31.1.16

Susana Cattaneo (Quando já não estiver)





CUANDO YA NO ESTÉ...



¿Quién pondrá el pie
sobre la marca que dejó el mío?
¿Quién mirará esos árboles
donde mis ojos dejaron huellas?
Alguien oirá cantar un pájaro
que será otro.
Alguien respirará los mismos pinos
de un verde más cansado.
La vida será un papel en blanco
y no lo podré sellar con mi palabra.


Susana Cattaneo

[Emma Gunst]




Quem porá o pé
na marca que o meu deixou?
Quem olhará essas árvores
onde meus olhos deixaram rasto?
Alguém ouvirá cantar um pássaro
que será outro.
Alguém respirará os mesmos pinheiros
de um mais cansado verde.
A vida será um papel em branco,
não poderei selá-lo com
a minha palavra.

(Trad. A.M.)

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30.1.16

Ver (155)






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Rita Ramones (Parábola)





PARÁBOLA



Madre Teresa muere y sube al Cielo.
Pero Dios no la deja entrar. Le dice:
“Has hecho todo por ganarte el Cielo, y así tampoco es que se gana”.
Madre Teresa responde: “Como tú ordenes, mi Señor”, y se marcha.
Y Dios, viéndola bajar al Infierno, piensa:
“Eso es lo que me molesta de ella”.


Rita Ramones

[Emma Gunst]




Madre Teresa morre e sobe ao Céu.
Mas Deus não a deixa entrar. Diz-lhe:
“Fizeste tudo para ganhar o Céu, mas também não é assim que se ganha”.
Madre Teresa responde: “Como tu queiras, Senhor”, e parte.
Aí Deus desabafa, a vê-la a descer para o Inferno:
“É isto, chiça, que me chateia nela!”

(Trad. A.M.)


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29.1.16

Fernando Pessoa / A. Caeiro (Quem me mandou a mim)





QUEM ME MANDOU A MIM QUERER PERCEBER



Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...
Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?
Quando o Verão me passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...

Alberto Caeiro


[Fel de cão]

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28.1.16

Silvina Ocampo (Espera)





ESPERA



Cruel es la noche y dura cuando aguardo tu vuelta
al acecho de un paso, del ruido de la puerta
que se abre, de la llave que agitas en la mano
cuando espero que llegues y que tardas tanto.
Crueles son en las calles los rumores de coches
que me dan sueño cuando estoy junto a tus ojos.
Cruel es la lluvia suave, furiosa que fascina
las enormes tormentas, las nubes con sus islas
cuando espero que llegues y que el reloj enclava
sus manecillas de oro en el corazón ávido.
Cruel es que todo sea precioso hasta el retorno
de la espera, y el lento padecer del amor.
Cruel es rezar sin tregua la promesa olvidada
de volver a ser buena, de sentir que redime
estar bien preparada sólo para la dicha.
Cruel es la luz, perfecta, de la luna y del alba
el alma de las horas sobre el campo y el mar
y crueles son los libros, la voluptuosa música,
hasta la anomalía de las caras etruscas.
Y es cruel aún después tener que ser humana
no convertirme, al verte, en perro, de alegría.

Silvina Ocampo




Cruel a noite e dura quando aguardo a tua volta
à espreita de um passo, do barulho da porta
a abrir, da chave que agitas na mão
quando espero que chegues e tardas tanto.
Cruéis na rua os ruídos dos carros
que me dão sono quando estou junto de ti.
Cruel a chuva suave, furiosa que fascina
as grandes tempestades, as nuvens com suas ilhas
quando espero que chegues e o relógio encrava
seus ponteiros de oiro no coração ávido.
Cruel que tudo seja precioso até o retorno
da espera, o lento sofrer do amor.
Cruel é rezar sem trégua a promessa esquecida
de voltar a ser boa, de sentir que redime
estar bem preparada só prá ventura.
Cruel a luz, perfeita, da lua e da aurora,
a alma das horas sobre o campo e o mar
e cruéis os livros, a volúpia da música,
até a anomalia das caras etruscas.
E cruel ainda ter depois que ser humana,
não me converter em cachorra, ao ver-te,
de alegria.

(Trad. A.M.)


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27.1.16

Paulo Castilho (Inveja)





Ninguém tem uma ideia.

Pense bem.

Uma ideia, uma ideia só que fosse.

A imaginação de quem manda esgota-se no exercício de inventar formas engenhosas de tirar a quem ainda tenha um pouco e de vender a estrangeiros o que nos resta.

Direita, esquerda, Keynes, neoliberalismo, tudo tretas, em Portugal só existe uma ideologia.

Chama-se inveja. (p. 66)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

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Silvia Nieva (A poesia inventou-nos)





LA POESÍA NOS HA INVENTADO A NOSOTROS



Donde empieza el dolor no es un órgano.
Lo crean las palabras.
El grito surge en la cabeza.
El corazón lo impulsa,
el temblor lo propaga.
El grito precede al cuerpo.
Será tan solo una imagen, el dolor.
La poesía nos ha inventado.
Ha creado unos ojos que refieren a mirada,
un cuerpo que da sentido a cuerpo,
y al hombre para significar hombre.
Lo real empieza en la palabra.
Un poema traducido al grito, a la angustia, a la tristeza,
su lectura hará la espera,
la soledad
llenándose del tiempo que las nombra.
Los poemas harán el sueño y el insomnio,
llenarán los cuerpos de lo abstracto, la verdad y la mentira.
Mientras, yo,
que existo para dar sentido a las palabras,
que soy solo una imagen de lo arbitrario de su signo,
entiendo hoy que ellas fueron antes
y declaro que la poesía ocurre
e inventa a los poetas.


Silvia Nieva




Onde nasce a dor não há um órgão,
as palavras é que o criam.
O grito surge na cabeça,
o coração dá-lhe o impulso,
a tremura propaga-o.
O grito precede o corpo
e a dor será somente uma imagem.
A poesia inventou-nos,
criou olhos para referir olhar,
um corpo que dá sentido a corpo,
e o homem para significar homem.
O real começa na palavra.
Um poema traduzido em grito, angústia, tristeza,
sua leitura fará a espera,
a solidão
se enchendo do tempo que as nomeia.
Os poemas farão o sono e a insónia,
encherão os corpos de abstracto, verdade, mentira.
Entretanto, eu,
que existo para dar sentido às palavras,
que sou só uma imagem do arbitrário do seu signo,
entendo hoje que elas foram primeiro
e declaro aqui que a poesia acontece
e que inventa os poetas.

(Trad. A.M.)

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26.1.16

Eugénio de Andrade (Nem sempre a luz vem assim)





Nem sempre a luz vem assim:
salta como um rapaz muro após muro,
entra pela janela.

O brilho dos medronhos chega ao fim:
extrema ponta dos dias,
aproximação da água.

Dia feito para a música, dizias;
ou para a dança, acrescentavas:
ritmo puro, sustido.

De muro em muro, sem nenhum peso,
entra pela casa.
Agora é ela que dorme comigo.


Eugénio de Andrade

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25.1.16

Ruben Bonifaz Nuño (Algo se me quebrou)





Algo se me ha quebrado esta mañana
de andar, de cara en cara, preguntando
por el que vive dentro.
Y habla y se queja y se me tuerce
hasta la lengua del zapato,
por tener que aguantar como los hombres
tanta pobreza, tanto oscuro
camino a la vejez; tantos remiendos,
nunca invisibles, en la piel del alma.


Yo no entiendo; yo quiero solamente,
y trabajo en mi oficio.
Yo pienso: hay que vivir; dificultosa
y todo, nuestra vida es nuestra.
Pero cuánta furia melancólica
hay en algunos días. Qué cansancio.


Cómo, entonces,
pensar en platos venturosos,
en cucharas calmadas, en ratones
de lujosísimos departamentos,
si entonces recordamos que los platos
aúllan de nostalgia, boquiabiertos,
y despiertan secas las cucharas,
y desfallecen de hambre los ratones
en humildes cocinas.


Y conste que no hablo
en símbolos; hablo llanamente
de meras cosas del espíritu.


Qué insufribles, a veces, las virtudes
de la buena memoria; yo me acuerdo
hasta dormido, y aunque jure y grite
que no quiero acordarme.
De andar buscando llego.
Nadie, que sepa yo, quedó esperándome.
Hoy no conozco a nadie, y sólo escribo
y pienso en esta vida que no es bella
ni mucho menos, como dicen
los que viven dichosos. Yo no entiendo.

Escribo amargo y fácil,
y en el día resollante y monótono
de no tener cabeza sobre el traje,
ni traje que no apriete,
ni mujer en que caerse muerto.


Rúben Bonifaz Nuño

[La cancion de la sirena]




Algo se me quebrou de manhã
por andar, de cara em cara, perguntando
por quem vive dentro.
E fala e queixa-se e torce-se-me
até a língua do sapato,
de ter que aguentar como os homens
tanta pobreza, tanto caminho
escuro para a velhice; tantos remendos,
nunca invisíveis, no coiro da alma.


Eu não entendo, eu amo apenas
e trabalho no meu ofício.
E penso, temos que viver; difícil
e tudo o mais, é nossa a nossa vida.
Mas quanta fúria melancólica
em certos dias. Quanto cansaço.


Como, então,
pensar em pratos venturosos,
em colheres sossegadas, em ratazanas
de luxuosíssimos apartamentos,
se recordamos que os pratos
uivam de saudade, boquiabertos,
e acordam secas as colheres,
e desfalecem de fome as ratazanas
em humildes cozinhas.


E não falo, que conste,
em símbolos; falo chãmente
de meras coisas do espírito.


Que insofríveis, por vezes, as virtudes
da boa memória; eu recordo-me
até a dormir, embora jure e grite
que não quero recordar.
Chego de andar à procura, mas ninguém,
que eu saiba, ficou à minha espera.
Não conheço ninguém, hoje, e escrevo apenas,
e penso nesta vida que não é bela
nem muito menos, como dizem
os que vivem afortunados. Eu não entendo.


Escrevo amargo e fácil,
em dia ofegante e monótono,
sem ter cabeça em cima do fato,
nem fato que não aperte,
nem mulher em que cair morto.


(Trad. A.M.)

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24.1.16

Paulo Castilho (Velhos)





Devemos evitar explicações, justificações ou dar números; é sinal de fraqueza e confunde as pessoas.

Se precisarmos mesmo de apresentar exemplos, vamos buscar situações extremas, para o público perceber melhor; o caso da mulher-a-dias que tem uma pensão própria de 200 euros e uma pensão de sobrevivência de 150 não interessa; o que chama a atenção das pessoas é o caso do quadro que tem 5.000 euros mais 3.000 do falecido.

Há talvez 100 casos desses, se tanto – disse o salta-pocinhas.

Obrigou-me a rebater: o que é que interessa? ninguém pergunta isso.

E lembrem-se, ninguém quer saber dos velhos, são um estorvo, criam problemas, adoecem, causam despesa, muitas pessoas acham-nos repugnantes, querem é chutá-los para os lares, abandoná-los nos hospitais, se fosse possível até deixá-los na rua como fazem aos cães quando vão de férias.

Não nos compete julgar, mas temos de lidar com a realidade. (p. 123)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

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Rosario Castellanos (Auto-retrato)





AUTORRETRATO



Yo soy una señora: tratamiento
arduo de conseguir, en mi caso, y más útil
para alternar con los demás que un título
extendido a mi nombre en cualquier academia.


Así, pues, luzco mi trofeo y repito:
yo soy una señora. Gorda o flaca
según las posiciones de los astros,
los ciclos glandulares
y otros fenómenos que no comprendo.


Rubia, si elijo una peluca rubia.
O morena, según la alternativa.
(En realidad, mi pelo encanece, encanece).


Soy más o menos fea. Eso depende mucho
de la mano que aplica el maquillaje.


Mi apariencia ha cambiado a lo largo del tiempo
- aunque no tanto como dice Weininger
que cambia la apariencia del genio. Soy mediocre.
Lo cual, por una parte, me exime de enemigos
y, por la otra, me da la devoción
de algún admirador y la amistad
de esos hombres que hablan por teléfono
y envían largas cartas de felicitación.
Que beben lentamente whisky sobre las rocas
y charlan de política y de literatura.


Amigas...hmmm... a veces, raras veces
y en muy pequeñas dosis.
En general, rehuyo los espejos.
Me dirían lo de siempre: que me visto muy mal
y que hago el ridículo
cuando pretendo coquetear con alguien.


Soy madre de Gabriel: ya usted sabe, ese niño
que un día se erigirá en juez inapelable
y que acaso, además, ejerza de verdugo.
Mientras tanto lo amo.


Escribo. Este poema. Y otros. Y otros.
Hablo desde una cátedra.
Colaboro en revistas de mi especialidad
y un día a la semana publico en un periódico.


Vivo enfrente del Bosque. Pero casi
nunca vuelvo los ojos para mirarlo. Y nunca
atravieso la calle que me separa de él
y paseo y respiro y acaricio
la corteza rugosa de los árboles.


Sé que es obligatorio escuchar música
pero la eludo con frecuencia. Sé
que es bueno ver pintura
pero no voy jamás a las exposiciones
ni al estreno teatral ni al cine-club.


Prefiero estar aquí, como ahora, leyendo
y, si apago la luz, pensando un rato
en musarañas y otros menesteres.


Sufro más bien por hábito, por herencia, por no
diferenciarme más de mis congéneres
que por causas concretas.


Sería feliz si yo supiera cómo.
Es decir, si me hubieran enseñado los gestos,
los parlamentos, las decoraciones.


En cambio me enseñaron a llorar. Pero el llanto
es en mí un mecanismo descompuesto
y no lloro en la cámara mortuoria
ni en la ocasión sublime ni frente a la catástrofe.


Lloro cuando se quema el arroz o cuando pierdo
el último recibo del impuesto predial.


Rosario Castellanos






Eu sou uma senhora, tratamento
difícil de conseguir, no meu caso, e mais útil
para alternar com os outros do que um título
passado em meu nome por qualquer academia.


Assim, pois, exibo o meu troféu e repito:
eu sou uma senhora. Gorda ou magra
segundo a posição dos astros,
os ciclos glandulares
e outros fenómenos que não compreendo.


Loira, se escolho uma peruca loira.
Ou morena, conforme a alternativa.
(Na verdade, o cabelo embranquece-me).


Sou mais ou menos feia, depende muito
da mão que aplica a maquilhagem.


A minha aparência mudou ao longo do tempo
embora não tanto como diz Weininger
que muda a aparência do génio. Eu sou medíocre.
O que, por um lado, me livra de inimigos
e, por outro, dá-me a devoção
de algum admirador e a amizade
desses homens que telefonam
e mandam longas cartas de felicitação.
Que bebem lentamente uísque com gelo
e discutem política e literatura.


Amigas... hmmm... às vezes, raras vezes
e em doses muito pequenas.
Em geral, recuso os espelhos.
Dir-me-iam o mesmo de sempre, que visto mal
e que pareço ridícula
ao pretender coquetear com alguém.


Sou mãe de Gabriel, já sabe, esse menino
que um dia se há-de erigir em juiz implacável,
exercendo também, se calhar, de carrasco.
Entretanto amo-o.


Escrevo. Este poema. E outros. E outros.
Falo de cátedra.
Colaboro em revistas da minha especialidade
e uma vez por semana escrevo num jornal.


Vivo em frente do Bosque. Mas quase
nunca viro os olhos para o contemplar. Nem
atravesso nunca a rua que me separa dele,
nem passeio nem respiro nem passo a mão
na pele rugosa das árvores.


Sei que temos de ouvir música
mas iludo-o com frequência. Sei
que é bom ver pintura
mas jamais vou às exposições,
nem vou ao teatro ou ao cineclube.


Prefiro estar aqui, como agora, a ler
e, se apagar a luz, a pensar um pouco
em musaranhos e outros misteres.


Sofro mais por hábito, por herança, por não
me distinguir mais do meu semelhante
do que por causas concretas.


Seria feliz se soubesse como.
Isto é, se me tivessem ensinado os gestos,
os tratos, as maneiras.


Em troca ensinaram-me a chorar. Mas o pranto
em mim é um mecanismo desregulado
e não consigo chorar na câmara mortuária
nem na sublime ocasião nem frente à catástrofe.


Choro é por se queimar o arroz ou por perder
o último recibo do imposto predial.


(Trad. A.M.)

.

23.1.16

Dinis Moura (Eu tenho um grave problema)





eu tenho um grave
problema de audição:
eu só ouço bem aquilo
que me entra pelo coração.


Dinis Moura

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22.1.16

Rosabetty Muñoz (Solidária)





SOLIDARIA



Esta casa habla.
Más bien junta sus esquinas
en un esfuerzo conmovedor.
Cruje su madera,
suenan las bisagras
mientras cruza la pena
de una pieza a otra
arrastrando los pies.

Rosabetty Muñoz




Esta casa fala.
Ou antes, junta as esquinas
num esforço comovente.
Range a madeira,
soam as dobradiças,
enquanto o desgosto atravessa
de uma sala para outra
a arrastar os pés.

(Trad. A.M.)

.

21.1.16

Paulo Castilho (Divórcio)





O menino Vasquinho, convencido que é engraçado, chama-me a falecida, mas, na verdade, eu devia lá estar, porque ainda não me divorciei.

O Vasco é um molengão e nunca trata de nada, sobretudo se envolver papelada.

Entidades oficiais, finanças, juízes, notários, todos lhe causam repugnância.

E eu, pela minha parte, ainda não senti necessidade nem vi que vantagem me daria estar divorciada, de maneira que vou andando assim e logo se vê, se for caso disso, agora é muito fácil, mais fácil, já me disseram, do que um senhorio ver-se livre de um inquilino.

Para despachar o marido basta dizer ‘virou estafermo’, ou ‘fartei-me daquela fronha’, ou ‘imagine o sotor juiz que ele mastiga com a boca aberta’.

Mas se calhar nem é preciso incomodar o sotor juiz.

Qualquer dia é no guichet do Metro: dois Passes Navegante e um divórcio. (p. 76)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

.

Roque Dalton (Como tu)





COMO TU



Eu, tal como tu,
amo o amor, a vida, o doce encanto
das coisas, a paisagem
do céu do mês de Janeiro.
Também meu sangue se agita
e rio com olhos que bem conhecem
o brotar das lágrimas.
Creio que o mundo é belo,
que a poesia é como o pão, de todos.
E que minhas veias não acabam em mim
mas no sangue unânime
daqueles que lutam pela vida,
pelo amor,
pelas coisas,
a paisagem e o pão,
a poesia de todos.


Roque Dalton

(Trad. A.M.)

.

20.1.16

António Reis (Não durmo ainda)





Não durmo ainda

Só na cama
o tempo
ainda é meu

como a palavra

Discretamente
me agito
no colchão

Não penso em Deus
na morte

Imprimo
Aqueço-me
Escuto

conservo a posição

A Elsa dorme

Só na cama
o tempo ainda é dela

como um fruto


António Reis

.

19.1.16

Roger Wolfe (Algo mais épico sem dúvida)





ALGO MÁS ÉPICO SIN DUDA



Las 00.30 y heme aquí
fumando hasta matarme
delante de una pantalla negra
con manchas de verde
embadurnándola.

Ahí fuera, en alguna
parte, en todas,
ensayos de cadáver
se arrastran hacia la mañana
en la estela de otra
noche vacía.

Me pregunto
qué hubiera dicho
Homero.


Roger Wolfe




Meia-noite e meia, aqui estou eu
fumando até me matar
diante de uma pantalha negra
lambuzada
com manchas de verde.

lá fora, em algum
lado, em todos,
cadáveres adiados
arrastando-se para a manhã
na esteira de outra
noite vazia.

Pergunto-me
o que diria
Homero.


(Trad. A.M.)

.

18.1.16

Paulo Castilho (Piza)





A piza foi cinco estrelas, porque os homens, regra n.º 1, basta a gente empurrá-los um bocadinho e depois até acham super e mesmo que não achem não dizem nada porque são uns grandes preguiçosos e contrariar uma mulher dá imenso trabalho.

No restaurante das pizas come-se numas mesas corridas de madeira e dá para falar com os parceiros do lado se estivermos para aí virados.

O único problema foi que às nove estávamos despachados e prontos para repetir a cena do simbolismo.
Movimentos literários não faltam e, por isso, achei que era mais seguro não lhe dar tempo para pensar: olha, podemos ir para minha casa, ah, é verdade, já me esquecia, não tenho casa.

Olha, Sophie, isto escrito não tem grande graça, mas fê-lo rir dito por mim com um jeitinho que sei dar às frases quando estou inspirada. (p. 93)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

,

Rogelio Guedea (Conversas-V)





CONVERSACIONES - V



tenía tiempo que no me asomaba por la ventana,
lo hice después de la charla de sobremesa que tuve con mi mujer,
casi antes de ver entrar en el garage el automóvil del vecino,
cuando ya los niños dormían, tenía tiempo que no hacía la sobremesa
con mi mujer, y que no me levantaba para asomarme por la ventana
y ver, al fondo, más allá de las ramas del sauce, el mar, vi el mar
como si se tratara de una acuarela de Rembrandt, aunque en realidad
no sé si Rembrandt pintó acuarelas alguna vez en su vida,
le dije a mi mujer "ese paisaje se parece a una acuarela de
Rembrandt que vi aquel día en el museo de París",
pero mi mujer no me escuchó o no quiso escucharme, como suele pasar,
y siguió raspando el fondo del plato con la cuchara,
removiendo los restos de comida, abstraída de todos y de todo,
entonces, mientras miraba a través de la ventana la acuarela
de Rembrandt, recordé lo que habíamos charlado en la sobremesa,
habíamos pasado de temas sin importancia
(lo caro del recibo de luz, el mal servicio telefónico, las jugosas naranjas de temporada)
a temas más graves, y fue ahí donde mi mujer,
que no había visto a través de la ventana la acuarela de Rembrandt,
me dijo que hacía tiempo que ya no me quería,
como pensé que bromeaba seguí con el cuento de las papas cocidas
y el pan dulce, pero ella volvió a traer el tema
al centro de la mesa diciendo que hacía ya mucho tiempo
que no me quería, y que si la apuraba no tendría ningún inconveniente
en decirme que en realidad nunca me quiso,
y que si no quería creerle que no le importaba pero que era cierto,
tan cierto como la acuarela de Rembrandt que estaba viendo a través de la ventana,
una acuarela que atisbaba un cielo raso, azulísimo,
sobre un mar de lluvias, y el cielo raso, recuerdo, era como sus ojos,
como los ojos de Rembrandt, cuando miraba como yo
a través de la ventana, su mano que titubeaba al trazar
el contorno de mis derrotas, su mano que fue dibujando en mi nuca,
inconmovible, todo el olvido de mi mujer.


Rogelio Guedea

[Poesia digital]




ao tempo que eu não vinha à janela,
fi-lo depois da conversa com a minha mulher à sobremesa,
mesmo antes de ver o carro do vizinho a entrar na garagem,
com as crianças a dormir já, ao tempo que não comia a sobremesa
com minha mulher, e que não me levantava para chegar à janela
e ver o mar, ao fundo, para lá da copa do salgueiro, vi o mar
como se fosse uma aguarela de Rembrandt, embora na verdade
não saiba se Rembrandt pintou aguarela alguma vez na vida,
e disse a minha mulher ‘esta paisagem é parecida com uma aguarela de
Rembrandt que há tempos vi no museu de Paris’,
mas a minha mulher não ouviu ou não ligou, como é costume,
continuando a raspar coma a colher no fundo do prato,
tirando os restos de comida, abstraída de tudo e todos,
então, enquanto observava pela janela a aguarela
de Rembrandt, lembrei-me da conversa à mesa,
passando de assuntos sem importância
(a conta de electricidade, o telefone, as laranjas da época)
a outros mais graves, e aí a minha mulher,
que não tinha visto pela janela a aguarela de Rembrandt,
disse-me que já não me amava há uns tempos,
como pensei que era brincadeira continuei a contar as batatas cozidas
e o pão doce, mas ela voltou à carga, dizendo que há muito tempo
que não me amava, e se a apertasse não se importava muito
de dizer que na realidade nunca me amou,
e se eu não acreditasse era igual ao litro, porque era verdade,
tão verdade como a aguarela de Rembrandt que estava a ver pela janela,
uma aguarela com um céu limpo, muito azul,
sobre um mar de chuvas, e esse céu, recordo, era como os olhos dela,
como os olhos de Rembrandt, quando olhava como eu
pela janela, a sua mão hesitante ao traçar
o contorno da minha derrota, sua mão a desenhar-me na nuca,
sem ponta de comoção, todo o olvido de minha mulher.


(Trad. A.M.)

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17.1.16

Carlos Drummond de Andrade (Canção final)





CANÇÃO FINAL



Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.


Carlos Drummond de Andrade

[Revista Bula]

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16.1.16

Roberto Juarroz (Cada poema faz esquecer)





Cada poema faz esquecer o anterior,
apaga a história de todos os poemas,
apaga a sua própria história
e até apaga a história do homem
para ganhar um rosto de palavras
que o abismo não apague.

Também cada palavra do poema
faz esquecer a anterior,
desfilia-se por um momento
do tronco multiforme da linguagem
e reencontra-se depois com as outras palavras
para cumprir o rito imprescindível
de inaugurar outra linguagem.

E também cada silêncio do poema
faz esquecer o anterior,
entra na grande amnésia do poema
e vai envolvendo palavra por palavra,
até sair depois e envolver o poema
como uma capa protectora
que o preserva dos outros dizeres.

Nada disto é estranho.
No fundo,
também cada homem faz esquecer o anterior,
faz esquecer todos os homens.


ROBERTO JUARROZ
Poesia Vertical (Antologia)
Trad. Arnaldo Saraiva
Campo das Letras (1998)

.

15.1.16

Paulo Castilho (Emigração)





Na Irlanda a emigração era considerada uma vergonha nacional porque o país deveria ser capaz de assegurar uma vida aceitável a todos os cidadãos.

Em Portugal, pelo contrário, a emigração é glorificada: aproveitar as oportunidades que a Europa e o mundo nos oferecem.

Discurso muito semelhante tinha o Estado Novo: nesse tempo a explicação era o espírito aventureiro e descobridor da raça portuguesa, ansiosa por dar novos mundos ao mundo.

Tapamos a verdade com as palavras que em cada momento soam melhor.

E, acima de tudo, acreditamos sempre no que dá jeito. (pp. 68-9)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

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Laura Casielles (Gramática da relatividade)





GRAMÁTICA DE LA RELATIVIDAD



Quizá ni el tomate es tan puro
ni el tabaco tan mortal como comentan.
Me caen bien los extraños, me siento segura
en los países muy desordenados.
Protegerse está bien, pero a veces confiar
es mejor revulsivo para una vida larga.
Ni es cierto que no importe lo de lejos, ni es cierto
que no haya sitio en el mundo
para la literatura.
Pero la publicidad nunca es poesía.
Confío en mi cuerpo
más que en buena parte de los médicos,
y algunas drogas nos ayudan a dormir.
El amor existe.
Abrazarse a muchos cuerpos no es sinónimo de calma,
no hacerlo tampoco ayuda demasiado.
He tenido jefes que eran mis amigos
y compañeros que no.
El sentido común falla a menudo.
Si te cuidas demasiado, entonces eres presa fácil.
Los juicios no marcan la línea que separa el bien y el mal,
no marcan casi nada.
La verdad no tiene un solo nombre.
Cinco manzanas al día
son demasiadas manzanas.

Y la palabra es
como un juego de niños:
cuando llega a tus manos hay que abrazarla fuerte
y escaparse corriendo del enemigo.
Y, luego, lanzarla a quien sepa
guardarla mejor.
A quien corra más.


Laura Casielles




Se calhar nem o tomate é tão puro
nem o tabaco tão mortal como dizem.
Eu calho-me bem com estranhos e sinto-me
em segurança nos países de muita desordem.
Proteger-se é bom, mas às vezes confiar
é o melhor remédio para uma vida longa.
Não é verdade que o longínquo não conte,
nem é verdade que não haja no mundo
lugar para a literatura.
Mas a publicidade não é poesia.
Eu confio no meu corpo
mais que em boa parte dos médicos,
e certas drogas ajudam ao sono.
O amor existe.
Abraçar muitos corpos não é sinónimo de calma,
mas não o fazer também não ajuda muito.
Já tive chefes que eram meus amigos
e companheiros que não.
O senso comum falha muitas vezes.
Se te acautelas muito tornas-te uma presa fácil.
O juízo não traça a linha que separa o bem do mal,
aliás não traça quase nada,
nem a verdade tem um nome só.
Cinco maçãs por dia
são maçãs a mais.

E a palavra é como
uma brincadeira de crianças,
quando te chega às mãos tens de abraçá-la com força
e fugir a correr do inimigo.
Depois, atirá-la para quem souber
guardá-la melhor.
Quem correr mais.


(Trad. A.M.)

.

14.1.16

Charles Bukowski (Sapatos)





SHOES



when you're young
a pair of
female
high-heeled shoes
just sitting
alone
in the closet
can fire your
bones;
when you're old
it's just
a pair of shoes
without
anybody
in them
and
just as
well.

Charles Bukowski




quando se é novo
um par de
sapatos altos
de mulher
depostos
no armário
pode pegar-nos fogo
aos ossos;
quando se é velho
é só
um par de sapatos
sem
ninguém
e
ainda
bem.


(Trad. A.M.)

.

13.1.16

Roberto Bolaño (Auto-retrato aos vinte anos)





AUTORETRATO A LOS VEINTE ANOS



Me dejé ir, lo tomé en marcha y no supe nunca
hacia dónde hubiera podido llevarme.
Iba lleno de miedo, se me aflojó el estómago
y me zumbaba la cabeza:
yo creo que era el aire frío de los muertos.
No sé. Me dejé ir, pensé que era una pena
acabar tan pronto, pero por otra parte
escuché aquella llamada misteriosa y convincente.
O la escuchas o no la escuchas, y yo la escuché
y casi me eché a llorar: un sonido terrible,
nacido en el aire y en el mar.
Un escudo y una espada.
Entonces, pese al miedo, me dejé ir,
puse mi mejilla junto a la mejilla de la muerte.
Y me fue imposible cerrar los ojos y no ver
aquel espectáculo extraño, lento y extraño,
aunque empotrado en una realidad velocísima:
miles de muchachos como yo, lampiños
o barbudos, pero latinoamericanos todos,
juntando sus mejillas con la muerte.


Roberto Bolaño

[Quien siembra vientos]




Deixei-me ir, subi em andamento e nunca soube
onde me podia ter levado.
Ia cheio de medo, apertou-se-me o estômago
e a cabeça zumbia-me:
eu creio que era o vento frio dos mortos.
Não sei. Deixei-me ir, pensando que era uma pena
acabar tão cedo, mas por outro lado
senti aquele apelo misterioso.
Ou se ouve ou não se ouve, e eu ouvi
e quase me pus a chorar: um som terrível
nascido no vento e no mar.
Um escudo e uma espada.
Então, deixei-me ir, apesar do medo,
encostando a cara à cara da morte.
E foi-me impossível fechar os olhos, não ver
aquele estranho espectáculo, lento e estranho,
embora montado numa realidade velocíssima:
milhares de jovens como eu, imberbes
ou barbudos, mas todos latino-americanos,
de caras encostadas à cara da morte.

(Trad.A.M.)

.

12.1.16

Coitado do Jorge (97)





REENCONTRO



- ‘Sorry for the inconvenience of a little long interruption’...

Foi o que eu disse a S. quando a fui buscar ao aeroporto.
Depois de 40 anos (vá, 39).
Ela não ouviu...

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Francisco Urondo (A pura verdade)





LA PURA VERDAD



Si ustedes lo permiten,
prefiero seguir viviendo.

Después de todo y de pensarlo bien, no tengo
motivos para quejarme o protestar:

siempre he vivido en la gloria: nada
importante me ha faltado.

Es cierto que nunca quise imposibles; enamorado
de las cosas de este mundo con inconsciencia
y dolor y miedo y apremio.

Muy de cerca he conocido la imperdonable alegría; tuve
sueños espantosos y buenos amores, ligeros y culpables.

Me avergüenza verme cubierto de pretensiones;
una gallina torpe,
melancólica, débil, poco interesante,

un abanico de plumas que el viento desprecia,
caminito que el tiempo ha borrado.

Los impulsos mordieron mi juventud y ahora,
sin darme cuenta, voy iniciando
una madurez equilibrada, capaz de enloquecer
a cualquiera o aburrir de golpe.

Mis errores han sido olvidados definitivamente;
mi memoria ha muerto y se queja
con otros dioses varados en el sueño y los malos sentimientos.

El perecedero, el sucio, el futuro, supo acobardarme,
pero lo he derrotado para siempre; sé que futuro
y memoria se vengarán algún día.

Pasaré desapercibido, con falsa humildad,
como la Cenicienta, aunque algunos
me recuerden con cariño o descubran mi zapatito
y también vayan muriendo.

No descarto la posibilidad
de la fama y del dinero; las bajas pasiones y la inclemencia.

La crueldad no me asusta y siempre viví deslumbrado
por el puro alcohol, el libro bien escrito, la carne perfecta.

Suelo confiar en mis fuerzas y en mi salud
y en mi destino y en la buena suerte:

sé que llegaré a ver la revolución, el salto temido
y acariciado, golpeando a la puerta de nuestra desidia.

Estoy seguro de llegar a vivir en el corazón de una palabra;
compartir este calor, esta fatalidad que quieta no sirve y se corrompe.

Puedo hablar y escuchar la luz
y el color de la piel amada y enemiga y cercana.

Tocar el sueño y la impureza,
nacer con cada temblor gastado en la huida:

Tropiezos heridos de muerte;
esperanza y dolor y cansancio y ganas.

Estar hablando, sostener
esta victoria, este puño; saludar, despedirme.

Sin jactancias puedo decir
que la vida es lo mejor que conozco.

Francisco Urondo




Se não se importam,
prefiro continuar a viver.

Tudo visto e pensando bem, não tenho
razões de queixa ou reclamação:

sempre vivi no máximo, sem
me faltar nada de importante.

É certo que nunca quis cá impossíveis, apaixonado
pelas coisas deste mundo com inconsciência,
medo, dor, urgência.

Conheci de perto a imperdoável alegria, tive
sonhos espantosos e belos amores, leves e culpados.

Envergonha-me ver-me coberto de pretensões,
qual galinha desajeitada,
débil, melancólica, sem interesse,

ou um leque de penas desprezado pelo vento,
um carreiro que o tempo apagou.

Os impulsos morderam-me a mocidade e agora,
sem dar conta, entro num equilíbrio maduro,
capaz de enlouquecer um qualquer
ou de matá-lo de tédio.

Meus erros estão esquecidos para sempre,
a memória finou-se e queixa-se
dos maus sentimentos e de outros deuses cravados no sonho.

O perecível, o sujo, o futuro, acobardaram-me,
mas derrotei-os de vez; sei que futuro
e memória um dia se vingarão.

Passarei despercebido, falsamente humilde,
como a Cinzenta, embora alguns
me lembrem com carinho ou me vejam o sapato
e também eles vão morrendo.

Não afasto a possibilidade
da riqueza e da fama, da inclemência, das baixas paixões.

Não me assusta a crueldade, vivi sempre deslumbrado
pelo puro álcool, o livro bem escrito, a carne perfeita.

Confio nas minhas forças, na saúde,
no destino, na boa sorte:

hei-de chegar a ver a revolução, o salto temido
mas afagado, bater à porta da nossa desídia.

Um dia, estou certo, chegarei a viver no coração
de uma palavra, partilhar este calor, esta fatalidade
que quieta não serve e se corrompe.

Sou capaz de falar e de escutar a luz
e a cor da pele amada, inimiga e próxima.

Tocar o sonho e a impureza,
nascer de cada tremura posta na fuga,

Tropeços feridos de morte,
esperança e dor, fadiga e vontade.

Falar sempre, defender
esta vitória, este punho; saudar, despedir-me.

Sem jactância posso dizer
que a vida é o melhor que conheço.

(Trad. A.M.)

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11.1.16

Cassiano Ricardo (A rua)





A RUA



Bem sei que, muitas vezes,
O único remédio
É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
A dívida, o divertimento,
O pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
De continuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
Numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
Esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.

A esperança
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera.
Nunca é figura de mulher
Do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.


Cassiano Ricardo

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10.1.16

Silvia Ugidos (A mesma pedra)





LA MISMA PIEDRA



Por mucho que analice yo este tema
siempre acabo llegando a la misma conclusión:
con esto del amor siempre se pierde
la libertad, la honra, la vida o la cabeza.
Pienso en Juana la Loca
pienso en la pobre Ofelia,
Yo desde luego soy de las que tropieza
una y otra vez con la misma piedra.


Silvia Ugidos

[Emma Gunst]





Por mais que pense no assunto
acabo sempre por chegar à mesma conclusão:
nisto do amor perde-se sempre,
a liberdade, a honra, a vida ou a cabeça.
Lembro-me de Joana a Louca,
ou da pobre Ofélia.
E logo eu que sou das que tropeçam
uma e outra vez
sempre na mesma pedra.


(Trad. A.M.)

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9.1.16

Paulo Castilho (Compromisso)





Fazemos um compromisso – dei por mim a dizer – aceito a tua proposta, mas com uma pequena reserva.

Compromisso? – repetiu o Vasco, tom desconfiado.

Continuei: não te relato tudo, de qualquer maneira, não era prático, em vez disso decido eu, caso a caso, conto-te o que me parecer relevante.

O Vasco odiou a minha proposta.

Mas aceitou-a, embora com um comentário chato: muito bem, mas registo que a tua confiança em mim é limitada e por isso a minha confiança em ti fica também mais baixa.

O que é que me dizes a isto, Sophie?

Concordas de certeza que foi uma conversa muito desagradável e que eu, para preservar a minha dignidade, devia era ter-me levantado da mesa e mandado o gajo à merda, mas como a dignidade é uma rubrica que o meu orçamento não comporta, tenho de me refugiar numa solução à portuguesa: depois de lhe ter dito que sim, não lhe reporto coisa nenhuma e quando ele insistir digo-lhe frases vagas e contraditórias, tipo: tenho estado pouco com ela; divertimo-nos tanto as duas que nem me dá para reparar.

Isto se o Vasco alguma vez me perguntar, porque o mais provável é esquecer-se e passar para outro esquema, que a persistência também não é o nosso forte. (p. 59)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

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Rita Ramones (Bendições)





BENDICIONES




Bendito sea el hombre que ayer prefirió esquivar un charco
antes que salpicarme de barro con su toyotona de cuarenta puertas.

Bendito el tipo asqueroso que se me quedó mirando,
dudando, dudando, hasta que por fin no me dijo nada.
Bendito seas, mi cochinón.

Bendito el chofer de bus que tiene catorce años
de ir catorce veces al día de mi barrio al centro
y que me dijo que si no me gustaba, que pagara taxi.
Bendito sea, porque lloré por él,
que es siempre mejor que llorar de rabia impotente.
O caer preso.

Oremos, hermanos. Y primos y demás familiares.


Rita Ramones

[Emma Gunst]




Bendito seja o homem que ontem preferiu desviar-se de um charco
e não me salpicar de lama com o seu carrão de quarenta portas.

Bendito aquele tipo asqueroso que ficou parado a olhar para mim,
hesitando, hesitando, até que no fim não me disse nada.
Bendito sejas, meu porcalhão.

Bendito seja o chofer do autocarro que leva catorze anos
de ir catorze vezes por dia do meu bairro até ao centro
e que me disse para mim, se não gostasse, que fosse de táxi.
Bendito seja porque chorei por ele
o que é sempre melhor do que chorar de impotência e raiva.
Ou ir preso.

Oremos, irmãos. E primos e restantes familiares.


(Trad. A.M.)

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8.1.16

João Habitualmente (O Noé tinha um ginásio)





O NOÉ TINHA UM GINÁSIO



Olha um leão!
E uma barata a fazer a esparregata!
Aquela ali é a Alexandra?
Vejo um besouro a nadar
e um canário no espaldar

e até a salamandra nos exercícios de argolas

o Almeida nos halteres
com um belo fato adidas
uma mosca no decatlo
o quê? Vou jogar pelas mulheres?
Coitadinhas! Estão perdidas!
O besouro vem à tona
tenta nadar mariposa
o tatu na maratona
e a raposa, e a raposa?
Um pugilista suado
leva socos vai ao estrado
o remador afundou-se
aquela ali é a Alexandra?
O Almeida está cansado
quer desistir da carreira
esta perna é da barata?
partiu-a na esparregata.

A avestruz que é fundista
corre corre faz batota
a águia e a galinha
na luta greco-romana
a Quicas e a Lili
a foder na minha cama
onde se meteu a Alexandra?
Andará essa malandra nos exercícios das argolas?

Olha um leão!


João Habitualmente



>>  Ao encontro da poesia (25p) / Edita-me (nota) / Insónia (HMBF- leitura de ‘Os Animais Antigos’)

.

7.1.16

Raúl Gustavo Aguirre (O que não aprende nunca)





El que no aprende nunca toca el fuego,
el que no aprende nunca da una mano,
el que no aprende nunca vuelve a andar.

El que no aprende nunca se golpea
contra una pared y con la otra
y después con la otra y con la otra
y sigue caminando.


Raúl Gustavo Aguirre




O que não aprende nunca toca o fogo,
o que não aprende nunca dá uma mão,
o que não aprende nunca mais volta a andar.

O que não aprende nunca se fere
contra a parede e com a outra
e depois com a outra e mais a outra
e continua o seu caminho.

(Trad. A.M.)

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6.1.16

Paulo Castilho (Marta)





Ao fim de uma semana, quando as plantas vinham já praticamente comer-me à mão, o Vasco foi ter comigo à estufa e anunciou que tinha uma proposta para me fazer.

Levantei a cabeça.

Proposta, palavra sempre boa de ouvir.

Por causa da herança do tio-avô Leonardo - história complicada, não vale a pena entrar em detalhes - tinha sido encarregado de pôr a funcionar uma livraria antiquária no Calhariz e precisava de uma assistente.

Repeti: livraria?

Pousei a forquilha de dentes curtos e repeti: livraria?

Levantei os braços para mostrar as minhas mãos sujas de terra: livraria-me desta merda.

Muito engraçada, muito engraçada - disse o Vasco sem um sorriso.

Depois parou um instante, pôs as mãos nos bolsos e fez um esgar que imitava um sorriso: o lugar é teu, se dormires comigo.

Sabes melhor que ninguém, Sophie, que sou uma rapariga de reacções rápidas, de forma que não ficarás admirada se te disser que respondi logo: muito bem - e comecei a desabotoar a camisa e a avançar para ele.

Havias de ver a cara do idiota, estava como se lhe tivesse aparecido pela frente um bando de presidiárias sem gomem há cinco anos.

Ao segundo botão, estendeu os braços, palmas das mãos abertas a mandar parar, recuou dois ou três passos e acabou por se estatelar num monte de terra com fertilizante um pouco mais atrás: não se pode brincar contigo? (pp. 51-2)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

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Raúl Gómez Jattín (Do que sou)





Intentas sonreír
Y un soplo amargo asoma
Quieres decir amor y dices lejos
Ternura y aparecen dientes
Cansancio y saltan los tendones
Alguien dentro del pecho erige
Soledades
Clavos
Engaños
Fosos.
Alguien
Hermano de tu muerte
Te arrebata, te apresa, te desquicia,
Y tú, indefenso,
Estas cartas le escribes.


Raúl Gómez Jattin




Tentas sorrir
e aparece um sopro amargo
queres dizer amor e dizes longe
ternura e surgem dentes
cansaço e saltam os tendões
alguém no teu peito erige
solidões
cravos
enganos
fossos.
Alguém
irmão da tua morte
agarra-te, prende-te,
tira-te do sério,
e tu, indefeso,
escreves-lhe estas cartas.

(Trad. A.M.)

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5.1.16

Rui Knopfli (Ars poetica 1963)





ARS POETICA 63



Como fazer versos?
                            Sentar
numa cadeira à secretária,
papel à frente, caneta em punho.
Esperar. Esperar em vão. Esperar.
Esperar mais ainda. Esperar sempre.
Se é fumador, fumar então
antes, depois ou no decurso.
Se não, continuar a esperar.
Se ao fim de um certo tempo
o dito tempo exceder o tempo
que se achou ser justo esperar,
desistir. Para voltar em novas
arremetidas desesperadas e inúteis,
em dias alternados o consecutivos.
Em dada altura, vai-se de avião,
e ela chega como no expresso
do Poeta de S. Martinho de Anta,
mais pobre, menos ritmada talvez
(não admira, vai-se de avião!),
mas vem, contudo, e é o que importa.
Pode começar por uma palavra bonita,
coisa rara e difícil. E arriscada:
nunca se sabe o que virá depois
que pode ser bem pior e fracassar.
Há quem comece com irmãos,
o que tem vantagens inúmeras,
desde as garantias de escolas às conveniências
e conivências do correligionarismo fiel
que assegura um público bastante certo,
embora pouco amante da poesia
e, de ordinário, pouco esperto.
Desvantagens:
traz grandes dores de cabeça e pesadas
responsabilidades para com a humanidade
inteira e o Homem com H maiúsculo,
tarefa sempre ingente para quem começa.
O melhor ainda, o mais velhinho
e garantido é começar pela palavra
eu. Será umbilicalista, egoísta,
eu sei cá, mas é pequenina e humilde
e não diz mais do que diz, não tem
mais responsabilidades do que as que convém
seu minúsculo e modesto universo. Será
pouco, mas é um mundo. Para quê
querer incendiar os astros se, dentro de nós,
ainda não acendemos todas as luzes.


Rui Knopfli

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4.1.16

Raúl Ferruz (Com os olhos muito abertos)





CON LOS OJOS MUY ABIERTOS



Cuando mi abuelo sonreía después de cada sorbo de agua,
eso significaba. No sabes lo que es beber tu propia meada.
Cuando dibujaba una parábola en el aire que sólo él veía,
eso significaba. Fuego cruzado.
Cuando se tapaba la cara para que no pudiésemos verle llorar,
eso significaba. Los alemanes nos hicieron cosas horribles.
Cuando cerraba la puerta del baño para que no pudiésemos verle mear,
eso también significaba. Los alemanes nos hicieron cosas horribles.
Un día, me tendió los brazos, y eso significó. Me estoy muriendo.
Después de eso, se desplomó sobre el suelo. Y
murió con los ojos muy abiertos.
Mirando el cielo enemigo.
Dos guerras después.

Raúl Ferruz




Quando o meu avô sorria depois de cada gole de água,
isso significava. Não sabes o que é beber o teu próprio mijo.
Quando desenhava no ar uma parábola que só ele via,
isso significava. Fogo cruzado.
Quando tapava a cara para nós não podermos vê-lo a chorar,
isso significava. Os alemães fizeram-nos coisas terríveis.
Quando fechava a porta do banho para nós não podermos vê-lo a mijar,
isso também significava. Os alemães fizeram-nos coisas terríveis.
Um dia, estendeu-me os braços, e isso significou. Estou a morrer.
A seguir, despenhou-se no chão. E
morreu de olhos muito abertos.
Olhando o céu inimigo.
Duas guerras depois.

(Trad. A.M.)

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3.1.16

Coitado do Jorge (96)





HAIKU INESPERADO
(e com rima, que é ainda mais difícil):




Novo
ano?
O catano...

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Raquel Lanseros (Tradição oral)





TRADICIÓN ORAL



Me gusta amarte hincada de rodillas.
Aquí, tan desde abajo, tan cerca de la tierra
relamo el palpitar de tu cuidado
y centro mi delicia en el transcurso.
No es de extrañar que el mundo sea redondo.
¿Qué forma iba a adoptar, sino la de mi boca?

Raquel Lanseros




De joelhos é que eu gosto de te amar.
Aqui, tão em baixo, tão perto da terra
relambo o pulsar de teu cuidado
e foco a minha delícia no entretanto.
Não é de estranhar que o mundo seja redondo?
Que forma havia de tomar, senão a da minha boca?

(Trad. A.M.)

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2.1.16

Fernando Assis Pacheco (Pranto por Manuel Doallo)





PRANTO POR MANUEL DOALLO



Podia-se ter esborrachado qualquer 23 de Agosto
véspera do San Bartolomé e ele na moto
correndo de Vitoria para as mozas de Ourense
e para as tazas em que era ainda mais exímio

e deixa-se morrer unha serán poñamos
por caso desolada agora pai de filhos
a última queixa: que lhe doía um braço
em troques há tanto sacana que parece de ferro

vaite ó carallo ó morte que me levas
o meu primo galego Manuel Doallo
morte merdeira
coisa ruim de cinza e névoa e cinza

nem nunca nestas terras se me eu lembro
houve um outro rapaz de tanto garbo
como il que era cáseque um rei e querem
que eu o chore e ao coração coitelo?

barqueira que mo levas puta infame
eu berro e berro à soedá do rio


Fernando Assis Pacheco

[Cómo cantaba mayo]

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1.1.16

Rafael Cadenas (As if)





AS IF




Es como si amáramos.
Es como si sintiésemos.
Es como si viviéramos.
Esto fatiga. Hasta se ansía un error.
Puede que al equivocarse
los actores rocen la verdad.


Rafael Cadenas




É como se amássemos,
como se sentíssemos,
como se vivêssemos.
Isto cansa, até suspiramos por um erro.
Talvez os actores, ao enganar-se,
rocem pela verdade.

(Trad. A.M.)

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