30.4.16

Manuel Vilas (Delia's gone)





DELIA'S GONE



Bendito sea el suicidio.

Lo mejor de nuestro amor fue suicidarnos.

Tantos suicidas en París, en Nueva York,
en Ginebra, en Londres, en Estocolmo y en Madrid.

Hombres y mujeres que se arrojan por las ventanas,
desde décimos o undécimos pisos,
intentando volar en el absurdo viento de las ciudades.

Bendito sea el suicidio, que nos iguala a los ángeles
más famosos en las rutinarias gradas del Universo.

Es temperamental, la muerte por amor.

Suicídate, no significa nada, el mundo resplandecerá
aún más y no habrá tristeza alguna porque nadie te ama ya.

Hombres y mujeres que dispararon negras pistolas
contra sus inocentes y vencidas sienes,
que castigaron su aparato digestivo
con cápsulas verdes y blancas, rojas y amarillas.

No soporté que me abandonaras, amor mío.

No soporté quedarme sin trabajo, amor mío.

No podía verte con otra, amor mío.

San Ian Curtis, San Mariano José de Larra, Santa Silvia Plath,
la santa horca, la santa pistola y el santo gas,
y el amor siempre,
el amor
tan asesino.

Di adiós a tu cuerpo, se ha quedado vacío.

Bendito sea el suicidio,
que nos aleja de la mirada de todos los Emperadores.

Bendito sea el suicidio, el gran adiós de los lunáticos.

Qué bella es la muerte y su hermano el sueño,
dijo un inglés ilustre.

No podía soportar las nubes, el mar, las calles,
amor mío.

Cúbreme de tierra, estaré bien no estando,
amor mío.

Cómprame un ataúd barato, estará bien así.

No hace falta que me recuerdes, amor mío.


Manuel Vilas

[Revista Turia]



Bendito seja o suicídio.

Do nosso amor o melhor foi suicidarmo-nos.

Tantos suicidas em Paris, Nova Iorque, Genebra, Londres, Estocolmo, Madrid.

Homens e mulheres que se atiram pelas janelas,
do alto de dez ou onze pisos,
a tentar voar no vento absurdo da cidade.

Bendito seja o suicídio, que nos iguala aos anjos
mais famosos na escala do Universo.

É temperamental, a morte de amor.

Suicida-te, não significa nada, o mundo resplandecerá
mais ainda e não haverá tristeza alguma porque ninguém te ama já.

Homens e mulheres que dispararam negras pistolas
contra os miolos, que castigaram o estômago
com pírulas verdes e brancas, vermelhas e amarelas.

Não aguentei que me abandonasses, amor meu.

Não aguentei, amor meu, ficar sem trabalho.

Não podia ver-te com outra, amor meu.

São Ian Curtis, São Mariano José de Larra, Santa Sylvia Plath,
a santa forca, a santa pistola e o santo gás,
e o amor sempre,
o amor
assassino.

Diz adeus a teu corpo, que está vazio.

Bendito seja o suicídio,
que nos afasta dos olhos de todos os Imperadores.

Bendito seja o suicídio, o grande adeus dos lunáticos.

Que bela a morte e o sono seu irmão,
como disse um inglês ilustre.

Não podia já aguentar as nuvens, o mar, as ruas,
amor meu.

Compra-me um caixão barato, é quanto basta.

Nem é preciso que me lembres, amor meu.

(Trad. A.M.)

.

29.4.16

Ruy Belo (A rapariga de cambridge)





A RAPARIGA DE CAMBRIDGE



Queria conhecer intimamente conhecer
a rapariga anónima estendida no relvado
ao sol distante de um colégio de cambridge
Perdida na distância nem sei bem
se é uma mulher se rapariga
mais uma das amadas raparigas
Sei apenas que lê não sei o quê
e é simples objecto recortado
na margem verde intensamente verde
após a água mansa que reflecte os edifícios
Urgente é conhecer aquela que só veio num postal
mandado por alguém que certamente não sabia
o que essa rapariga ao sol para mim significaria
Ela devia saber um português profundíssimo
ou talvez as coisas que eu tinha para lhe dizer
as conseguisse de repente dizer num inglês
que fosse a melhor parte de mim
Definitivamente todo este dia-a-dia
contra o qual esmago a minha melhor lança
como que um sobressalto passaria
O meu reino pela rapariga de cambridge
Se eu a conhecesse mas no momento da fotografia
sentindo agora o que à distância sinto
pode dizer-se que seria feliz
Só assim o seria finalmente
há uma força obscura que mo diz


Ruy Belo


[Cómo cantaba mayo]

.

28.4.16

Luis Cernuda (Clearwater)





CLEARWATER



Píntalo. Con un pincel delgado,
Con color bien ligero. Pinta
El reflejo del sol sobre las aguas,
En su fondo piedrecillas que sueñan.

Las hojas en los olmos, que algún aire,
Al orear, mansamente remueve
Al fondo, sombra azul de unas colinas.
Quieta en el cielo, alguna nube clara.

Dentro de ti sonríe lo que esperas
Sin prisa, para su día cierto;
Espera donde feliz se refleja tu vida
Igual que este paisaje en dulces aguas.


Luis Cernuda


[Escomberoides]




Pinta-o, a pincel fino
e uma cor muito leve. Pinta
o reflexo do sol na água,
pedrinhas lá no fundo a sonhar.

As folhas do ulmeiro que um vento,
ao soprar, manda ao fundo,
sombra azul de alguns montes.
Quieta no céu, uma nuvem clara.

Dentro de ti sorri o que esperas
sem pressa, para seu dia certo;
espera onde feliz se espelha tua vida,
tal como esta paisagem em água serena.


(Trad. A.M.)

.

27.4.16

Ricardo Silvestrin (Não quero mais de um poeta)





não quero mais de um poeta
que a sua letra
palavra presa na página
borboleta
nem quero saber da sua vida
da verdade que nunca foi dita
mesmo por ele
que tudo que viveu duvida
não revirem a sua cova
o seu arquivo
é no seu livro que o poeta está enterrado
vivo.


Ricardo Silvestrin

[Acontecimentos]

.

26.4.16

Luis Alberto de Cuenca (Voltaremos a ver-nos)





Volveremos a vernos donde siempre es de día
y los feos son guapos y eternamente jóvenes,
donde los poderosos no abusan de los débiles
y cuelgan de los árboles juguetes y tebeos.

En ese hogar de luz que no hiere los ojos
volveremos tú y yo a decirnos bobadas
cogidos de la mano, viendo morir las olas
sin agobios ni prisas, donde el sol no se pone.

Y viviré en tus labios el amor que la Tierra
sintiera por el Cielo cuando el mundo era un niño,
y el tiempo dejará de salmodiar su lúgubre
canción de despedida mientras nos abrazamos.


LUIS ALBERTO DE CUENCA
El hacha y la rosa
(1993)


[Un poema cada dia]





Voltaremos a ver-nos onde é sempre dia claro
e os feios são belos e eternamente jovens,
onde os poderosos não abusam dos fracos
e pendem nas árvores brinquedos e revistas.

Nessa casa de luz que a vista não fere
voltaremos ambos a dizer-nos tolices,
de mão dada, a ver morrer as ondas,
sem pressas nem aflições, lá onde o sol se põe.

E viverei em teus lábios o amor que a Terra
tinha ao Céu quando o mundo era criança,
e o tempo deixará de entoar sua triste
canção de adeus, enquanto nos abraçamos.


(Trad. A.M.)

.

25.4.16

Pedro Tamen (Os dias)





OS DIAS



Naquele tempo, viver era a melhor coisa do mundo.
Quando nascia o sol as pessoas viam
e os homens eram crianças para além dos montes.
Era uma planície, grande como convém a todas as planícies
e plana porque tudo estava certo.
Naquele tempo tínhamos sido criados e éramos iguais às
ervas e às flores.
Tu,
tão perfeita que impossível não seres,
tão erguida como um riso de andorinha,
tu estavas ao meu lado, naturalmente fresca,
e não havia motivos nem razões porque sabíamos tudo.
A nossa teologia era o beijo da criança mais próxima
e o deitarmo-nos na terra como folhas da mesma planta,
gratos, reduzidos, conscientes.
Olhando para cima, o céu abria-se e todos os Anjos
vinham sentar-se no rebordo
e riam como nós pequenas gargalhadas.
Eu cantava canções mais belas do que não tendo palavras
e ouvias-me em silêncio e de olhos abertos, exactamente
como a todos os sons.


Pedro Tamen

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24.4.16

Karmelo C. Iribarren (A herança)





LA HERENCIA



Últimamente,
cuando me asomo al espejo,
es mi abuelo el que me mira,
más que mi padre.

Cincuenta años
para empezar a cobrar
la única herencia que me dejó,

y que acabará matándome.


Karmelo C. Iribarren

[Sureando]




Ultimamente,
quando me vejo ao espelho,
é meu avô que me olha,
mais que meu pai.

Cinquenta anos
para começar a cobrar
a única herança que me deixou,

e que acabará por matar-me.


(Trad. A.M.)

.

23.4.16

Alexandre Pinheiro Torres (A palavra)





Que se há-de fazer?

O sofrimento é já indesligável da condição humana, e o homem não faz outra coisa senão acumular a dor em cima de outra dor.

Mutilamo-nos com palavras, ou, o que é pior, silêncio, como se acaso tivéssemos outras vidas para viver; fazemo-lo de máxima alegria arcabuzados, revanchismo, azinhavre, esquecidos que os nossos corpos amam em excesso a morte.

E mais infernizados que as plantas, animais, certas pedras que podem ser destruídas facilmente, uma flecha, um tiro, pólvora, uma armadilha, mas nunca só por apenas, descuidada, uma palavra. (n. 122)


ALEXANDRE PINHEIRO TORRES
Espingardas e Música Clássica
(1987)


_____________________

GRALHAS OU INCORRECÇÕES (*)

- O Homem como a natureza detestam (?) ser aniquilados             n.6/30
- o que é ir muito além que (?) Ovídio na Arte de Amar                 n.16/42
- sem que antes de cair não (não sem que) mandasse dois tiros  n.30/61
- o melhor é convencê-los... Se não (senão) ficamos de calças    n.33/67
- não vais à missa dele, quanto (quando) mais não seja para       n.37/72
- E os versos, quanto (quando) mais não fosse                              n.39/76
- Prefere-se... perder um amigo do que (a) uma ocasião para        n.42/80
- decidir os destinos de Frariz, o mesmo que é (é que) dizer do mundo
                                                                                                                n.46/86
- isso não tinha nada a haver (a ver) com ele                                  n.87/150
- A verdadeira guerra é que agora (agora que) vai começar         n.88/153
- Oh (ó) senhor subinspector/ Idem, que brincadeira é essa?      n.96/174
- os homens receiam não serem (ser) suficientemente homens/
as mulheres têm medo de serem (ser)apenas consideradas mulheres
                                                                                                                n.101/183
- duas mãos dadas, tão unidas, não haveria força, diríamos, que
agora as descolassem (descolasse)                                                  n.119/220
- porque se não (senão) daqui a cinquenta, cem anos... vão julgar
                                                                                                                n.135/250
(*) Registadas na leitura, ed. Caminho, 2.ª edição (1995).
     Umas serão opinativas, outras não, umas de revisão, outras talvez não.
     Para cada uma, assinalado à esq. da barra o capítulo, à dir. a página.

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Pedro Salinas (Serás, amor-III)





Serás, amor,
um longo adeus que não acaba?
Desde o início que viver é separar-se.
Ao primeiro encontro com a luz e os lábios,
o coração pressente a angústia
de um dia estar cego e só.
Amor é o milagre do protelar
do seu próprio termo:
é o prolongar do facto mágico,
de um mais um serem dois, contra
a sentença primeira da vida.
Com beijos,
com a pena e o peito se conquistam,
em afanosas lides, entre gozos
parecidos com brincadeiras,
dias, terras, espaços fabulosos,
furtados à separação que nos espera,
irmã da morte ou a morte mesma.
Cada beijo perfeito afasta o tempo,
atira-o para trás, alarga o mundo breve
em que é permitido ainda beijar.
Não é na chegada ou na descoberta
que tem o amor o seu cume:
é na resistência à separação que o sentimos,
desnudo, altíssimo, tremendo.
E a separação não é o momento
em que braços, ou vozes,
se despedem com gestos visíveis:
é antes, é depois.
Se apertamos as mãos ou nos abraçamos,
não é pela separação,
mas porque a alma cegamente sente
que a forma possível de estar juntos
é uma despedida longa, clara.
E que o mais certo ainda é o adeus.


Pedro Salinas

(Trad. A.M.)*


________________

(*) Nova tentativa.
Original: Rua das Pretas
Antecedentes, também.

22.4.16

Pedro da Silveira (Memórias)





MEMÓRIAS


1
Perdi os nomes da inocência.
A ignorância,
continuo a aprendê-la.

2
Tinem campainhas
no azul novo da manhã.
Vacas a caminho das relvas.

3
A mesa está posta. Come
como quem beija
o pão duro da vida.


Pedro da Silveira

[Poemas & poetas]


.

21.4.16

Juan Vicente Piqueras (Os deuses dentro)





LOS DIOSES DENTRO



Los dioses saben más y mejor que nosotros
lo que nos hace falta. Les pedimos un hijo
y nos mandan un lobo, y no los comprendemos.

La vida cada día los olvida.
La muerte por la noche los inventa.

Y las enfermedades, como bien dijo el sabio,
son dioses que agonizan dentro de nuestro cuerpo,
su último templo en ruinas,
su refugio sin fe. Piden piedad.

Los dioses no comprenden la extraña insensatez
con que hemos decidido acabar con nosotros
acabando con ellos, el orgullo
con que los despreciamos.

Los dioses piden poco: que no los olvidemos.

Pero es mucho pedirle a una raza de esclavos
que han hecho del olvido su misión y su vida
y su razón de ser.
Los dioses callan,
resignados, y mueren en silencio
dentro de cada uno de sus antiguos súbditos.


Juan Vicente Piqueras




Os deuses sabem melhor do que nós
aquilo que precisamos. Pedimos-lhes um filho,
mandam-nos um lobo, e não os entendemos.

A vida em cada dia os esquece,
a morte à noite inventa-os.

E as doenças, segundo o sábio dito,
são deuses agonizando no nosso corpo,
seu derradeiro templo em ruínas,
seu refúgio sem fé. Pedem piedade.

Os deuses não entendem a estranha insensatez
com que decidimos acabar connosco e com eles,
o orgulho com que os desprezamos.

Pedem pouco os deuses, só que os não olvidemos.

Mas é muito pedir a uma raça de escravos
que do olvido fizeram vida, missão
e razão de ser.
Os deuses calam-se,
resignados, e em silêncio morrem
em cada um dos antigos súbditos.


(Trad. A.M.)

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20.4.16

Alexandre Pinheiro Torres (Paixão-2)





Há quem afirme, muito a sério, que todas as paixões são infelizes.

Não nos levam elas, às vezes, ao mais absoluto descontrolo?

Mas se não fosse todo esse sofrimento não cairíamos para sempre na mais abjecta das preguiças?

Ora Deus ou a Natureza não criaram o homem só para dormir, embora dormir, como disse Nietzsche, não seja arte que se despreze.

Por que não dizer que toda a paixão é o milagre que nos dá perfil humano?

Porque os animais não sofrem de paixões no mesmo sentido que nós.

Expliquemos: os animais não têm corpos, são corpos.

Qualquer acto desses corpos é uma expressão, sem ambivalência, da natureza do animal.

Num certo sentido o animal não tem existência independente.

O homem vive.

O animal é vida.

Se formos pequenos é porque as nossas paixões não são grandes.

Soframos, pois. (n. 67)



ALEXANDRE PINHEIRO TORRES
Espingardas e Música Clássica
(1987)

.

Juan Luis Panero (Não há palavras)





NO HAY PALABRAS



Tocas un cuerpo, sientes su repetido temblor
bajo tus dedos, el cálido transcurrir de la sangre.
Recorres la estremecida tibieza,
sus corporales sombras, su desvelado resplandor.
No hay palabras. Tocas un cuerpo; un mundo
llena ahora tus manos, empuja su destino.
A través de tu pecho el tiempo pasa,
golpea como un látigo junto a tus labios.
Las horas, un instante se detienen
y arrancas tu pequeña porción de eternidad.
Fueron antes los nombres y las fechas,
la historia clara, lúcida, de dos rostros distantes.
Después, lo que llamas amor, quizá se torne forzada promesa,
levantado muro pretendiendo encerrar,
aquello que únicamente en libertad puede ganarse.
No importa, ahora no importa.
Tocas un cuerpo, en él te hundes,
palpas la vida, real, común. No estás ya solo.


Juan Luis Panero

[Noctambulario]



Tocas um corpo, sentes-lhe o tremor
sob os dedos, o cálido curso do sangue.
Percorres o quente estremecido,
as sombras corporais, o desvelado esplendor.
Não há palavras. Tocas um corpo, um mundo
enche-te as mãos, empurra o seu destino.
Através do teu peito o tempo passa,
fere-te como um látego ao pé dos lábios.
As horas detêm-se por um instante,
para que arranques teu quinhão de eternidade.
Foram dantes os nomes e as datas,
a história lúcida, clara, de dois rostos distantes.
Depois, o que chamas amor talvez se torne forçada promessa,
muro elevado que pretende encerrar
aquilo que só em liberdade se pode ganhar.
Não importa, já não importa.
Tocas um corpo, afundas-te nele,
palpas a vida, real, comum. Já não estás só.

(Trad. A.M.)


> Outra versão: Blog 1.º esquerdo (B.A.Rua)

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19.4.16

Paulo Leminski (Olinda Wischral)





OLINDA WISCHRAL




Pessoas deviam poder evaporar
quando quisessem
não deixar por aí
lembranças pedaços carcaças
gotas de sangue caveiras esqueletos
e esses apertos no coração
que não me deixam dormir.


Paulo Leminski


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18.4.16

Manuel Vilas (O último Elvis)





EL ÚLTIMO ELVIS



Respeta siempre la destrucción de las mujeres
y de los hombres que amaron o intentaron, al menos, amar
la vida y esta les quemó o les rompió los huesos de la cara,
las entrañas y las venas y el hígado y el buen corazón,
respeta todos los sagrados y los más humildes hundimientos
de los seres humanos.

Respeta a quienes se suicidaron.

Respeta a quienes se arrojaron a los océanos.

No hables mal de ellos, te lo ruego, te lo pido de rodillas.

Ama a toda esa gente, esa muchedumbre, ese río amarillo
de la Historia de todos cuantos perdieron tan injustamente,
o tan justamente,
da igual.

Gente que aceleró en una curva.

Gente que escondía botellas en los rincones de su casa.

Gente que lloraba en los parques de las afueras de las ciudades.

Gente que se envenenaba con pastillas, con alcohol,
con insomnios aterradores, con veinte horas de cama todos los días.

Lo intentaron, pero no lo consiguieron.

Gente a quien le sobraba tres cuartas partes de su pequeño frigorífico.

Gente que no tenía con quién hablar semanas enteras.

Gente que no comía por no comer sola.

Son hermosos igualmente, te lo juro.

Resplandecerán un día.

Nombremos todo aquello
que nos convirtió en seres humanos.

Para que no haya miedo, ni envidia, ni maldad.

Amo, celebro, y exalto todos los hundimientos
de todos los seres humanos que pisaron este mundo.

Porque el fracaso no existió jamás,
porque no es justo el fracaso y nadie merece fracasar,
absolutamente nadie.


Manuel Vilas

[La galla ciencia]




Respeita sempre a destruição das mulheres
e dos homens que amaram ou ao menos tentaram amar
a vida e esta queimou-os ou quebrou-lhes os ossos da cara,
as entranhas e as veias, o fígado e o bom coração,
respeita os consagrados e os mais humildes afundamentos dos seres humanos.

Respeita os que se suicidaram.

Respeita os que se atiraram aos oceanos.

Não fales mal deles, peço-te, imploro de joelhos.

Ama-me essas pessoas, essa multidão, esse rio amarelo
da História, de todos quantos perderam tão injustamente,
ou tão justamente,
dá no mesmo.

Pessoas que aceleraram numa curva.

Pessoas que escondiam garrafas nos cantos da casa.

Pessoas que choravam nos parques dos subúrbios das cidades.

Pessoas que se envenenavam com pastilhas, com álcool,
com insónias terríveis, com vinte horas de cama por dia.

Tentaram, mas não conseguiram.

Pessoas a quem sobravam três quartos do frigorífico, dos pequenos.

Pessoas sem ter com quem falar semanas inteiras.

Pessoas que não comiam, para não comerem sozinhas.

São belos na mesma, juro-te.

Um dia hão-de brilhar.

Nomeemos tudo quanto os converteu em seres humanos.

Para que não haja medo, nem inveja, nem maldade.

Amo, celebro e exalto todos os afundamentos
de todos os seres humanos que pisaram este mundo.

Porque o fracasso não existiu jamais,
porque não é justo o fracasso nem ninguém merece fracassar,
absolutamente ninguém.

(Trad. A.M.)




>>  Manuel Vilas (blogue) / SensPublic (10p) / Ágora (10p) / TriploV (5p) / Crisis de papel (crítica-JLGM) / Facebook / Wikipedia

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17.4.16

Alexandre Pinheiro Torres (Paixão-1)





Define-se paixão como algo que nos acontece ou a que somos submetidos.

As paixões tornam-nos passivos quer se trate daquelas que nos trazem alegrias ou despejem sobre nós um amor desatinado, quer se trate das que nos deixam imersos na dor, no desespero ou com complexos de culpa.

Por isso dizemos que sofremos uma paixão quando ela nos domina.

Sofremos mesmo uma alegria ou um desatinado amor.

É ver o vocabulário que utilizamos.

Costumamos dizer que uma paixão nos fulmina ou nos esmaga ou nos paralisa ou somos consumidos no seu fogo. (n.67)



ALEXANDRE PINHEIRO TORRES
Espingardas e Música Clássica
(1987)

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Juan Gelman (O cachorro)





EL PERRO



El poema no pide de comer. Come
los pobres platos que
gente sin vergüenza o pudor
le sirve en medio de la noche.
La palabra divina ya no existe.
¿Qué puede
hacer el poema, sino
contentarse con lo que le dan?
Después aullará por ahí
sin respuesta, será
otro perro perdido
en la ciudad impiadosa.

Juan Gelman




O poema não pede de comer. Come
os pobres pratos que
gente sem vergonha ou pudor
lhe serve a meio da noite.
A palavra divina já não existe.
O que pode
fazer o poema, senão
contentar-se com o que lhe dão?
Depois uivará por aí
sem resposta, será
mais um cachorro perdido
na cidade impiedosa.

(Trad. A.M.)

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16.4.16

Miguel Martins (Há poetas assim)





Há poetas assim,
uns gramas de aletria, fina e doce,
traficados como se fossem cocaína pura.
Alimento energético, é certo,
adequado ao passo de galope
com que esperam chegar a algum lado
e, ao mesmo tempo, agradável ao olfacto
de quem nunca suou, nem sequer a foder.

Massa e açúcar, como disse, muito,
mas também o leitinho da infância,
um toque exótico a canela do Ceilão
e o ingrediente secreto,
que pode ser qualquer coisa
e dizem as más línguas que é apenas
uma irreprimível vontade de parecer interessante.

Sim, há poemas que só se assemelham
ao remate perfeito de uma consoada vulgar,
antes de cada um regressar a casa,
maldizer a família e dar início
à gestação de umas saudades nobres,
que aguardarão um ano pela matança.

Melhor dizendo, parecem-se com tudo
menos com poesia, essa grainha
de uva alojada na cárie de um molar,
que há que suportar só com morte interior,
porque essas coisas acontecem sempre
quando todos os dentistas se mascaram de renas
e vão passar uns dias à puta que os pariu.



Miguel Martins

[Hospedaria Camões]

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15.4.16

Josep M. Rodríguez (Frio)





FRÍO



Llueve
en mitad de la noche,
como si aún fuera posible más oscuridad.

Puedo escuchar el agua que araña los tejados
y convierte las calles
en grandes venas negras.

Lentamente,
me acerco a la ventana y sólo encuentro
oscuridad
y agua:

el fondo de un océano.

Sin embargo,
es todo tan hermoso y tan extraño
?¿recuerdas??
como rozar la piel de un tiburón.

¿Por qué darle un sentido a cada cosa?

La noche y su hemorragia incontenible, por ejemplo.

Sé que el agua es un vínculo
entre tú y yo,

y que el sol de mañana
mostrará con orgullo
la enorme cicatriz del horizonte.

Pero ha de ser mañana,
porque si no hay mañana nada importa.


Josep M. Rodríguez




Chove
a meio da noite,
como se fosse ainda possível mais escuridão.

Posso ouvir a água a arranhar nos telhados
e a fazer das ruas grandes veias negras.

Lentamente,
acerco-me da janela e vejo só
água e escuridão,

o fundo de um oceano.

Todavia,
é tudo tão belo e tão estranho
lembras?
como roçar na pele de um tubarão.

Porquê dar um sentido a cada coisa?

A noite, por exemplo, e sua hemorragia imparável.

A água sei que é um vínculo entre mim e ti,

e que o sol de amanhã
mostrará com orgulho
a enorme cicatriz do horizonte.

Mas há-de ser amanhã,
porque não havendo amanhã nada importa.

(Trad. A.M.)

.

14.4.16

Alexandre Pinheiro Torres (A parábola dos choupos)





Mil espadas ao rubro estralejam de frio ao mergulhar nas águas.

Delicia-se a ouvi-las rechinar.

Como se ardessem.

Mas, ao mesmo tempo, tortura-se.

É que não há nada de mais terrível do que ver os choupos no estertor das últimas convulsões.

E mais eles são bailarinas que já gostam de menear as ancas à mais ténue brisa de Verão.

Mesmo à calmaria.

Quantas vezes, por ocasião das canículas desesperadas do Estio, o ar se imobiliza.

Apalpamo-lo: está parado em estátua?

Abanamo-lo.

Não há forças que movam o seu bronze.

Olhamos então para um choupo ou para um álamo: as folhas põem as mãos diante de nós em rezas de velhos.

Nervosas, atacadas de sezões.

Como doentes de malária nos trópicos onde o ar não se move para que alguém a respire.

Anda-se atrás dele e não o encontramos.

A própria bonança, como se vê, sobressalta os álamos.

A paralisia do ar aterroriza-os.

E tremem.

Vê-los, porém, no Inverno, num dia de chuva sibilante, é o mesmo que assistir aos sinais com que a morte nos telegrafa a sua presença: morse de ramos em sucessivos e longos traços de agonia, não há pontos para breve repouso, até que os fios estalam, os postes desabam, há um enrodilhar caótico de arames, e os auscultadores iniciam o ofício fúnebre do silêncio. (n. 38)



ALEXANDRE PINHEIRO TORRES
Espingardas e Música Clássica
(1987)

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José María Parreño (Uma voz íntima diz)





Una voz íntima dice
que hice mal

y otra más honda
que no tiene importancia



José María Parreño


[Poetas siglo XXI]

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13.4.16

Herberto Helder (As barcas gritam sobre as águas)






As barcas gritam sobre as águas.
Eu respiro nas quilhas.
Atravesso o amor, respirando.
Como se o pensamento se rompesse com as estrelas
brutas. Encosto a cara às barcas doces.
Barcas maciças que gemem
com as pontas da água.
Encosto-me à dureza geral.
Ao sofrimento, à ideia geral das barcas.
Encosto a cara para atravessar o amor.
Faço tudo como quem desejasse cantar,
colocado nas palavras.
Respirando o casco das palavras.
Sua esteira embatente.
Com a cara para o ar nas gotas, nas estrelas.
Colocado no ranger doloroso dos remos,
Dos lemes das palavras.

É o chamado rio tejo
pelo amor dentro.
Vejo as pontes escorrendo.
Ouço os sinos da treva.
As cordas esticadas dos peixes que violinam a água.
É nas barcas que se atravessa o mundo.
As barcas batem, gritam.
Minha vida atravessa a cegueira,
chega a qualquer lado.
Barca alta, noite demente, amor ao meio.
Amor absolutamente ao meio.
Eu respiro nas quilhas. É forte
o cheiro do rio tejo.

Como se as barcas trespassassem campos,
a ruminação das flores cegas.
Se o tejo fosse urtigas.
Vacas dormindo.
Poças loucas.
Como se o tejo fosse o ar.
Como se o tejo fosse o interior da terra.
O interior da existência de um homem.
Tejo quente. Tejo muito frio.
Com a cara encostada à água amarela das flores.
Aos seixos na manhã.
Respirando. Atravessando o amor.
Com a cara no sofrimento.
Com vontade de cantar na ordem da noite.

Se me cai a mão, o pé.
A atenção na água.
Penso: o mundo é húmido. Não sei
o que quer dizer.
Atravessar o amor do tejo é qualquer coisa
como não saber nada.
É ser puro, existir ao cimo.
Atravessar tudo na noite despenhada.
Na despenhada palavra atravessar a estrutura da água,
da carne.
Como para cantar nas barcas.
Morrer, reviver nas barcas.

As pontes não são o rio.
As casas existem nas margens coalhadas.
Agora eu penso na solidão do amor.
Penso que é o ar, as vozes quase inexistentes no ar,
o que acompanha o amor.
Acompanha o amor algum peixe subtil.


HERBERTO HELDER
Poemacto


[Camões]

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12.4.16

José María Cumbreño (Identidade)





IDENTIDAD



Durante años, la ropa que me he puesto la he heredado
de mi hermano mayor.
Mi nombre me lo pusieron por mi abuelo.
El primer coche que conduje era de segunda mano.
La primera mujer que me besó ya había besado a otros.
La casa en la que vivo es de alquiler.
Todo lo que escriba ya lo habrá escrito alguien
mucho antes y mucho mejor.
El hermano de mi hija no es hijo mío.
Su padre hace como si no lo fuera y quien no es su padre
se esfuerza por aprender a serlo.

José María Cumbreño





Anos e anos, a roupa que eu usava era herdada do irmão mais velho.
O meu nome puseram-mo pelo meu avô.
O primeiro carro que tive era em segunda mão.
A primeira mulher que me beijou tinha já beijado outros.
A casa onde vivo é arrendada.
Tudo o que escreva já foi escrito por outrem, muito antes e muito melhor.
O irmão de minha filha não é meu filho.
O seu pai faz que não é e quem não é faz por sê-lo.

(Trad. A.M.)

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11.4.16

Alexandre Pinheiro Torres (O rio)





Vislumbra, lá em baixo, os baixios afogados a jusante, logo a seguir um recôncavo de laranjais, mais adiante os pesqueiros submersos, ou o promontório a montante da sua ilha, onde a água ferve altíssima.

Faz um gesto com o braço enroupado e logo tudo ressuscita.

Destapa córregos e socalcos, valeiros, ribanceiras, resvaladouros.

Uma água em cachão que fura os fraguedos chistosos com coragem de berbequim novo.

O ruído que lhe chega aos ouvidos é o de uma imensa oficina mecânica: fitas de serra a abrir, velocíssimas, troncos a pulsar de viço, uma chuva de serrim, o sangue das árvores e das pedras ainda quente do entusiasmo das veias a chispar no rio, metal ao rubro na água de têmpera do ferreiro.

O que ali está é uma forja.

Não lhe falta mesmo o sopro do fole: o vento desabrido que vem do nascente, no sentido do talvegue. (n. 28)



ALEXANDRE PINHEIRO TORRES
Espingardas e Música Clássica
(1987)
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José Luis García Martín (Em algum lugar)





EN ALGÚN LUGAR



Luego, después, más tarde, cuando nunca,
mis pasos se alejaron de mis pasos
y en algún lugar, no sé si dentro o fuera,
se oyó una voz que un nombre repetía.
Una voz, sólo un eco, apenas nada,
quizá la voz del viento entre los árboles
donde ni tan siquiera árboles había.
Temblaban los cimientos de la tierra
o era yo quien temblaba aquel entonces
en que un sol negro iluminaba el mundo
y era mi vida entera la que ardía,
un montón de papeles arrugados,
en el rincón remoto, entre tus brazos,
amor que fue, que es, que nunca ha sido,
un humo sucio que en la noche asciende.


JOSÉ LUIS GARCÍA MARTÍN
Presente continuo
Gijón (2015)

[La mirada del lobo]




Logo, depois, mais tarde, quando nunca,
meus passos afastaram-se de meus passos
e em algum lugar, não sei se dentro se fora,
ouviu-se uma voz que um nome repetia.
Uma voz, um eco apenas, quase nada,
talvez a voz do vento por entre as árvores
onde árvores nem havia sequer.
Tremiam as entranhas da terra
ou então era eu que tremia,
um sol negro iluminava o mundo
e a minha vida toda é que ardia,
um monte de papéis amarrotados,
num canto afastado, em teus braços,
amor que foi, que é, que nunca foi,
um fumo sujo subindo na noite.


(Trad. A.M.)

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10.4.16

Mario Quintana (Da observação)





DA OBSERVAÇÃO



Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda a frio o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
teu mais amável e sutil recreio.


Mario Quintana

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9.4.16

José Corredor-Matheos (Contemplo o mar)





CONTEMPLO EL MAR



Contemplo el mar, las olas.
Saboreo sus aguas,
feliz en esta tarde
que no ha de tener fin.
¿Por qué, por qué esta angustia
que me inunda de pronto
con sus aguas oscuras,
que me arroja desnudo
a la apagada arena
de la playa?
¿Por qué, por qué, si están
las gaviotas
volando tierra adentro
en la tarde tranquila
y las aguas me cubren
hasta saciar mi sed ?


José Corredor-Matheos




Contemplo o mar, as ondas.
Saboreio-lhe a água,
feliz nesta tarde
sem fim.
Porquê, porquê esta angústia
que de súbito me inunda
com sua escura água,
que me atira nu
à areia sem chama
da praia?
Porquê, porquê, se voam gaivotas
terra adentro
na tarde tranquila
e a água me cobre
até matar-me a sede?


(Trad. A.M.)

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8.4.16

Alexandre Pinheiro Torres (A paisagem)





O homem como a natureza detestam ser aniquilados.

Só que a natureza nos revela os seus segredos apenas uma vez.

Revelado cada um deles nada mais há a acrescentar.

Além disso, a natureza não perdoa erros.

Para o mar ou para o rio, sim é sim e não é não.

A natureza nunca diz uma coisa que possa ser desdita pela sabedoria dos homens. (n. 6)



ALEXANDRE PINHEIRO TORRES
Espingardas e Música Clássica
(1987)

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Jorge M. Molinero (Génio)





GENIO



Lo he leído,
ninguno lo pudo superar. Todos murieron
alcoholizados o drogadictos,
locos
depresivos. La mayoría se suicidó
antes de la treintena,

no pudieron saltar la sombra alargada
de su padre
considerado un genio.

Por eso yo, ahora, en vez de escribir
el poema que me haga inmortal,
me tumbo en el sillón a escuchar a INXS
en calzoncillos. Me corto las uñas de los pies,
engordo con bollería industrial y me quejo de todo.

Es mi manera de apartar un peligro más
a mi pequeña Julieta.


Jorge M. Molinero




Eu li,
ninguém escapou. Morreram todos
do álcool, da droga,
loucos
depressivos. A maioria matou-se
antes dos trinta

não conseguiram saltar a sombra
alongada do pai
considerado um génio.

Por isso eu, agora, em vez de escrever
o poema que me faça imortal,
estendo-me no sofá, em calções,
a ouvir INXS. Corto as unhas dos pés,
engordo com doces de fábrica e reclamo de tudo.

É a minha maneira de afastar mais um perigo
da minha pequenita, Julieta.


(Trad. A.M.)

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7.4.16

Marina Colasanti (Nem tão nuas)





NEM TÃO NUAS



Ah! Cranach, como eu gosto
dessas mulheres nuas que você pinta
com seus pequenos seios
suas barrigas
e ao alto os chapelões cheios de plumas.
E as Salomés, que graça
segurando cabeças de Batista
com a mesma elegante displicência
com que outras, no colo,
afagam cães de raça.
Mas há nessas mulheres
escondido
atrás da boca fina
ou do olhar oblíquo
um luzir de punhal
um gelo ambíguo que
embora estando nuas
lhes põe vestido.


Marina Colasanti

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6.4.16

Jorge Luis Borges (A rosa)





LA ROSA



La rosa,
la inmarcesible rosa que no canto,
la que es peso y fragancia,
la del negro jardín de la alta noche,
la de cualquier jardín y cualquier tarde,
la rosa que resurge de la tenue
ceniza por el arte de la alquimia,
la rosa de los persas y de Ariosto,
la que siempre está sola,
la que siempre es la rosa de las rosas,
la joven flor platónica,
la ardiente y ciega rosa que no canto,
la rosa inalcanzable.


Jorge Luis Borges

[Escribir canciones]




A rosa,
a imarcescível rosa que não canto,
a que é peso e fragrância,
a do negro jardim noite alta,
a de qualquer jardim ou tarde,
a rosa que por arte alquímica
ressurge da cinza mais ténue,
a rosa dos persas e de Ariosto,
a sempre só,
a sempre rosa das rosas,
a jovem flor platónica,
a ardente e cega rosa que não canto,
a rosa inatingível.

(Trad. A.M.)


> Outra versão: Poesia ilimitada (F.P.Amaral)

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5.4.16

Alexandre Pinheiro Torres (Abertura)






Nesta invernia que não pára vamos deter-nos num alvorecer em particular.

O de terça-feira, 19- Dezembro-1961.

Os homens atribuem ou não números diversos a cada madrugada por muito semelhante que se pareça com qualquer das que a precederam?

A verdade é que cada manhã que se ergue, preguiçosa, da sua tarimba e nos saúda com rigores e exigências militares, exibe o rosto baço ou afogueado, conforme as estações, uma etiqueta com algarismos sempre novos.

É bem sabido que o tempo converte mais gente que a razão.

A manhã que rompe não sabe disso nem se importa.

Mas incomodam-se aqueles que sabem que cada toque de alvorada fere um timbre que nunca se repete.

Por que assomamos à janela todas as manhãs?

Por que espreitamos o céu?

Porque ele é, todos os dias, o risco que devemos enfrentar. (n. 1)



ALEXANDRE PINHEIRO TORRES
Espingardas e Música Clássica
(1987)

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4.4.16

Marcos Siscar (Dor)





DOR



não se diz rasgar rasgar um tecido como só as mãos
festa vital do barbarismo rasgar a tela de linho longamente encerada
abrir um sulco uma esteira um traço olhar por dentro dele
(você se demora na janela o vinco do seu decote
o hábito de dilacerar as folhas do caderno)
não se diz reter o vislumbre da carne pela camisa mutilada
pele retraída ao toque cerimônia do intelecto que se avalia
guardar a coisa pelo avesso posse da coisa ida
(o ato sem causa de uma chave colocada no contato)


Marcos Siscar

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2.4.16

Olga Elena Mattei (Se me visses assim)






SI ME VIERAS ASÍ



Si me vieras
en estado de éxtasis,
efervesciendo interiormente,
con esta sensación
quemante y dolorosa
de tener en las venas
líquidos ácidos...
A punto del desmayo,
casi embriagada
(aunque asceta),
demudada, catatónica,
con los ojos estáticos, perdidos,
las pupilas abiertas,
y un rictus en los labios
que delata este trance
desorbitado...
Si me vieras así,
aún no me creerías
que es por amarte...
que eres tú quien me lleva
a este estadio espiritual
en que soy
sólo energía.


Olga Elena Mattei

[Emma Gunst]



Se me visses
em êxtase
efervescendo por dentro
com esta sensação
ardente e dolorosa
de ter nas veias
líquidos ácidos...
A ponto de desmaiar,
quase embriagada
(mas sóbria),
desmudada, catatónica,
os olhos estáticos, perdidos,
as pupilas abertas
e um ricto nos lábios
denunciando este transe
desorbitado...
Se me visses assim,
nem assim crerias
que é por te amar...
e que és tu que me levas
a este cume do espírito
em que eu sou
só energia.

(Trad. A.M.)

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1.4.16

Manuel de Freitas (Não sei o que vos diga)





Não sei o que vos diga.
Vinha do outro lado do mundo
e vestia-se com rosas e arame.

Tinha a poesia no corpo.

Perante isso – graça
ou desencanto –
somos todos meros escriturários.


Manuel de Freitas

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