Entrando no meu quarto, pensei em dizer tudo a minha mãe, logo que ela ficasse boa, mas esta idéia não me mordia, era uma veleidade pura, uma ação que eu não faria nunca, por mais que o pecado me doesse.
Então, levado do remorso, usei ainda uma vez do meu velho meio das promessas espirituais, e pedi a Deus que me perdoasse e salvasse a vida de minha mãe, e eu lhe rezaria dois mil padre-nossos.
Padre que me lês, perdoa este recurso; foi a última vez que o empreguei.
A crise em que me achava, não menos que o costume e a fé, explica tudo. Eram mais dois mil; onde iam os antigos?
Não paguei uns nem outros, mas saindo de almas cândidas e verdadeiras tais promessas são como a moeda fiduciária, — ainda que o devedor as não pague, valem a soma que dizem. 


MACHADO DE ASSIS
Dom Casmurro
(1900)

.

15.5.17

Francisco Urondo (Bem-fazer)





BENEFACCION



Piedad para los equivocados, para
los que apuraron el paso y los torpes
de lentitud. Para los que hablaron bajo tortura
o presión de cualquier tipo, para los que supieron
callar a tiempo o no pudieron mover
un dedo; perdón por los desaires con que me trata
la suerte; por titubeos y balbuceos. Perdón
por el campo que crece en estos espacios de la época
trabajosa, soberbia. Perdón
por dejarse acunar entre huesos
y tierras, sabihondos y suicidas, ardores
y ocasos, imaginaciones perdidas y penumbras.


Francisco Urondo




Piedade para os equivocados, para
os que apuraram o passo e os canhestros
de lentidão. Para os que falaram sob tortura
ou pressão de qualquer tipo, para os que souberam
calar a tempo ou não puderam
mexer um dedo; perdão pelos meus desaires da sorte;
por indecisões e balbuceios. Perdão
pelo campo que cresce na época trabalhosa, soberba.
Perdão por adormecer em meio de ossos
e terras, sabichões e suicidas, ardores
e ocasos, imaginações perdidas e sombras.

(Trad. A.M.)

.

14.5.17

Francisco J. Picón (O infinito cabe)





EL INFINITO CABE EN UNA HOJA DE PAPEL



Un cuaderno vacío,
huérfano de letras e ideas,
reclama la atención
de un poeta que lo adopte
en un rincón de la memoria

El duende, tutelador
de musas sin dueño,
agoniza en la trastienda
de las prisas,
arropado por telarañas
de vergüenza y estrés

Un lápiz diminuto,
abandonado en el asilo
de la rutina,
pide un minuto de gloria
en busca de la suerte
en el carboncillo del tiempo

El aprendiz de poeta,
abrigado de dudas y miserias,
inicia la aventura
de las hojas en blanco,
alumbrando un verso neonato
en el paritorio de los sueños

Y el cuaderno,
otrora vacío y triste,
abandona el umbral
de la soledad,
acompañado de rimas,
misterios y métrica…


Francisco J. Picón

[La locura de los cuerdos]




Um caderno vazio,
órfão de letras e de ideias,
reclama a atenção
de um poeta que o adopte
num recanto da memória

O duende, patrono
de musas sem dono,
agoniza na traseira
das pressas,
vestido com teias
de fadiga e vergonha

Um lápis diminuto,
esquecido no asilo
da rotina,
pede um instante de glória
na busca da sorte
no carvão do tempo

O aprendiz de poeta,
isento de dúvidas e misérias,
começa a aventura
das folhas em branco,
alumbrando um verso recém-nascido
na sala de partos dos sonhos

E o caderno,
em tempos vazio e triste,
deixa o umbral da solidão,
acompanhado de rimas,
métrica e mistérios...


(Trad. A.M.)

.

13.5.17

Corpo presente (47)







OUTONO




Toco
apenas te toco
Como quem passa os dedos
pelo orvalho
numa manhã de Outono

.

12.5.17

Francisca Aguirre (E se, depois de tudo)





Y si después de todo, todo fuera,
un ir muriendo para al fin morirnos
a qué este loco empeño en convertirnos
en contables de un tiempo que no espera.

Y si resulta que lo cierto era
este sermón que viene a repetirnos
que avanza el huracán para abatirnos
y es inútil y absurda esta carrera.

Entonces, amor mío, ten sosiego,
y aprovecha esta cueva que te ofrezco
y apura el agua que yo no he bebido.

El viento nos arrastra, frío y ciego,
toma mi manta mientras yo envejezco,
amarte de otro modo no he sabido.


Francisca Aguirre






E se, depois de tudo, tudo fosse
um ir morrendo para no fim se morrer,
para quê este louco afã de nos fazermos
medidores de um tempo que não espera?

E se o certo afinal
era este sermão a dizer-nos
que vem aí o furacão a abater-nos,
sendo inútil e absurda esta corrida?

Então, amor meu, tem calma,
aproveita esta gruta que eu te ofereço,
acaba a água que eu não bebi.

O vento arrasta-nos, cego e frio,
pega a minha manta enquanto eu envelheço,
amar-te de outro modo eu não soube.


(Trad. A.M.)

.

11.5.17

Flor Codagnone (Vou ter medo)





Voy a tener miedo.
Te voy a pedir que me abraces.
El vestido puede arrancarse.
La piel, no.


Flor Codagnone




Vou ter medo.
Vou-te pedir que me abraces.
Que o vestido pode arrancar-se,
a pele não.

(Trad. A.M.)


.

10.5.17

Machado de Assis (Achei a criada galante)





A explicação agradou-me; não tinha outra.
Se, como penso, Capitu não disse a verdade, força é reconhecer que não podia dizê-la, e a mentira é dessas criadas que se dão pressa em responder às visitas que "a senhora saiu", quando a senhora não quer falar a ninguém.
Há nessa cumplicidade um gosto particular; o pecado em comum iguala por instantes a condição das pessoas, não contando o prazer que dá a cara das visitas enganadas, e as costas com que elas descem...
A verdade não saiu, ficou em casa, no coração de Capitu, cochilando o seu arrependimento.
E eu não desci triste nem zangado; achei a criada galante, apetecível, melhor que a ama. 


MACHADO DE ASSIS
Dom Casmurro
(1900)

.

9.5.17

Fernando Luis Chivite (Inventário de omissões)





INVENTARIO DE OMISIONES

        Furtivo calienta el rescoldo de lo olvidado
          
                                                     (Canetti)


La nieve que iluminaba la escalera.
Las farolas del cementerio encendidas
durante toda la noche. La chica delgada
que se juntaba con la chica más delgada.
El muchacho descontento que se unió
al muchacho aún más descontento. Algo
parecido a niebla amarilla dentro de un cuarto.
La voluntad de derrumbarse del puente.
La austeridad de los armarios. Un reloj
que bostezaba. Un olor de años en las mantas.
Los negros cercados. La absoluta
oscuridad que de ninguna manera
nos atrevimos a tocar. Y naturalmente
la elegancia que nacía del dolor.
Y por supuesto la dignidad de los que fueron
humillados y olvidados
después.

Fernando Luis Chivite




A neve iluminando a escadaria.
Os candeeiros do cemitério acesos
toda a noite. A miúda magra
que se juntava a outra mais magra.
O rapaz descontente que se ligou
a outro ainda mais descontente. Algo
 parecido com uma névoa amarela dentro de um quarto.
A vontade de se atirar de cima da ponte.
A austeridade dos armários. Um relógio
que bocejava. Um cheiro de anos nas mantas.
Os negros cerrados. A escuridão
absoluta que de modo nenhum
ousávamos tocar. E naturalmente
a elegância que nascia da dor.
E ainda, sem dúvida, a dignidade dos que foram
humilhados e esquecidos
logo a seguir.


(Trad. A.M.)

.

8.5.17

Fermín Herrero (Estado do bem-estar)





ESTADO DEL BIENESTAR                 
            


Con cerca de setenta años y una hernia discal
que nunca se operó mi madre está cavando el huerto.
La recuerdo siempre así, sin parar, desviviéndose por nosotros,
sus manos de penuria inquietud día y noche,
la abnegación echada al hombro hasta dejarlo
todo aviado y acabar molida: frota que te frota
ordeñando, acarreando, frota que te frota
barriendo, fregando, vareando
en la era la lana de los colchones, haciendo aulagas
para prender la lumbre y caldear la casa...
Siempre así, sudando como una descosida,
sin dar abasto y pese a todo - igual que el resto de las esclavas
de posguerra - no tiene derecho
a pensión. Cuando puede ver el parte
se hace cruces de lo bien que hablan los políticos.

Fermín Herrero




Com perto de setenta anos e uma hérnia discal
jamais operada, minha mãe anda na horta a cavar.
Recordo-a sempre assim, sem parança, a desviver-se por nós,
as mãos dia e noite de inquieta penúria,
a abnegação posta ao ombro até deixar tudo pronto
e ficar moída, toca que toca a ordenhar,
acartar, toca que toca a varrer, a esfregar,
a bater no seu tempo a palha dos colchões,
a juntar umas giestas para acender o lume e aquecer a casa.
Assim sempre, a suar feita danada,
sem descanso e apesar de tudo – tal como as outras escravas
do pós-guerra – nem direito tem a pensão.
Quando pode assistir,
 até se benze, de tão bem que falam os políticos.



(Trad. A.M.)

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F.H. acaba de receber o Prémio da Crítica 1916, outorgado pela Associação Espanhola de Críticos Literários: ABC

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7.5.17

Machado de Assis (É só um capítulo)





Mas é tempo de voltar àquela tarde de Novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos.
Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia...
Agora é que eu ia começar a minha ópera.
"A vida é uma ópera", dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu...
E explicou-me um dia a definição, em tal maneira que me fez crer nela.
Talvez valha a pena dá-la; é só um capítulo. 


MACHADO DE ASSIS
Dom Casmurro
(1900)

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6.5.17

Félix Grande (O bom selvagem)





EL BUEN SELVAJE



Llegué a creer que la felicidad
no es un asunto de los seres humanos
Y le llamé conocimiento
a una escarcha diaria y contagiosa
cuyo nombre es claudicación

Por todas partes me nacían camaradas
Veían grandeza en mi preocupación
llamaban madurez a mi infortunio
La miseria siempre ha gozado
de un raro y comunal prestigio

Ahora, cuando tu piel me dio el coraje
para agredir a la resignación
y bramar por la dicha en medio de las plazas

seres, instituciones, todo
me rehúye o me segrega
todo se aparta de mi lado, hiedo
Soy un peligro público que expande
la pestilencia de la libertad


Félix Grande





Cheguei a crer que a felicidade
não é coisa de seres humanos
E chamei conhecimento
a um orvalho diário contagioso
que leva o nome de claudicação

Por todo lado me nasciam camaradas
Viam grandeza em minha inquietação
chamando maturidade ao meu infortúnio
Sempre a miséria gozou
de estranho e vulgar prestígio

Agora, que a tua pele me deu a coragem
de agredir a resignação
e gritar pela fortuna em todas as ruas e praças

seres e instituições, tudo
me recusa ou discrimina,
tudo se afasta de mim, cheiro mal
Sou um perigo público soltando
a pestilência da liberdade



(Trad. A.M.)

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5.5.17

Felipe Benítez Reyes (Aniversário)





CUMPLEAÑOS



Otro año que se va. Los tantos que se fueron
nos dejaron un verbo repetido
con significados diferentes
y el mapa de un tesoro que no está en ningún mapa,
conversaciones lentas y el silencio,
y luces que se apagan y sombras que se encienden,
y el vagar de alma en pena por el alma
de lo que no supimos expresar.

Otro año, mi vida. Y nosotros buscando
la llave que nos cierre la puerta del pasado
para estar en el tiempo,
que nunca es el ayer sino el enigma,
que nunca es regresar sino perderse.


FELIPE BENÍTEZ REYES
La misma luna
(2006)





Outro ano que lá se vai. Os que passaram
deixaram-nos um verbo repetido
com significados diferentes
e o mapa de um tesouro que não vem no mapa,
lentas conversas e o silêncio,
e luzes que se apagam e sombras que se acendem
e o vagar de alma pesarosa
do que não soubemos expressar.

Outro ano, vida minha. E nós à procura
da chave que nos feche a porta do passado
para estarmos com o tempo,
que nunca é ontem mas enigma,
e nunca é regressar mas perder-se.


(Trad. A.M.)

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3.5.17

Federico García Lorca (Ferido de amor)






HERIDO DE AMOR



Amor, amor
que está herido.
Herido de amor huido ;
herido,
muerto de amor.
Decid a todos que ha sido
el ruiseñor.
Bisturí de cuatro filos,
garganta rota y olvido.
Cógeme la mano, amor,
que vengo muy mal herido,
herido de amor huido,
¡herido !
¡muerto de amor !


Federico García Lorca




Amor, amor
que está ferido.
Ferido de amor fugido;
ferido,
morto de amor.
Dizei a toda a gente
que foi o rouxinol.
Bisturi de quatro fios,
garganta rasgada
e olvido.
Toma-me a mão, amor,
venho muito malferido,
ferido de amor fugido,
ferido!
morto de amor!

(Trad. A.M.)

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2.5.17

Federico Díaz-Granados (Retornos)





RETORNOS



No creo en retornos
pero este amargo corazón de casas viejas y calles rotas
late en cada regreso
sin gestos ni ademanes
y sabe que el mundo es un mal lugar para llegar

Y se regresa a escribir un poema que trate de una muchacha en un aeropuerto
que espera un avión de quién sabe dónde
o escribir sobre la carta que nunca recibí aquel sábado
escuchando el viejo cassette con mis nostalgias favoritas
o sobre los versos robados a Salinas, Borges, Walcott
y las tardes de sol en el estadio de fútbol

No creo en los regresos
pero este seco corazón de otros días canta a destiempo
sobre el cielo que quema el nombre de una mujer que amé

No creo en retornos
pero mi vocación de viajero hace que siempre que parto hacia la intemperie en el mundo
deje, como en mis días de boy scout, piedritas y migas de pan
para no perder el camino de regreso a tu cuerpo.


Federico Díaz-Granados





Não creio em retornos
mas este amargo coração de casas velhas e ruas esburacadas
late em cada regresso
sem mais aquelas
sabendo que o mundo é mau sítio para chegar

E volta-se a escrever um poema sobre uma rapariga num aeroporto
esperando um avião sabe-se lá donde
ou então escrever sobre a carta que não recebi naquele sábado
escutando a velha cassete das minhas nostalgias favoritas
ou ainda sobre os versos roubados a Salinas, Borges, Walcott
e as tardes de sol no estádio de futebol

Não acredito em regressos
mas este seco coração de outra era canta a destempo
o céu queimando o nome de uma mulher que amei


Não creio em retornos
mas sempre que parto para a tempestade do mundo
a minha vocação de viajante leva-me, como nos tempos de escuteiro,
a deixar pedrinhas e migas de pão
para não perder o caminho de regresso ao teu corpo.


(Trad. A.M.)

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1.5.17

Machado de Assis (Sou toda sua)





Concluo que não se devem abolir as loterias.
Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar.
Aqui os tenho aos dois bem casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho provavelmente.
Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatídica.
São retratos que valem por originais.
O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: "Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!"
O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: "Vejam como esta moça me quer..."
Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido.
Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão.
São como fotografias instantâneas da felicidade. 


MACHADO DE ASSIS
Dom Casmurro
(1900)

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