31.8.16

Raduan Nassar (Puta)





E eu me queimando disse 'puta' que foi uma explosão na boca e minha mão voando outra explosão na cara dela, e não era a bofetada generosa parte de um ritual, eu agora combinava intenxionalmente a palma co'as armas repressivas do seu arsenal (seria sim no esporro e na porrada!), por isso tornei a dizer 'puta' e tornei a voar a mão, e vi sua pele cor-de-rosa manchar-se de vermelho, e de repente o rosto todo ser tomado por um formigueiro, seus olhos ficaram molhados, eu fiquei atento, meus olhos em brasa na cara dela, ela sem se mexer amparada pelo carrro, eu já recuperado no aço da coluna, ela mantendo com volúpia o recuo lascivo da bofetada, cristalizando com talento um sistema complexo de gestos, o corpo torcido, a cabeça jogada de lado, os cabelos turvos, transtornados, fruindo, quase até ao orgasmo, o drama sensual da própria postura...


RADUAN NASSAR
Um copo de cólera
(1978)

.

Gabriel Celaya (Biografia)






BIOGRAFÍA*



No cojas la cuchara con la mano izquierda.
No pongas los codos en la mesa.
Dobla bien la servilleta.
Eso, para empezar.

Extraiga la raíz cuadrada de tres mil trescientos trece.
¿Dónde está Tanganika? ¿Qué año nació Cervantes?
Le pondré un cero en conducta si habla con su compañero.
Eso, para seguir.

¿Le parece a usted correcto que un ingeniero haga versos?
La cultura es un adorno y el negocio es el negocio.
Si sigues con esa chica te cerraremos las puertas.
Eso, para vivir.

No seas tan loco. Sé educado. Sé correcto.
No bebas. No fumes. No tosas. No respires.
¡Ay, sí, no respirar! Dar el no a todos los nos.
Y descansar: morir.


Gabriel Celaya





Não pegues na colher com a mão esquerda.
Não ponhas os cotovelos na mesa.
Dobra bem o guardanapo.
Isto, para começar.

Extraia a raiz quadrada de três mil trezentos e treze.
Onde é o Tanganica? Em que ano nasceu Cervantes?
Dou-lhe um zero em comportamento se falar com o seu colega.
Isto, para continuar.

Parece-lhe bem um engenheiro fazer versos?
A cultura é um adorno e o negócio é negócio.
Se continuas com essa moça fechamos-te a porta.
Isto, para viver.

Não sejas tão louco. Sê educado. Correcto.
Não bebas. Não fumes. Não tussas. Não respires.
Ai, sim, não respirar! Dizer não a todos os nãos.
E descansar: morrer.


(Trad. A.M.)

__________________

> Outra versão: Luz & sombra (José Bento)

*Há outro poema de Celaya, com o mesmo título (aqui publicado):
Rua das Pretas


.

30.8.16

Dinis Moura (Testamento)






TESTAMENTO 



aos vermes 
este corpo inóspito 

à ciência 
este coração de carne 
húmus e sentimento 
este dilacerado e desiludido 
órgão devoto do amor



Dinis Moura

.

29.8.16

Juan José Saer (Aos pecados capitais)





A LOS PECADOS CAPITALES



Por nuestra fantasía, nos liberan
de la materia pura, pero caemos en la red
de la esperanza. Pecados, vicios, y hasta
las débiles virtudes, nos separan
del cuerpo único del caos,
nos arrancan
de la madera y de los mares.
Guardianes en el umbral de la nada.


Juan José Saer




Por nossa fantasia, libertam-nos
da matéria pura, mas vamos cair na rede
da esperança. Pecados, vícios, até
as débeis virtudes, apartam-nos
do corpo único do caos,
arrancam-nos
da madeira e dos mares.
Guardiães na soleira do nada.

(Trad. A.M.)



>>  Poetas siglo XXI (12p) / Facebook (8p) / Escritores (bio+linques) / Wikipedia


 .

28.8.16

Raduan Nassar (Sua jornalistinha de merda)





Mesmo assim estufei um pouco o peito e dei dois passos na direcção dela, e ela deve ter notado alguma solenidade nesse meu avanço, era inteligente a jovenzinha, e versátil a filha-da-puta, eu só sei que ela de repente levou as mãos na cintura, mudou a cara em dois olhos de desafio, os dois cantos da boca sarcásticos, além de esbanjar a quinquilharia de outros trejeitos, mas nem era preciso tanto, eu nessa altura já não podia mais conter o arranco 'você aí, você aí' eu disparei de supetão 'você aí, sua jornalistinha de merda'...


RADUAN NASSAR
Um copo de cólera
(1978)

.

Alfonsina Storni (Casas enfiladas)





CASAS ENFILADAS



Casas enfiladas,
casas enfiladas,
casas enfiladas.
Cuadrados, cuadrados,
cuadrados.
Casas enfiladas.

La gente ya tiene el alma cuadrada
ideas en fila
y ángulo en la espalda.
Yo mismo he vertido ayer una lágrima
Díos mío... cuadrada.


Alfonsina Storni

[Trilce]




Casas enfiladas,
casas enfiladas,
casas enfiladas.
Quadrados, quadrados,
quadrados.
Casas enfiladas.

As pessoas já têm a alma quadrada
ideias em fila
e ângulo nas costas.
Até eu verti ontem uma lágrima
Deus meu... quadrada.


(Trad. A.M.)

.

27.8.16

Bocage (Camões, grande Camões)






Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co'o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza. 



Bocage

.

26.8.16

Felipe Benítez Reyes (Uma forma de eternidade)





UNA FORMA DE ETERNIDAD



Pero ¿el miedo era esto?
No los amenazantes
fantasmas del pensamiento y la conciencia.
No los largos pasillos de hospitales
con tubos fluorescentes día y noche.
Ni siquiera el temblor de irrealidad
que se queda en el alma si recuerdas.

El miedo, al parecer, es sosegado:

te llega cuando cierras la ventana
y comprendes que todo cuanto miras
es lo mismo que ayer, y que lo mismo
volverá a ser mañana y para siempre.


Felipe Benítez Reyes

[Apología de la luz]





Então, era isto o medo?
Não os fantasmas horríveis
do pensamento e da consciência.
Não os compridos corredores de hospital
com tubos fluorescentes dia e noite.
Nem sequer o tremor de irrealidade
que deixa na alma o recordar.

O medo, pelos vistos, é sereno,

vem-nos ao fechar a janela
e ao vermos que tudo o que olhamos
é o mesmo de ontem e será
o mesmo amanhã e para sempre.

(Trad. A.M.)

.

25.8.16

Raduan Nassar (Você vira um fascista)





E foi então que ela, com a mão ainda na maçaneta, deglutindo o grão perfeito do meu chamariz, e desenterrando circunstancialmente uns ares de gente séria (ela sabia representar o seu papel), entrou de novo espontaneamente em cena, me dizendo com bastante equilíbrio 'eu não entendo como você se transforma, de repente você vira um fascista' e ela falou isso de um jeito mais ou menos grave, na linha recta do comentário objectivo, só entortando, um tantinho mais, as pontas sempre curvas da boca, desenhando enfim na mímica o que a coisa tinha de repulsivo...


RADUAN NASSAR
Um copo de cólera
(1978)

.

Ernesto Pérez Vallejo (Inventário externo)





INVENTARIO EXTERIOR



No tengo amigos.
Pero soy yo el culpable de todo el silencio.

No se reír sin ganas,
no se escuchar sin hambre,
ni se llorar sin lágrimas.

No soy sociable, ni simpático, ni siquiera amable.
Odio las fotos, los espejos y los cristales de los coches.
A veces sonrío pero nunca lo bastante
como para que alguien pudiera confundir
paisaje con felicidad.

Estoy al borde del abismo por decisión propia,
estuve en otros precipicios por inercia del amor.
Me cambiaría ahora
pero es tarde.

He visto los mejores escotes del mundo
en una sola mujer.
He prometido no volver a decir su nombre.
Aunque yo nunca he cumplido una promesa.

Nunca he podido evitar trastocar los propósitos del año nuevo,
en febrero ya ni siquiera me acuerdo de olvidarte.

Sigo fumando,
no salgo a hacer ejercicios por el paseo marítimo,
ni he dejado de masturbarme a diario.

Si fuera realista diría
que lejos estás mejor.
Pero soy pesimista y pienso
que lejos mejor muerta.

Supongo que el desamor me queda grande
como los pijamas que me compra mi madre cada reyes.

Hace trescientos cuarenta y seis días que no lloro,
alguien podría pensar que es carencia de sensibilidad
yo creo que simplemente me faltan los motivos.

Ahora que nadie dice adiós
es complicado ponerse triste y que te crean.
La moda del hasta luego es sin lugar a dudas
la más malvada de todas.
Supera al tanga incluso.

Si supieras a cuantas personas he perdido en un hasta luego
el hasta nunca te parecería un recurso poético
para que el dolor atravesara este folio.

Una vez, una sola vez en mi vida me dije te quiero.
En realidad era a ella
pero en aquellos tiempos estábamos tan unidos
que ni sabía diferenciarme.

Ahora me odio.
O la odio.
Tampoco lo sé.


Ernesto Pérez Vallejo

[Los lunes que te debo]




Amigos não tenho,
mas o silêncio é culpa minha.

Não sei rir sem vontade,
não sei escutar sem fome,
não sei chorar sem lágrimas.

Não sou sociável, nem simpático, nem sequer amável.
Odeio fotos, espelhos e vidros de carros.
Às vezes sorrio, mas nunca o bastante
para que alguém pudesse confundir
paisagem e felicidade.

Estou à beira do abismo por decisão própria,
estive em outros precipícios por inércia do amor.
Agora mudaria,
mas é tarde.

Vi os melhores decotes do mundo
numa só mulher.
Jurei que nunca mais diria o seu nome,
embora eu nunca cumpra as minhas juras.

Nunca consegui deixar de transtornar os propósitos do ano novo,
em Fevereiro já nem sequer me lembro de te esquecer.

Continuo a fumar,
não corro à beira-mar,
nem deixei de masturbar-me diariamente.

Se eu fosse realista diria
que longe estás melhor.
Mas sou pessimista e penso
que longe antes morta.

Creio que o desamor fica-me grande
tal como os pijamas que minha mãe me compra pelos Reis.

Há trezentos e quarenta e seis dias que não choro,
podia pensar alguém que é falta de sensibilidade,
eu julgo que é só por falta de motivos.

Agora que ninguém já diz adeus
é difícil ficar-se triste e acreditarem-nos.
A moda do até logo, sem dúvida,
é a mais malvada de todas,
supera mesmo a da tanga.

Se soubesses as pessoas que perdi num até logo
o até nunca havia de parecer-te um recurso poético
para a dor perpassar nesta folha.

Uma vez, uma só vez na vida ela me disse amo-te.
Na verdade era a ela,
mas nesse tempo estávamos tão unidos
que nem conseguia distinguir-me.

Agora odeio-me.
Ou odeio-a.
Nem sei.

(Trad. A.M.)

.

24.8.16

Antonia Pozzi (Pausa)





PAUSA



Parecia-me que este dia
sem ti
devia ser inquieto,
escuro. Em vez disso está repleto
de uma estranha doçura, que aumenta
com o passar das horas –
quase como a terra
após um aguaceiro,
que fica sozinha no silêncio a beber
a água caída
e pouco a pouco
nas veias mais profundas se sente
penetrada.

A alegria que ontem foi angústia,
tempestade –
regressa agora em rápidas
golfadas ao coração,
como um mar amansado:
à luz suave do sol reaparecido brilham,
inocentes dádivas,
as conchas que a onda
deixou sobre a praia.


Antonia Pozzi

(Trad. Inês Dias)

.

23.8.16

Eduardo Chirinos (Fragmentos)





FRAGMENTOS DE UNA ALABANZA INCONCLUSA




Debe haber un poema que hable de ti,
un poema que habite algún espacio
donde pueda hablarte sin cerrar los ojos,
sin llegar necesariamente a la tristeza.
Debe haber un poema que hable de ti y de mí.
Un poema intenso como el mar,
azul y reposado en las mañanas,
oscuro y erizado por las noches
irrespetuoso en el orden de las cosas, como el mar
que cobija a los peces y cobija también a las estrellas.
Deseo para ti el sencillo equilibrio del mar, su profundidad
y su silencio, su inmensidad y su belleza.
Para ti un poema transparente,
sin palabras difíciles que no puedas entender,
un poema silencioso que recuerdes sin esfuerzo
y sea tierno y frágil como la flor que no me atreví a enredar
alguna vez en tu cabello.
Pero qué difícil es la flor si apenas la separamos del tallo
dura apenas unas horas,
qué difícil es el mar si apenas le tocamos se marcha lentamente
y vuelve al rato con inesperada furia.
No, no quiero eso para ti.
Quiero un poema que golpee tu almohada en horas de la noche,
un poema donde pueda hallarte dormida, sin memoria,
sin pasado posible que te altere.
Desde que te conozco voy en busca de ese poema,
ya es de noche. Los relojes se detienen cansados en su marcha,
la música se suspende en un hilo
donde cuelga tristemente tu recuerdo.
Ahora pienso en ti y pienso
que después de todo conocerte no ha sido tan difícil
como escribir este poema.


Eduardo Chirinos

[Vallejo and company]




Deve haver um poema que fale de ti,
um poema que more em algum lugar
onde te fale sem fechar os olhos,
sem tombar por força na tristeza.
Deve haver um poema que fale de ti e de mim.
Um poema intenso como o mar,
azul e repousado de manhã,
negro e eriçado pela noite,
rebelde na ordem das coisas,
como o mar
que cobiça tanto os peixes como as estrelas.
O singelo equilíbrio do mar te desejo,
seu silêncio e profundidade,
sua imensidade e beleza.
Para ti o poema transparente,
sem palavras difíceis que não entendas,
um poema silencioso que recordes sem esforço
e seja terno e frágil como a flor
que eu não me atrevi a prender-te no cabelo.
Mas que difícil é a flor se mal a cortamos
dura apenas umas horas,
que difícil o mar se mal lhe tocamos
vai-se embora,
para voltar depois com grande fúria.
Não, não quero tal para ti,
quero um poema que te bata de noite na travesseira,
um poema onde te ache dormida,
sem memória,
sem passado possível que te altere.
Desde que te conheço que busco tal poema,
e é já de noite. Os relógios detêm-se cansados em sua marcha,
a música suspende-se num fio
onde pende triste a tua lembrança.
Agora penso em ti e penso
vendo bem que conhecer-te não foi tão difícil
como escrever este poema.


(Trad. A.M.)



>>  Otro paramo (10p) / Vallejo and company (7p) / Cervantes (sinopse/linques) / Wikipedia

.

22.8.16

Raduan Nassar (Não é pra tanto, mocinho)





Ela não só tinha forjado na caseira uma platéia, mas me aguardava também cum arzinho sensacional que era de esbofeteá-la assim de cara, e como se isso não bastasse ela ainda por cima foi me dizendo 'não é pra tanto, mocinho que usa a razão', e eu confesso que essa me pegou em cheio na canela, aquele 'mocinho' foi de lascar, inda mais do jeito que foi dito, tinha na observação de resto a mesma composta displicência que ela punha em tudo, qulquer coisa assim, no caso, que beirava o distanciamento, como se isso devesse necessariamente fundamentar a sensatez do comentário, e isso só serviu para me deixar mais puto, 'pronto' eu disse aqui comigo como se dissesse 'é agora'...


RADUAN NASSAR
Um copo de cólera
(1978)

.

21.8.16

Ana Salomé (Lume)





LUME



Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.

Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. Para sempre.


Ana Salomé




>>  Uma candeia (blogue/ descont.) / Pátio alfacinha (idem) / As folhas ardem (várias cenas) / Wikipedia

.

20.8.16

Cristian Aliaga (Sagesse)





SAGESSE



Pasé la primera parte de mi vida
tratando de avanzar,
no de comprender.
Uno lee hasta la madrugada
y no entiende
hasta que alguien llega a despertarlo.
Pasé las noches sin esperar el día
y me alegro,
porque es mejor no esperar nada.
Sólo tenemos un destino, es decir
un lugar al que dirigir el viaje
para no llegar nunca.
La sabiduría es algo parecido
a pasar sin hacer ruido,
pero pasar.


Cristian Aliaga

[Life vest under your seat]




Passei metade da vida
tentando avançar,
não compreender.
Uma pessoa lê até de madrugada
e não entende
até que vem alguém despertá-la.
Eu passei as noites sem esperar o dia
e fico contente,
porque é melhor nada esperar.
Nós temos só um destino, isto é,
um lugar a que dirigir os passos
para jamais chegar.
A sabedoria é assim como
passar sem ruído,
mas passar.

(Trad. A.M.)

.

19.8.16

Raduan Nassar (O esporro)





O sol já estava querendo fazer coisas em cima da cerração, e isso era fácil de ver, era só olhar pra carne porosa e fria da massa que cobria a granja e notar que um brilho pulverizado estava tentando entrar nela, e eu me lembrei que a dona Mariana, de olhos baixos mas contente com seu jeito de falar, tinha dito minutos antes que 'o calor de ontem foi só um aperitivo', e eu sentado ali no terraço via bem o que estava se passando, e percorria com os olhos as árvores e os arbustos do meu terreno, sem esquecer as coisas menores de meu jardim...


RADUAN NASSAR
Um copo de cólera
(1978)

.

Biel Vila (Às vezes, as respostas)







A veces las respuestas
están a ras de suelo,
por eso no dejo
de mirarme los zapatos.


Biel Vila





Às vezes as respostas
estão à flor do chão,
por isso olho
sempre onde piso.

(Trad. A.M.)

.

18.8.16

Alberto de Lacerda (Todos atraiçoamos)





Todos
atraiçoamos
a verdade
todos os dias

A verdade não existe

Nós
muito menos




ALBERTO DE LACERDA
Oferenda II
IN-CM (1994)

.

17.8.16

Ape Rotoma (Um poema de amor)





UN POEMA DE AMOR




Mi chica me pide un poema, es decir,
que escriba un poema sobre ella,
añadiendo: el último fue hace un año,
y lo dice en el mismo tono en el que
otras dicen: a ver si pintas el cuarto
de los niños de una vez. En fin,
vamos por partes: ella sabe muy bien
que no soy precisamente prolífico
y que no planeo nada, que son
los asuntos los que me eligen y los
que eligen el momento, la técnica
y la extensión. Pero, por lo visto,
eso vale para todo menos para
un poema de amor. Dios de mi vida,
preciosa, ¿cuántos poemas de amor
has leído míos?, ¿cinco?, ¿siete?
Como mucho, calculo, y ¿cuántos
iban dirigidos a otras?, ¿uno?, ¿dos?
¿No lo ves? Eso sí es ser insaciable.
Porque espero que no cuente esos
que hablan sobre las mujeres
que me cruzo por la calle, y otras
fantasías masturbatorias. Me pide
justo lo que sabe que menos va
con mi estilo y se queda tan a gusto.
¿Qué coño es esto? ¿Una prueba?
¿Qué pasa con mis constantes, con
mi marchamo, con el sello de la
casa? Lo más grave es que se hace
la graciosa diciendo que va a dejarme,
que así seguro que lo hago, que
somos todos iguales, los poetas.
Bueno, bueno, sin ofender, pues
menudo gremio como para que
a uno le comparen con según quién
y, por cierto, eso es de una ingenuidad
cruel y tramposa a la que no sé
reaccionar. Cuando me dejes, princesa,
es muy posible que escriba, cómo
no, pero no será sobre ti sino sobre
tu ausencia y, según cómo acabemos,
puede que no te haga mucha gracia
que te elija como asunto y no estoy
amenazando, que quede claro,
que estas cosas sabe uno cómo
empiezan. En fin, vale, por esta vez
sea, que pase, pero que no se repita,
que yo no le pido a ella que me
dedique un día de curro. Porque total,
para decir que la quiero con locura
no hacen puta falta versos ni figuras
ni ese no-sabe-uno-qué que se espera
de un poema comme il faut. Si le
vale esto estupendo, pero por favor,
espero que no se meta de nuevo
en mis cosas en adelante. Está feo
y después la gente le toma a uno
por el pito de un sereno y esto de
escribir en renglones cortos es cosa
seria, qué coño. Aquí está, tu jodido
poema, dice las cosas que dice y
las que quieras leer entre líneas y
se acabó. Ahora, ¿podemos dedicarnos
a lo nuestro que hoy espero que sea
algo como echar un polvo o similar?


Ape Rotoma

[Fragments de vida]




A miúda pede-me um poema, isto é,
que escreva um poema sobre ela,
e acrescenta, ‘o último já foi há um ano’,
isto com o mesmo tom de outras
dizendo,‘a ver se pintas de uma vez
o quarto das crianças’. Enfim,
vamos por partes: ela sabe muito bem
que eu não sou bem o que se possa dizer
prolífico e não planeio nada,
antes são os temas que me escolhem
e que escolhem o momento, a técnica
e a extensão. Mas, pelos vistos,
isso vale para tudo menos para
um poema de amor. Pai da vida,
ó linda, quantos poemas de amor
é que leste, meus, cinco? sete?
Quando muito, calculo. E quantos eram
dirigidos a outras, um? dois?
Estás a ver? Isso é que é ser insaciável.
Porque espero bem que não contem
os que falam das mulheres
com que me cruzo na rua e outras
fantasias masturbatórias. Pede-me
justamente o que sabe que vai menos
com o meu estilo e inclinação.
Mas que raio é isto, uma prova?
Então e os meus dados, e o
meu carimbo, o selo da casa?
O pior é que ela faz-se de graciosa,
diz que me deixa, assim de certeza
que o faço, que os poetas são todos iguais.
Bom, bom, não vale ofender,
comparando uns com outros,
com uma falsa candura a que eu não sei
que dizer. Quando me deixares, princesa,
é muito possível que escreva, então
não, mas não será sobre ti, antes
sobre a tua ausência, e dependendo
de como acabarmos pode não te agradar
muito que te escolha como tema,
não estou a ameaçar, fique aqui claro,
que a gente sabe como começam
estas coisas. Enfim, vá lá, seja por esta vez,
mas que não se repita, que eu a ela também
não lhe peço que me dedique um dia
de emprego. Porque, afinal,
para lhe dizer que a amo com loucura
não são precisos versos nem figuras de estilo,
nem esse não-sei-quê que se espera
de um poema ‘comme il faut’. Se isto
lhe servir, óptimo, mas por favor
que doravante não se meta de novo
nas minhas coisas. A coisa está preta
e depois as pessoas ainda nos tomam
pelo apito do guarda-nocturno e isto
de escrever em linhas curtas, que raio,
tem o que se lhe diga. Aqui está, o teu
bendito poema, diz aquilo que diz
mais o que queiras ler nas entrelinhas
e pronto. Podemos, agora, passar
a outra coisa, ir para a camoca
por exemplo, ou coisa assim?


(Trad. A.M.)

.

16.8.16

Raduan Nassar (O levantar)





E estava assim na janela, de olhos agora voltados pro alto da colina em frente, no lugar onde o Seminário estava todo confuso no meio de tanta neblina, quando ela veio por trás e se enroscou de novo em mim, passando desenvolta a corda dos braços pelo meu pescoço, mas eu com jeito, usando de leve os cotovelos, amassando um pouco seus firmes seios, acabei dividindo com ela a prisão a que estava sujeito, e, lado a lado, entrelaçados, os dois passamos, aos poucos, a trançar os passos, e foi assim que fomos directamente pro chuveiro.


RADUAN NASSAR
Um copo de cólera
(1978)

.

Ángel González (Ambiguidade da catástrofe)





AMBIGÜEDAD DE LA CATÁSTROFE



Lo había perdido todo:
amor, familia, bienes, esperanzas.
Y se decía casi sin tristeza:
¿no es hermoso, por fin, vivir sin miedo?


Ángel González





Tinha perdido tudo,
amor, família, bens, esperança.
E dizia-se, quase sem tristeza:
não é belo, por fim, viver sem medo?

(Trad. A.M.)

.

15.8.16

Affonso Romano de Sant'Anna (Arte-final)





ARTE-FINAL



Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.

O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.

Uma coisa é a letra,
e outra o ato,

– quem toma uma por outra
confunde e mente.


Affonso Romano de Sant’Anna

.

14.8.16

Ana Pérez Cañamares (Há palavras)





Hay palabras que se van cerrando
como bares viejos
para abrir zapaterías.

Palabras que nunca más pronunciaré
con naturalidad. Palabras que
para siempre sólo serán citas.

Nunca viví dentro de la palabra
abuelo. Abuelo era el título de un cuento
escrito en otro idioma.

Madre fue una palabra temida y adorada
un tótem levantado en medio de La Mancha.

Padre un pasillo en el que nunca
me detuve por mucho tiempo.

Palabras cerradas.
Juguetes de la infancia que ya
no se fabrican.



Ana Pérez Cañamares

[Nunca llegan tarde las hadas]





Há palavras que vão encerrando
como antigos bares
para abrirem sapatarias.

Palavras que não mais hei-de pronunciar
com naturalidade. Palavras
que serão para sempre apenas menções.

Nunca vivi dentro da palavra
avô. Avô era o nome de uma história
escrita noutra língua.

Mãe foi uma palavra temida e adorada
um totem erguido no centro de La Mancha.

Pai um corredor em que nunca
me detive por muito tempo.

Palavras encerradas.
Brinquedos de infância que já
não se fabricam.


(Trad. A.M.)

.

13.8.16

Raduan Nassar (A chegada)





E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio-me abrir o portão para que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol se ia pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou 'que que você tem?', mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistência da pergunta que respondi 'você já jantou?' e como ela dissesse 'mais tarde' eu então me levantei e fui sem pressa pra cozinha...


RADUAN NASSAR
Um copo de cólera
(1978)

.

Alfredo Buxán (A eternidade da cinza)





ETERNIDAD DE LA CENIZA



Morir es un momento, lo demás un vacío
que colmamos de tiempo y de silencio. Vivir, en cambio,
es fácil: proseguir.
Esta severa duda que atraviesa los cuerpos.
Pisar la huella de otros pies sobre la grava,
aprender con certero dolor
el modo más sereno de enfrentar el instante:
desnudo y sin aullar, apegado a la paz
de quien conoce que no puede saber
porque es partícula y no germen, fragmento
en el espacio, mojada brizna que se extingue
y enmudece en silencio bajo el sol,
sobre la piedra casi eterna que lo acoge.


Alfredo Buxán



Morrer é um instante, o resto um vazio
que enchemos de tempo e silêncio.
Viver, em troca, é fácil: prosseguir.
Esta severa dúvida que atravessa os corpos.
Pisar o rasto de outros pés no chão do caminho,
aprender com dor certeira
o modo mais sereno de enfrentar o instante:
desnudo e sem uivar, apegado à paz
de quem sabe que não pode saber
porque é partícula e não germe, fragmento
no espaço, molhada brisa que se fina
e emudece em silêncio debaixo do sol,
sobre a pedra que o acolhe eterna quase.

(Trad. A.M.)

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12.8.16

A.M.Pires Cabral (Epígrafe)

 




EPÍGRAFE



Se algum dia alguém chegar a ler
este dizer agreste,
provavelmente pensará: que pálida lanterna;
não é deste metal que a luz é feita.

Calma. Pois não.

Mas quem assiduamente
visita os desvãos onde a noite se acoita
não precisa de mais que o clarão desta treva,
desta cegueira sem cão e sem bengala,
para no escuro rasgar o seu caminho
e nele ir progredindo às arrecuas.


A.M.Pires Cabral

[Hospedaria Camões]

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11.8.16

Alfonso Brezmes (A maldição)





LA MALDICIÓN



Que te pierdas en un bosque.
Que tardes
muchas veces
muchos años
en dar con la salida.
Y que cuando logres escapar,
y me busques,
y no me encuentres,
comprendas al fin
que tú eras el amor,
y yo, el bosque.


ALFONSO BREZMES
Don de lenguas
(2015)




Que te percas no bosque.
Que tardes
muitas vezes
muitos anos
a encontrar a saída.
E quando lograres escapar,
e me buscares,
e não me achares,
percebas enfim
que tu eras o amor,
e eu o bosque.

(Trad. A.M.)

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10.8.16

Eça de Queiroz (O Doutor)





Infalível, também, era o Doutor, aquele cavalheiro estimável, mas de aspecto lúgubre, que todos apenas conheciam por este nome: o Doutor.

Sempre vestido de preto, sempre de luvas, amarelo como uma cidra, persistia na sua mudez taciturna; porém, continuava a escutar com uma atenção intensa, a testa franzida, piscando vivamente os olhos, como num profundo trabalho cerebral.

Respeitador fervente das instituições, das personalidades oficiais, ninguém sabia ainda onde ele vivia, nem de que vivia: mas precipitava-se com tanta veneração (porque era homem de sociedade) a tomar as xícaras vazias das mãos das senhoras, dizia com tanta convicção, na sua voz cavernosa, «tem V. Exª carradas de razão»; que era geralmente considerado como um excelente moço.



EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos

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Aldo Luis Novelli (Todas as noites)





TODAS LAS NOCHES



Espero que los ruidos interiores
se acallen,
que la casa se duerma
y la calle se silencie.
Espero que los ángeles detengan su vuelo
que los dioses se distraigan
y los hombres se desnuden.
Cuando todo está dispuesto
tan solo me apoyo en la pared,
y sufro en la espera
lo terrible del silencio.


Aldo Luis Novelli




Espero que se calem
os ruídos interiores,
que a casa adormeça
e a rua fique em silêncio.
Espero que os anjos detenham seu voo,
que os deuses se distraiam
e os homens se desnudem.
Quando tudo está disposto
encosto-me só à parede
e sofro na espera
o terrível do silêncio.

(Trad. A.M.)

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9.8.16

Daniel Faria (A pedra tem a boca)





A pedra tem a boca junto do ouvido
E para dentro de si mesma sem cessar se diz.

Se cair nos olhos
Quebrar-se-á em pranto.
Se rodar no dorso
Vergar-me-á.

Pesa-me no bolso
E na cabeça.
Não é um pensamento.
É uma ideia ensimesmada. Uma pedra fechada
Pelo lado de dentro.


Daniel Faria

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8.8.16

Alberto Szpunberg (Não outro copo)





(XXXIV)


No otra copa
sino la boca,
no la sed
sino los labios,
sino la lengua,
sino el grito,
palabra tras palabra,
y como en unción las manos,
la única plegaria
que celebramos
de la vida que se derrama
y nos desborda.


Alberto Szpunberg

[Marcelo Leites]




Não outro copo
mas a boca,
não a sede
mas os lábios,
mas a língua,
mas o grito,
palavra sobre palavra,
e de mãos postas
a única prece que erguemos
da vida que se derrama
e nos transborda.

(Trad. A.M.)

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7.8.16

Eça de Queiroz (Dois partidos)





Mas havia entre os Reformadores e os Nacionais ideais opostos? (...)

Em Religião, que eram os Reformadores? Católicos, Apostólicos, Romanos. E os Nacionais? Idem.

Em Política, o que eram os Reformadores? Conservadores constitucionais. E os Nacionais? Idem.

Não tinham ambos o mesmo amor pela dinastia? – O mesmo.

Não eram ambos sustentáculos dedicados da propriedade? – Dedicadíssimos.

Não desejavam ambos a estrita aplicação da Constituição, só da Constituição, de toda a Constituição? – Desejavam-na ambos, ardentemente.

Não eram ambos centralizadores? Eram.

Não estavam ambos firmes na manutenção de um exército permanente? Firmíssimos, ambos.

Não tinham ambos um nobre rancor aos princípios revolucionários? Um rancor nobilíssimo.

E em questões de Instrução, de Imprensa, de Polícia, não tinham ambos as mesmas óptimas ideias? Absolutamente as mesmas.

Não eram ambos patriotas? Fanaticamente!



EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos

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Alfonsina Storni (Queixa)





QUEJA



Señor, mi queja es ésta,
Tú me comprenderás;
De amor me estoy muriendo,
Pero no puedo amar.

Persigo lo perfecto
En mí y en los demás,
Persigo lo perfecto
Para poder amar.

Me consumo en mi fuego,
¡Señor, piedad, piedad!
De amor me estoy muriendo,
¡Pero no puedo amar!


Alfonsina Storni




Senhor, esta é minha queixa,
sei que me entenderás:
de amor estou morrendo,
porém não posso amar.

Persigo o perfeito
em mim e nos mais,
o perfeito persigo
para poder amar.

Meu fogo me consome,
Senhor, tem piedade!
De amor estou morrrendo,
porém não posso amar.

(Trad. A.M.)



>>  Cervantes (tudo+algo) / Classici stranieri (antologia) / Wikipedia

.

6.8.16

Tishani Doshi (Poema de amor)





LOVE POEM



Ultimately, we will lose each other
to something. I would hope for grand
circumstance — death or disaster.
But it might not be that way at all.
It might be that you walk out
one morning after making love
to buy cigarettes, and never return,
or I fall in love with another man.
It might be a slow drift into indifference.
Either way, we’ll have to learn
to bear the weight of the eventuality
that we will lose each other to something.
So why not begin now, while your head
rests like a perfect moon in my lap,
and the dogs on the beach are howling?
Why not reach for the seam in this South Indian
night and tear it, just a little, so the falling
can begin? Because later, when we cross
each other on the streets, and are forced
to look away, when we’ve thrown
the disregarded pieces of our togetherness
into bedroom drawers and the smell
of our bodies is disappearing like the sweet
decay of lilies — what will we call it,
when it’s no longer love?


Tishani Doshi

[Emma Gunst]




No fim, havemos de perder-nos por algo
um ao outro, oxalá seja por uma forte razão
– morte ou acidente.
Mas pode não ser nada disto,
podes tu sair de manhã, por cigarros,
e nunca mais voltar,
ou eu apaixonar-me por outro.
Podemos também cair na indiferença,
lentamente.
De qualquer modo, temos de nos preparar
para suportar o peso da perda.
Porque não começar agora que a tua cabeça repousa
no meu colo como uma perfeita lua
e os cães na praia não param de uivar?
Porque não tomar a costura que nos liga
nesta noite indiana e rasgá-la, só um pouco,
para a queda enfim começar?
Porque depois, quando nos cruzarmos na rua
e tivermos de desviar os olhares,
quando arrumarmos na estante do quarto
as partes esquecidas da nossa vida comum,
e o cheiro dos nossos corpos se for esvaindo
como o lento murchar dos lírios
- o que é que havemos de chamar a isto,
quando já não for amor?


(Trad. A.M.)




>>  Tishani Doshi (sítio) / Wikipedia

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5.8.16

Vicente Gallego (A pergunta)





LA PREGUNTA



En la noche avanzada y repetida,
mientras vuelvo bebido y solitario
de la fiesta del mundo, con los ojos muy tristes
de belleza fugaz, me hago esa pregunta.
Y también en la noche afortunada,
cuando el azar dispone un cuerpo hermoso
para adornar mi vida, esa misma pregunta
me inquieta y me seduce como un viejo veneno.
Y a mitad de una farra, cuando el hombre
reflexiona un instante en los lavabos
de cualquier antro infame al que le obligan
los tributos nocturnos y unas piernas de diosa.

Pero también en casa, en las noches sin juerga,
en las noches que observo desde esta ventana,
compartiendo la sombra
con el cuerpo entrañable que acompaña mis días,
desde esta ventana, en este mismo cuarto
donde ahora estoy solo y me pregunto
durante cuánto tiempo cumpliré mi condena
de buscar en los cuerpos y en la noche
todo eso que sé
que no esconden la noche ni los cuerpos.


Vicente Gallego




Noite alta e repetida,
enquanto volto bebido e solitário
da festa do mundo, com olhos tristes
de beleza fugaz, ponho-me a pergunta.
E também na noite afortunada
quando o acaso dispõe um corpo belo
para me enfeitar a vida, essa mesma pergunta
inquieta-me e seduz-me como um velho veneno.
E a meio da farra, quando um homem
medita um instante no lavabo
de qualquer antro infame a que o obrigam
os tributos da noite e umas pernas de deusa.

Mas também em casa, nas noites sem borga
nas noites em que observo por esta janela,
partilhando a sombra
com o corpo amado que acompanha meus dias,
desta janela, neste mesmo quarto
onde me encontro agora sozinho, pergunto-me
por que tempo cumprirei esta pena
de buscar nos corpos na noite
isso tudo que sei
que não se esconde na noite nem nos corpos.

(Trad. A.M.)

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4.8.16

Eça de Queiroz (Um ministério gasto)





O ministério Cardoso Torres, ao fim da última sessão parlamentar, estava gasto.

Esta expressão a que eu chamaria, se me não contivesse o respeito, a «gíria constitucional», refere-se a um fenómeno venerável e repetido, que eu nunca compreendi bem, apesar das explicações benévolas que me foram dadas por conservadores, republicanos e cépticos.

Há ministérios que se gastam.

E todavia, esses ministérios, como os outros, administram o tesouro com honestidade, fazem o expediente das secretarias com suficiente regularidade, mantêm no país uma ordem benéfica, não oprimem nem a imprensa nem a consciência, são respeitosos para com o Chefe de Estado, acompanham com dignidade, ao Alto de S. João, todos os defuntos ilustres, falam nas Câmaras com honrosa correcção, são na vida privada cidadãos estimáveis, e no entanto – ao fim de alguns meses desta rotina honesta, pacata e higiénica – gastam-se.



EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos

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Valeria Pariso (Um cão sem dono)





Un perro de la calle abraza a un hombre.
Lo veo: el hombre sentado en la plaza
sube a su cuello las dos patas delanteras del perro.
El perro no le tiene miedo. Están ahí: cara con cara.
Los dos abandonados se abrazan.
En silencio se abrazan.
Hay dolor de huesos, de hembras.
En el amor a los dos los mordió el hambre.
No hay nada más animal que la belleza.


Valeria Pariso

[El poeta ocasional]




Um cão sem dono abraça um homem.
Estou a vê-lo, o homem sentado na praça
põe ao pescoço as patas dianteiras do cão.
O cachorro não lhe tem medo. Ali estão, cara a cara.
Os dois abandonados abraçam-se.
Em silêncio abraçam-se.
Há dor de ossos, de fêmeas.
No amor a fome mordeu a ambos.
Não há nada mais animal que a beleza.

(Trad. A.M.)

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3.8.16

Sebastião Alba (Como se o mar)





COMO SE O MAR



Quero a morte sem um defeito.
Sem planos brancos.
Sem que pequeninas luzes se apaguem
dentro dos ruídos.
Também a não quero providencial,
com um anjo vingador e secretíssimo
enfim pousado.
Nenhuma mitologia. Nenhuma
fruição poética. Assim: Como se o mar
me aspirasse os ouvidos... etc.
Mas súbita e civil,
com repartições abertas,
comércio, a luz graduada
nas altas paredes
dum bom dia sonoro.


Sebastião Alba




>>  Modo de usar (15p) / Macua (11p+info) / Cultura (10p) / Poeticia (9p) / Zunai (7p+ensaio-Luís Costa) / Turia (9p) / Facebook / Wikipedia

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2.8.16

Roque Dalton (Cartinha)





CARTITA



Queridos filósofos,
queridos sociólogos progresistas
queridos sicólogos sociales
no jodan tanto con la enajenación
aquí donde lo más jodido
es la nación ajena.

Roque Dalton




Queridos filósofos,
queridos sociólogos progressistas
queridos psicólogos sociais
não chateeis tanto com a alienação
aqui onde o mais chato
é a nação alheia.

(Trad. A.M.)

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1.8.16

Eça de Queiroz (Uma nódoa)






O Estandarte dizia:

«É imenso como torpeza; mas nós aplaudimos, porque um ministério que assim procede, inspira, ipso facto, um nojo genérico.

Este governo não há-de cair – porque não é um edifício. Tem que sair com benzina – porque é uma nódoa!»



EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos


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Roger Wolfe (Nada a fazer)





NADA QUE HACER



Hay personas
que opinan
que el poema se parece
a un chiste.
Otros, sin embargo, consideran
que es más que nada un acto
de inteligencia.
Yo lo que creo es que la mayoría
de las ocasiones
se asemeja mucho
a la vida.
Ya lo veis.
Un chiste tonto.
O peor:
de mal gusto.


ROGER WOLFE
Hablando de pintura con un ciego
(1993)

[Poéticas]




Há pessoas
que opinam
que o poema é como
um chiste.
Outros, porém, consideram
que é mais que tudo um acto
de inteligência.
Eu o que creio é que
no mais das vezes
assemelha-se muito
com a vida.
Estais a ver:
uma piada tonta.
Ou pior,
de mau gosto.

(Trad. A.M.)

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