29.2.16

Paulo Castilho (Sozinho)





Estes três meses e meio com a Marta desabituaram-me de viver sozinho.

E hoje, no segundo dia da rejeição, ando dum lado para o outro na casa sem saber porquê ou para quê.

Talvez para sacudir o estigma da rejeição e o sentimento de fracasso pessoal, ando à procura de qualquer coisa para fazer, mas nada me apetece.

Uma sensação de vazio toma conta de mim.

As minhas ocupações habituais não me dão satisfação nem me prendem.

Ponho música a tocar, mas ao fim de um bocado percebo que só de forma intermitente estou a ouvir e mesmo assim com um esforço grande de atenção.

A música não me move, é-me indiferente e, tal como os objectos à minha volta, parece-me absurda e pergunto-me: o que é que isto tem a ver comigo?

Não é a primeira vez que sou abandonado e fico sozinho.

O sentimento de humilhação é o mesmo, mas tudo o resto desta vez me parece mais profundo e doloroso.

É porque estou mais velho? (p. 385)



PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

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Ana Pérez Cañamares (Andar sobre as águas)






ANDAR SOBRE LAS AGUAS



Lo que yo era se ahogó en el mar
de las infinitas posibilidades.

No las extraño. La vida empezó
cuando aposté y perdí.

En ese momento el agua se tensa
y se convierte en camino.


Ana Pérez Cañamares

[Literatura y poesia]




O que eu era afogou-se no mar
das infinitas possibilidades.

Não me importa. A vida começou
quando eu apostei e perdi.

Aí, a água retesa-se
e converte-se em caminho.

(Trad. A.M.)

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28.2.16

Jorge Sousa Braga (Nos semáforos da rua de Santa Catarina)






NOS SEMÁFOROS DA RUA DE SANTA CATARINA




Ao menos os teus olhos
permanecem verdes
todo o ano



Jorge Sousa Braga



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27.2.16

Miguel Barnet (Canção I)





CANCIÓN I



Te quedaste con todo,
el libro y la memoria,
los paseos y la flor

Pero yo tengo tus ojos
y de vez en cuando me miro en ellos
— tan tristes y huidizos–
para que tú me lo devuelvas todo,
el libro y la memoria,
los paseos y la flor.

Miguel Barnet




Ficaste com tudo,
o livro e a memória,
os passeios e a flor

Mas eu tenho os teus olhos
e de vez em quando miro-me neles
– tão tristes e fugidios –
para tu me devolveres tudo,
o livro e a memória,
os passeios e a flor.

(Trad. A.M.)



>>  Artepoetica (anto-14pp) / Festival de poesia de Medellin (3p) / Wikipedia

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26.2.16

Paulo Castilho (Homens)





Sabes como é Sophie, uma coisa que os homens nos fazem muito, quando estamos em baixo e a precisar de afecto e apoio, em vez de nos ajudarem e mostrarem que estão do nosso lado aconteça o que acontecer, começam a ficar irritados e implicativos porque o nosso estado de alma lhes perturba o sossego e, portanto, exigem saber o que se passa, querem resolver o problema, todos os problemas têm uma solução, é como se fossemos um automóvel, basta descobrir a avaria e reparar. (p. 357)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

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Fernando Beltrán (Poetas)





POETAS



Hormigas.

Sólo hormigas
con enormes ojeras.

Seres insignificantes
a quienes salva sólo
su vocación de sombra.

El poema que escribo
y más aún
el verso que no alcanzo jamás.

Hormigas sin descanso.

La barca triste y rota del otoño.

Las mujeres que amé, las que me amaron.

El jersey que aun me pongo
del revés tantas veces.

Hormigas sin remedio.

Hormigas con memoria.

Los vagones de ayer
y la máquina absurda del mañana.

Hormigas avanzando hacia ningún lugar.

Y eras tú.
Criatura enamorada.

Hormigas transportando
todo el peso del mundo
a tus espaldas.


Fernando Beltrán




Formigas.

Só formigas
de olheiras enormes.

Seres insignificantes
que só se salvam
pela vocação de sombra.

O poema que lavro
e mais ainda
o verso que jamais alcanço.

Formigas sem descanso.

O barco triste e desfeito do Outono.

As mulheres que amei,
aquelas que me amaram.

O casibeque que visto
do avesso tantas vezes.

Formigas sem remédio.

Formigas com memória.

Os vagões de ontem
e a máquina absurda de amanhã.

Formigas avançando para lado nenhum.

E depois tu,
criatura enamorada.

Formigas transportando
o peso todo do mundo
nas tuas costas.


(Trad. A.M.)



>>  El nombre de las cosas (sítio) / Culturamas (8p) / La Vanguardia (entrevista) / Wikipedia

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25.2.16

João José Cochofel (Uma rosa no tempo)






(XXIX)


Uma rosa no tempo
começa a tingir
de tanto a desejar.
Uma rosa vermelha
no tempo cinzento
que é cansaço de esperar.

Saudade do que há-de vir,
fogo-fátuo ainda
que por dentro estremece.
Uma rosa vermelha,
tão só ela apenas,
alumia e aquece.


João José Cochofel

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24.2.16

Eduardo Bechara (Luz)





LUZ


(I)

La luz puesta en los ojos
es un espejismo que enceguece.

La luz puesta en los ojos
es oscuridad blanca…


(II)

La luz llega a la vida para irse…
La luz destruye ilusiones…


(V)

Todos quisimos tocar la luz,
y nos hemos convertido en sombras…


(XI)

La luz es un grito
en el silencio de la oscuridad.


Eduardo Bechara

[Marcelo Leites]




(I)

A luz contra os olhos
é uma miragem que cega.

A luz contra os olhos
é escuridão branca...

(II)

A luz vem à vida para se ir...
A luz destrói ilusões...

(V)

Todos quisemos tocar a luz,
e convertemo-nos em sombras...

(XI)

A luz é um grito
no silêncio da escuridão.

(Trad. A.M.)



>>  Eduardo Bechara (sítio: bio, biblio, blogue)

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23.2.16

Ver (158)








[Lucien Clergue]

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Amalia Bautista (Contra remedia amoris)





CONTRA REMEDIA AMORIS



Yo no soy de ese tipo de mujeres
incapaces de amor y de ternura.
Yo sé lo que es valor y lo que es sangre,
aunque odie el sacrificio y me repugne
la vanidad que nace en la violencia.
Quiero ser la mujer de un mercenario,
de un poeta o de un mártir, es lo mismo.
Yo sé mirar los ojos de los hombres.
Conozco a quien merece mi ternura.


Amalia Bautista

[Emma Gunst]




Eu não sou dessas mulheres
incapazes de amor e ternura.
Eu sei o que é coragem e sangue,
embora odeie o sacrifício e me repugne
a vaidade que nasce da violência.
Quero ser mulher de um mercenário,
de um poeta ou de um mártir, é igual.
Eu sei fitar os olhos dos homens,
sei quem merece a minha ternura.

(Trad. A.M.)

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22.2.16

João Habitualmente (Antes assim)





ANTES ASSIM



Só preciso da luz
e das manhãs claras
que se fodam as sónias
que se fodam as saras

Só preciso do vento
assobia e dobra as canas
que se fodam as luzias
que se fodam as anãs

Pois se é às manhãs
que entrego as manias
mas se é às canas
que conto as desditas
sape gato anãs
ide embora ó ritas

E nem mesmo os pedros
se venham pôr nisto
não me venham cá padres
não me venha o ministro

Só preciso dum cuco
na serra da estrela
chegam-me os sobreiros
bastam-me as bolotas
que se fodam os carros
que se fodam as motas

Pois se às cotovias
entrego as desditas
e se aos riachos
confio as manias
pra que quero pedros?
sape gato primas
ide embora ó tias


João Habitualmente

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21.2.16

Alfredo Buxán (Estar aqui)





ESTAR AQUI



Aqui sentado, de madrugada, quando a multidão
dorme ainda alheia ao ruído, felizmente esquecida
de qualquer ameaça, eu escrevo em paz
sem outro anelo que sentir o pulso da vida.
A luz entra a espreguiçar-se, humilde, menina quase,
pela janela e é milagre bastante recebê-la
com gratidão, apreciar-lhe a tímida beleza,
ter consciência de que existe por si mesma,
abrir-lhe a alma e integrá-la no sonho
como um acorde necessário a completar
lá dentro a melodia do coração,
que bate indefinida e frágil como a asa
de um insecto atraído ao engano
de uma gota de mel na varanda.
Talvez outro consolo não traga o dia
senão a pura existência dessa luz
que nada nos exige, distraídos
da vida, descarrilados de nós mesmos,
nada senão o gesto hospitaleiro de aceitar-lhe
a visita de bom grado e oferecer-lhe, com o café,
um olhar limpo, o vaso do açúcar,
o silêncio tranquilo da casa
ou o bulício inocente, imperceptível quase,
da alma a amanhecer com este dia.


ALFREDO BUXÁN
La transparencia
Cadernos de Néboa-3
(2012)

(Trad. A.M.)

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20.2.16

Paulo Castilho (Pai e filha)





O que é?

Estou sem dinheiro, podias emprestar-me qualquer coisa? duas semanas sem trabalho, estou liso.

Disse-lhe que lhe emprestava tudo o que pudesse e que a palavra vergonha estava banida das nossas conversas.

Mas é a verdade, tenho vergonha, os pais é que ajudam os filhos, o contrário é uma vergonha e eu sei que tu não tens muito.

Interrompi: eu zango-me, quanto precisas?

Não sei, depende de me aparecer algum trabalho.

Disse-lhe que trazia pouco comigo, mas a casa era ali perto e tinha lá o meu dinheiro.

Atravessámos o jardim e o quarteirão seguinte: é aqui, último andar, sótão melhorado.

O meu pai olhou para cima com pouco interesse e não quis subir, era mais decente conhecer primeiro o Filipe.

Trouxe-lhe quinhentos euros e expliquei-lhe que agora tenho algum dinheiro, não é muito e não é emprego que dure, mas enquanto houver há e é dele sempre que precisar. (p. 328)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

.

Alfonso Brezmes (Busca-se)





SE BUSCA



Mujer-nube que llueve cuando llora
y se cuelga de los alféizares de las ventanas
los días de viento de fuerte a moderado.
Tiene la frágil entidad de los cuerpos y la
rotunda consistencia de un fantasma.
Si la veis, no le digáis que la ando buscando,
pues podría pensar que estoy desesperado
sin la tibieza de sus brazos de algodón y
sin el suave peso de su sombra.

(sin) Razón:

Alfonso Brezmes




Mulher-nuvem que chova quando chore
e se pendure dos batentes das janelas
nos dias de vento forte a moderado.
Tenha a frágil espessura dos corpos
e a consistência redonda de um fantasma.
Se a virdes, não lhe digais que a busco,
pois podia pensar que estou desesperado
sem o morno de seus braços de algodão,
sem o suave peso da sua sombra.

(sem) Razão:

(Trad. A.M.)

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19.2.16

Bertolt Brecht (Abetos)





TANNEN



In der Frühe
Sind die Tannen kupfern
So sah ich sie
Vor einem halben Jahrhundert
Vor zwei Weltkriegen
Mit jungen Augen


Bertolt Brecht

[Cómo cantaba mayo]




Manhã cedo
são de cobre os abetos
assim os vi eu
há meio século
antes de duas guerras mundiais
com olhos jovens.

(Trad. A.M.)

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18.2.16

Alberto Szpunberg (Embora saibas)





(XIV)


Aunque ya sabes que nunca se vuelve, vuelve a casa,
acepta la pequeña mentira como un guiño
antes de que el invierno te sorprenda
bajo un árbol de ramas despojadas:
acá se acaba el bosque,
el que creció en tus sueños
aun antes de que tus manos rozaran la corteza:
la llanura que se extiende ante tus ojos
como un mar envuelto en luminosa niebla
no tiene por qué ser el desamparo
que se abraza a tus huesos:
todo ha sido un juego de niños,
donde las reglas eran
inocentes trampas consentidas.


Alberto Szpunberg

[Marcelo Leites]





Embora saibas que nunca se volta, volta a casa,
aceita a pequena mentira como um piscar
antes de o Inverno te surpreender
debaixo da árvore de ramos despojados:
aqui se acaba o bosque
o que cresceu nos teus sonhos
antes de as tuas mãos tocarem a casca:
o chão que se estende a teus olhos
como mar envolto em névoa luminosa
não tem por que ser o desamparo
que se abraça a teus ossos:
foi tudo uma brincadeira de crianças
em que as regras eram
inocentes enganos consentidos

(Trad. A.M.)

.

17.2.16

Ver (157)






[Lucien Clergue]

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Paula Ensenyat (Olvidar as flores)





Olvidar las flores,
el invierno,
todo eso,
y dejar la hoja suspendida
en el último aliento
capaz de pronunciarte.
Que se quede intacto
el instante y
la inocencia.


Paula Ensenyat




Olvidar as flores,
o Inverno,
isso tudo,
e deixar a folha suspensa
no último alento
capaz de pronunciar-te.
Guardar intacto
o instante e
a inocência.

(Trad. A.M.)

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16.2.16

W. B. Yeats (Primeira canção dela)





THE LADY’S FIRST SONG



I turn round
Like a dumb beast in a show.

Neither know what I am
Nor where I go,
My language beaten
Into one name;
I am in love
And that is my shame.

What hurts the soul
My soul adores,
No better than a beast
Upon all fours.


W. B. Yeats

[Otra iglesia]




Ando às voltas
tal como um animal no circo.

Não sei quem sou
nem onde vou,
e o meu léxico reduz-se
a um nome só;
estou apaixonado,
vergonha minha.

O que me fere a alma
minha alma adora,
estou ao nível de um animal,
de um quadrúpede.

(Trad. A.M.)

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15.2.16

Pedro Sevilla (O eterno retorno)





EL ETERNO RETORNO



Lo que no me contaron cuando niño,
en las largas veladas del verano
con estrellas brillando en el paisaje azul del patio,
es que aquel desastrado
que llamaba al aldabón de casa
implorando un poquito de sol y unas migajas
de lumbre y compasión,

tendría con el tiempo el mismo gesto,
la luz misma en los ojos,
que el viejo que ahora escribe sus ganas de volver
a la casa de entonces.

Hoy he sabido en sueños el secreto:
aquel viejo y el niño soy yo mismo.

Y los dos son el viejo que esto escribe.


Pedro Sevilla

[La mirada del lobo]



O que não me contaram em criança
nos longos serões estivais,
com as estrelas a brilhar na paisagem azul do pátio,
é que aquele infeliz que batia ao portão,
a implorar um pouco de pão e umas migalhas
de lume e compaixão,

teria com o tempo o mesmo gesto,
a mesma luz nos olhos,
que este velho que agora passa ao papel
a sua ânsia de voltar à casa de então.

Hoje soube o segredo em sonhos:
sou eu mesmo esse velho e o menino.

E os dois são o velho que isto escreve.

(Trad. A.M.)

.

14.2.16

Paulo Castilho (Cada um por si)




Há uma parte da minha missão junto do Vítor que tem a ver com caridade.

Trabalho afincadamente para o desinibir.

O pobre rapaz acumula dentro dele anos e anos de repressão comprimida, ansiosa por explodir cá para fora.

Surpreende-me este meu surto serôdio de altruísmo quase cristão.

Nunca me preocupei muito, na verdade nunca me preocupei nada, com a satisfação dos meus parceiros.

Cada um por si, é assim que o mundo funciona melhor, sou uma ultraliberal tão consistente que levo a minha ideologia para a cama. (p. 306)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

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Pepe Ramos (Ausência de ti n.º 24)





AUSÊNCIA DE TI N.º 24



A hemorragia do sol
deitou a perder a tarde,
abrindo passo depois
a um vazio triste e lacerante
onde antes se encaixava a noite.

Longe ainda da madrugada,
instalo-me nas sombras
a ira renegando do amor
em todas suas manifestações:

a desse amor antropófago
capaz de deixar nos ossos
até os amores futuros,
ou a daquele tão grande
que acaba por esmagar
quem o recebe,

e sobretudo a desse outro amor
tão generoso, oportuno
e tão à nossa medida
que de tanto o precisar
um dia julgámos merecê-lo.


Pepe Ramos

(Trad. A.M.)

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13.2.16

João Guimarães Rosa (Quando escrevo)





Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas,
um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco.
Gostaria de ser um crocodilo
porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranquilos
e escuros como o sofrimento dos homens.


Guimarães Rosa

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12.2.16

Juan Antonio González Iglesias (Esses que se opõem)





Quienes se oponen obstinadamente
a las modas, merecen
una estatua distinta,
una copa de vino decantado con tiempo,
o una línea de oro recitada en voz alta.
Tal vez una inscripción, el reconocimiento
de sus conciudadanos:
"A los que no cedieron".

Porque hay un heroísmo
mínimo, por cierto,
cotidiano,
en esa obstinación
o indiferencia. Son
idealistas que siguen
como si no se vieran
cercados. Su renuncia
no es sólo suya. Vale
para todos. Los salva.

No se embriagan de efímero.
Aportan equilibrio
a la totalidad.
Que nadie se confunda. También ellos
están enamorados del futuro.
Pero no van por el camino fácil.


JUAN ANTONIO GONZÁLEZ IGLESIAS
Confiado
Visor Libros, Madrid (2015)

[La mirada del lobo]




Esses que obstinadamente
se opõem às modas merecem
uma estátua diferente,
uma taça de vinho decantado com tempo,
uma linha de ouro recitada em voz alta.
Quiçá uma inscrição, a gratidão
dos concidadãos:
‘Aos que não cederam’.
Porque há um heroísmo,
mínimo, por certo,
quotidiano,
nessa obstinação
ou indiferença. São
idealistas que vivem
como se não se vissem
cercados. A sua renúncia
não é sua apenas. Vale
para todos. Salva-os.
Não se embriagam de efémero.
Conferem equilíbrio
à totalidade.
Que ninguém se confunda. Também eles
estão enamorados do futuro.
Mas não vão pelo caminho fácil.

(Trad. A.M.)

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11.2.16

Ver (156)






[Lucien Clergue]

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Victor Botas (Almoços de trabalho)





COMIDA DE TRABAJO



Aprovechemos bien estas frugales
comidas de trabajo —unos percebes
y luego algo al champán, postres y para
terminar los habanos. Todo ello,
claro está, acompañado por los vinos
que el chef vea mejor. Profundicemos
en todos esos temas en que estamos
de acuerdo: los sueldos un pelín
más altos, aunque haya (qué bonita
metáfora) que incrementar un poco
más la presión fiscal (cosa, por otra
parte, muy justa y necesaria
socialmente, ¿o es que no estamos todos
del lado del progreso?). Que la gente
profana sepa bien que le conviene
pagar a tocateja nuestros gastos
(por otra parte, nada del otro mundo:
un Mystère cualquiera, y a los toros...
pelillos a la mar del Presupuesto),
ya que mucho nos debe e imprescindible
es nuestra actividad. Luego, ya rotos
de tanto trabajar, busquemos el
merecido reposo del guerrero.


Víctor Botas





Aproveitemos estes frugais
almoços de trabalho – uns percebes
e depois algo com o champanhe, sobremesa e
para terminar os charutos. Isso tudo,
já se vê, acompanhado pelos vinhos
que o chefe tenha por melhor.
Aprofundemos esses temas todos
em que estamos de acordo: os salários
um pelinho mais altos, embora haja
(que linda metáfora) que aumentar
um pouco mais a pressão fiscal (coisa,
por outro lado, muito justa e necessária
socialmente, ou não estamos todos
do lado do progresso?). Que os profanos
saibam bem que lhes convém
pagar as nossas despesas a pronto
(aliás, nada do outro mundo,
um Mystère qualquer e para os touros...
uns pelitos no mar do Orçamento),
já que muito nos devem e imprescindível
é nossa actividade. Depois, já rotos
de tanto trabalho, busquemos
o merecido repouso do guerreiro.


(Trad. A.M.)

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10.2.16

Hilda Hilst (Dez chamamentos ao amigo-III)





DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO



(III)

Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado
Faria do meu rosto de parábola
Rede de mel, ofício de magia

E naquela encantada livraria
Onde os raros amigos me sorriam
Onde a meus olhos eras torre e trigo

Meu todo corajoso de Poesia
Te tomava. Aventurança, amigo,
Tão extremada e larga

E amavio contente o amor teria sido


Hilda Hilst

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9.2.16

Vicente Gallego (Biografia)





BIOGRAFÍA



Pasando aquí las noches,
a solas con el campo he terminado.

Enjugando tomates
y oliéndoles la verde rama oscura.
Pelando mis patatas y poniéndolas
en trato de favor con unos ajos.

Y aún puedo permitirme
dar gracias con un tinto
que refresco con hielo y que me endulzo
con grajos de naranja y de limón.

Se diría que no he llegado lejos,
pero buscadme aquí,
perdido en la primicia de mi alma.


Vicente Gallego

[Apología de la luz]



Passando as noites aqui,
sozinho no campo terminei.

A enxugar uns tomates
e a cheirar-lhes a rama verde escura.
A pelar umas batatas e a juntá-las
com uns poucos de alhos.

E posso ainda permitir-me
dar graças com um tinto
que refresco com gelo e adoço
com gomos de laranja e limão.

Dir-se-á que não fui longe,
mas aqui me tendes,
perdido entre corpo e alma.


(Trad. A.M.)

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8.2.16

Paulo Castilho (Cinco estrelas)





Mesmo assim, fiquei estupefacta a olhar para ele, atrevimento de proporções heróicas, tem de se admirar, uma coisa no activo do rapaz, cria sempre situações que não passavam pela cabeça de ninguém.

Não me dês nenhuma resposta neste momento – disse o Francisco – pensa, lembra-te como foi, recria na tua cabeça, imagina como vai ser, compara com a vida que tens agora, não sei como é, mas imagino, compara e depois decide, tens 23 anos, a tua vida vai ser só isto? pensa bem, como é que queres a tua vida, a única que tens, satisfaz-te a repetição? nunca mais teres uma verdadeira surpresa?

Voltou a dizer: não respondas já, pensa – e depois calou-se.

Fascinante, cinco estrelas, fascinante, percebeu na perfeição a vida que agora levo e tenta minar a minha opção de ser racional e adulta. (p. 285)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

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Vanesa Pérez-Sauquillo (Não te apagues)





No te apagues en esta noche coja.
No. No te me apagues.

Que sé que el viento afuera
va crepitando ramas.
Que sé que ya mi nombre
no asoma a las palabras
en esta calma fría
en que el humo,
hasta el humo,
tiene prisa.

Hasta que el corazón me deje sola,
no te apagues, amor,
de entre mis dedos.
Espera a que me duerma.


Vanesa Pérez-Sauquillo

[Emma Gunst]




Não te apagues nesta noite coxa.
Não. Não te me apagues.

Que eu sei que o vento lá fora
faz crepitar os ramos.
Que eu sei que já meu nome
não aflora às palavras
nesta calma fria
em que o fumo,
atė o fumo,
tem pressa.

Atė que o coração me deixe só,
não te apagues, amor,
de entre meus dedos.
Espera que eu me durma.


(Trad. A.M.)

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7.2.16

Helder Moura Pereira (Jamais me passaria pela cabeça)





Jamais me passaria pela cabeça
mas juro que chegou ao pé de mim
e disse como lhe fazia impressão
que eu outrora tivesse sofrido
- e agora era o que se via.

Quando não conseguia dormir
e o horror, o horror gritava em mim
tive felizmente um amigo
que aceitava aturar-me alcoolizado
quase até ao nascer do sol.

Com isso é que ele não podia.
Eu descia as escadas, dava-me
uma fome tão grande que ia comer
um bife e beber cerveja mista.
Depois aquilo passava-me.


Helder Moura Pereira

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5.2.16

Paulo Castilho (Mulheres)





Quando penso no comportamento da Marta ocorre-me sempre a frase americana ‘what you see is what you get’.

Mesmo correndo o risco de me colocarem uma etiqueta de simples de espírito, confesso que prefiro pessoas assim.

Há já alguns anos, expondo esta opinião a um amigo, provoquei uma forte gargalhada: em que mundo é que tu vives? não é no mesmo que eu, de certeza absoluta, nenhuma mulher te diz o que verdadeiramente pensa ou o que verdadeiramente quer.

Umas vezes não dizem porque esperam que tu adivinhes, é uma prova de amor, prova de que te interessas.

Outras vezes é mais simples, não dizem porque não querem que saibas. (p. 280)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

.

4.2.16

Gonçalo M. Tavares (Sobre o mundo)





SOBRE O MUNDO



O telescópio não alcança sequer a tua alma;
Imprecisão exacta de um instrumento instintivo.
Mas repara: não há instrumentos instintivos ou máquinas
espontâneas.
Dois terços do amor estão na mulher, qualquer
que seja o casal. As evidências abrem falência
em todas as áreas; com o machado homens robustos inventam
ciências viris. Indispensáveis, de facto:
ciências meigas já existem em número
excessivo. Monumentos que ocupam
quilómetros quadrados são explicados por uma equação de
dois centímetros. Repara: a engenharia é a invenção que engordou
as equações matemáticas. Atirou-as para o Mundo.
Vê as águas, a sabedoria discreta: ninguém
constrói uma torre de observação no centro
do mar. As águas não se bebem
por inteiro, e nem toda a água é doméstica. O mar não tem
diminutivos. Uma onda não o é.
Nem o peixe.
Ciências que estudem seriamente o riso
não existem; os cientistas
colocam fórmulas em tabelas: têm gráficos complexos
que explicam a simplicidade
do Mundo. Felizmente, fomos salvos
pelo coração.
Certos órgãos ficaram reféns dos profetas
antigos, e as noites passam-se melhor assim.
Indecisões desconcertantes permitem reinventar a
monotonia: Trago-te uma monotonia surpreendente, alguém diz.
Animais mitológicos bebem água no nada,
e mesmo assim crescem; têm células resistentes.
Outros animais mais longos e espessos, mamíferos
de grande porte por exemplo, evaporam a 36°, reaparecendo
não carnívora. O mundo muda,
Não pense que não. Nem os mamíferos são eternos.
No aeródromo, por exemplo, o poema atravanca o caminho
de descolagem
do avião de um
País pouco habituado a máquinas que subam mais
alto que um banco de cozinha. O mundo
não é injusto, mas também não é teu mordomo;
Avança e é só.


Gonçalo M. Tavares

[Troca de olhares]

.

3.2.16

Teresa Calderón (Estado de sítio)





ESTADO DE SITIO



Considerando la gravedad de los últimos acontecimientos,
y el desorden interno que se vive en mi país por estos días.
Considerando también los actos subversivos de mis sentimientos
y la sucesiva insurrección de la voluntad, solicito refuerzos
al Estado Mayor de mi conciencia.

Emite un bando que establece, de inmediato,
la situación de emergencia,
y a resguardar la ciudadanía me envía sus centurias
con estrictas órdenes de dar la vida si fuera necesario.

Mi corazón anárquico acepta un gobierno provisorio,
mientras yo continúo en gestiones clandestinas con tus ojos,
con tu boca invasora de todos mis límites,
en esta guerra que me declaras,
en este amor abierto entre nosotros.


Teresa Calderón

[Emma Gunst]




Considerando a gravidade dos últimos acontecimentos
e a desordem intestina que reina no meu país.
Considerando também os actos subversivos dos meus sentimentos
e a insurreição da vontade, solicito reforços
ao Estado Maior da minha consciência.
Baixa um decreto instaurando, de imediato,
o estado de emergência
e para proteger os cidadãos manda-me forças
com ordens estritas de dar a vida se for necessário.
Meu coração anárquico aceita um governo provisório,
enquanto eu continuo em manobras clandestinas
com teus olhos, tua boca invasora de minhas fronteiras,
nesta guerra que me declaras,
neste estado de amor aberto entre nós.

(Trad. A.M)

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2.2.16

Paulo Castilho (Amigos)





Nunca imaginei – disse a Beatriz – estou mesmo apaixonada por ele.

Eu disse: até ao próximo.

És o meu melhor amigo – disse a Beatriz – fazemos um pacto? ficamos para sempre melhores amigos?

Para sempre – repetiu a Beatriz – quase como se fossemos casados, é esse o pacto.

Respondi: todos os pactos.

Dei-lhe um beijo e parti.

Desci pelas escadas e meti-me no carro.

Não liguei o motor.

Decidir primeiro o que me apetece.

Melhores amigos.

Quase como se fossemos casados – diz ela.

Faltava essa.

Depois do casamento entre pessoas do mesmo sexo, há-de vir o casamento sem sexo.

Como é que ninguém ainda se lembrou disso? (p. 245)


PAULO CASTILHO
O Sonho Português
(2015)

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Susana March (Tu)









Tú eres mi sed. Los pájaros, los astros...
¿Qué importa que haya un cielo?
¿Qué importa que te mueras y me muera?
¿Qué importa un Dios eterno?
Amo tu imperfección de barro oscuro,
amo tus ojos serios,
amo tus dulces manos pecadoras,
tu perdurable cuerpo...
¿Qué importa que te mueras y me muera?
Tú eres mi sed, el agua que deseo.
De bruces sobre el cauce impetuoso,
humildemente bebo.


Susana March

[Vol de milana]




Tu és a sede para mim, os pássaros, os astros...
Que importa haver um céu?
Que importa tu morreres ou eu morrer?
Que importa um Deus eterno?
Amo a tua imperfeição de obscuro barro,
amo teus olhos sérios,
amo tuas mãos doces e pecadoras,
teu corpo perdurável...
Que importa tu morreres ou eu morrer?
Tu és a sede para mim, a água que desejo.
De bruços na corrente impetuosa,
humildemente bebo.

(Trad. A.M.)

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1.2.16

Gil T. Sousa (Onde mora o coração)





ONDE MORA O CORAÇÃO



ainda que um último navio
viesse pousar-me nas mãos
toda a solidão
das ilhas

e na brevíssima noite
dos mortos
rompesse límpida
a última nuvem
da saudade

ainda assim

só contigo subiria
toda a neve dos dias
até se esgotar
o vermelho

essa casa
onde mora o coração


Gil T. Sousa

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