30.9.15

Aquilino Ribeiro (Família)





Eu sou de família em que as donas se assentavam em esteiras.

Muito amor e poucos afagos.

Nunca conheci as blandícias e a variadíssima bichinha-gata da ternura civilizada.

Na aldeia, para acariciar, não passeiam as mãos pela cara das pessoas queridas.

Semelhante ordem de meiguices são prerrogativas da gente urbanizada.

Para o camponês o rosto é sagrado; tabu; não se lhe toca.

Sempre assim foi, de resto, através das idades.



AQUILINO RIBEIRO
Cinco Réis de Gente- II
(1948)

.

Paula Ensenyat (Beija-me, às vezes)





A veces me besa.

En el pecho se agitan
vendavales de agosto,
murmura el mar
y en lo profundo,
sorprendida,
sonríe la tristeza.

A veces,
la soledad
me besa
y yo
sonrío.

Paula Ensenyat




Beija-me, às vezes.

E no peito rebentam
vendavais de Agosto,
o mar agita-se
e lá no fundo,
surpreendida,
sorri a tristeza.

Beija-me, às vezes,
a solidão,
e eu
sorrio.

(Trad. A.M.)

.

29.9.15

Mário Cesariny (Estação)





ESTAÇÃO



Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça


Mário Cesariny

.

28.9.15

Batania (Grades)





REJAS



Ni el amor
ni la familia
ni la escuela
ni la iglesia
ni el estado
me dieron
ninguna libertad.

Y sin embargo,
puestos a elegir rejas,
prefiero
las
tuyas.


Batania

[Neorrabioso]




Nem o amor
nem a família
nem a escola
nem a igreja
nem o estado
me deram
qualquer liberdade.

E contudo,
a escolher grades,
antes
quero
as tuas.

(Trad. A.M.)

.

27.9.15

Aquilino Ribeiro (Sonhos-4)





Está dito.

Todo esse caudal de representações e imagens que a minha consciência, abandonada à onda caprichosa do sonho, abrigava em seu teatro, esvaía-se na areia.

Até lá a filtragem do corpóreo pelas malhas lassas do psíquico não deixava de ser um dos mistérios inebriantes do meu ser.

Mais subtil nem a gradação de tons produzida pela luz cambiante do pôr do sol nas arestas da onda.



AQUILINO RIBEIRO
Cinco Réis de Gente- I
(1948)

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Biel Vila (Nunca vêm tarde as fadas)





Nunca llegan tarde las hadas
y si sucede, es insignificante:
llegan siempre a su hora.


Biel Vila




Nunca vêm tarde as fadas
e se acontece, não tem importância:
vêm sempre na hora delas.

(Trad. A.M.)




>>  Nunca llegan tarde las hadas (blogue) / Poetas siglo XXI (haikai) / Vol de milana (5 entradas)

.

26.9.15

Fernando Pessoa (Não sei quantas almas tenho)





Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é.

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem 'do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.


Fernando Pessoa

.

25.9.15

Marcelo Daniel Díaz (Nós)





NOSOTROS



Era verano,
en la superficie de la familia
llovían meteoritos.
Íbamos en auto de vacaciones
y el ruido de una pinchadura
desató el temporal.
No conocía la criptonita
pero aún así era un millón de veces
más débil que Clark Kent.
Papá lloraba por teléfono,
el corazón astillado, polvo lunar
en una playa de estacionamiento.


Marcelo Daniel Díaz

[Marcelo Leites]




Era Verão,
choviam meteoritos
na superfície da família.
Íamos para férias de carro
e o ruído de uma picada
desatou o temporal.
Eu não conhecia a criptonite
mas mesmo assim era mil vezes
mais débil que Clark Kent.
Papá chorava ao telefone,
o coração feito em estilhas, pó lunar
numa praia de veraneio.


(Trad. A.M.)

.

24.9.15

Aquilino Ribeiro (Sonhos-3)





Os meus sonhos!

Alguns, formados por fragmentos da vida real, segundo ocorrera na véspera e me impressionara a retina, eram como as migalhas de pão alvo que vêm na toalha ao levantar da mesa e a criada sacudiu à janela; outros, destroços de coisas que arrasta em seu fluxo o rio torvo da memória e, à deriva, se encontram por mero acaso; ainda sons de campainhas etéreas, sinos repicados por anjos ou gnomos, e recolhidos por um detector tonto ou sem ordem nenhuma.



AQUILINO RIBEIRO
Cinco Réis de Gente- I
(1948)

.

Ape Rotoma (A eles)





A ELLOS



Me gustan los camellos silenciosos y cautos,
los que no se apresuran, los que cumplen los ritos,
los que te reconocen pero sin aspavientos
ni sonrisas forzadas ni familiaridades,
que no se hacen los duros ni los necesitados,
que no esperan de ti complicidad ni nada
que no sea el precio exacto, el actual del mercado,
y que hablan del producto lo justo, nunca menos,
y te dicen a veces: lo que hoy tengo es muy malo.
En resumidas cuentas, en esto como en todo,
dadme un profesional.


Ape Rotoma



Eu cá gosto dos passadores calados e cautos,
os que se não apressam, os que cumprem os ritos,
os que te reconhecem mas sem espaventos
nem sorrisos forçados nem grandes intimidades,
que não se fazem de duros nem de necessitados,
que não esperam de ti cumplicidade nem nada
para além do preço exacto, o corrente do mercado,
e que falam do produto o preciso, nunca menos,
dizendo às vezes: hoje o que tenho é mau.
Resumindo, nisto como em tudo,
dai-me um profissional.

(Trad. A.M.)



>>  Poetas siglo XXI (6p) / Las afinidades electivas (4p) / Wikipedia

.

23.9.15

Eugénio de Andrade (Sulcos do Verão)





SULCOS DO VERÃO



Correm pelos sulcos do verão.
São escuros, e correm para mim.
Há quem tenha casa em Corfu
e jardins em Granada;
ou até barcos no mar.
Há quem tenha aqueles olhos,
a água funda desses olhos.
Como eu.
Para beber até ao fim.


Eugénio de Andrade

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22.9.15

Manuel Moya (Têm sede)





TIENEN



Tienen
sed los campos.
Ha llovido poco últimamente.
Pasaron las tormentas
y no dejaron nada.
Sacaron a los ídolos
y no vino la lluvia.
La lluvia viene cuando quiere.
No tiene su sazón
hora fijada. Mucha o poca,
la lluvia jamás mide
cuanto otorga, ni prevé
dónde será bien recibida.
Llueve con simpleza,
simplemente.
Se deja llover por puro gusto.
No castiga la lluvia, no condena.
Es un don la lluvia, y no lo sabe.

MANUEL MOYA
Sitios del agua
(2001)



Têm sede os campos.
Choveu pouco ultimamente.
Passaram as tempestades
e não deixaram nada.
Tiraram os ídolos
e a chuva não veio.
A chuva vem quando quer.
A sua estação não tem
hora certa. Muita ou pouca,
a chuva nunca mede
o que dá, nem prevê
onde é que será bem recebida.
Chove simplesmente,
com simplicidade.
Chove por puro gosto.
Não castiga a chuva, não condena.
É um dom, a chuva, e não o sabe.

(Trad. A.M.)

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21.9.15

Aquilino Ribeiro (Sonhos-2)





Ao ar livre da vigília, as tintas iluminantes volatizavam-se, tão bem como os fuminhos vaporosos.

E desvaneciam-se do mesmo modo os castelos e arquitecturas deslumbradas mal o entendimento a frio tentava apreender-lhes as linhas e convertê-los em figurações objectivas.

O que restava era o resíduo fosforescente, uma tinta convencional, semelhante ao azul com que se contrafaz a cor do mar.



AQUILINO RIBEIRO
Cinco Réis de Gente- I
(1948)

.

Jotaele Andrade (A falta de um peixe no cardume)





LA. AUSENCIA DE UN PEZ EN EL CARDUMEN



te mueres
y alrededor sigue el curso de los días

faltarás
piensas
pero será como la ausencia de un pez en el cardumen
o tan indistinto como una gota de agua en el día lluvioso

y no te mueres de amor
o sed
o hambre

te mueres simplemente
en la fórmula simple de haber nacido
porque golpea su fondo aquello que comprueba su límite

y ya


Jotaele Andrade

[Marcelo Leites]




tu morres
e à volta continua o curso dos dias

farás falta
pensas tu
mas será como a falta de um peixe no cardume
ou tão indiferente como uma gota de água num dia de chuva

e não morres de amor
de sede
ou de fome

morres simplesmente
na fórmula simples de ter nascido
porque bate no fundo aquilo que serve de limite

e é tudo

(Trad. A.M.)



>>  Efory Atocha (6p) / Mordiscos (3p) / Facebook


.

20.9.15

Louise Warren (Eu não faço inventário de palavras)





Eu não faço inventário de palavras,
trabalho a luz para aclarar a consciência.
Creio que cada palavra difunde um clarão
que vai da centelha ao incêndio à noite.
No interior desse espectro luminoso
há um sem fim de variações possíveis.
Uma colecção de luzes.


Louise Warren

(Trad. A.M.)

.

19.9.15

Ángel González (Epílogo)





EPÍLOGO



Me arrepiento de tanta inútil queja,
                           de tanta
tentación improcedente.
Son las reglas del juego inapelables
y justifican toda, cualquier pérdida.
                          Ahora
sólo lo inesperado o lo imposible
podría hacerme llorar:

una resurrección, ninguna muerte.



Ángel González





Arrependo-me de tanta queixa inútil,
                          de tanta
tentação improcedente.
São as regras do jogo inapeláveis
e justificam toda e qualquer perda.
                          Agora
só me faria chorar
o inesperado ou impossível:

uma ressurreição, morte nenhuma.


(Trad. A.M.)

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18.9.15

Aquilino Ribeiro (Sonhos-1)





Eu sonhava persistentemente, desperto e a dormir.

Àquela altura da vida será legítimo estabelecer distinção entre uma e outra espécie de estado?

Seja como for, sei que animava os meus sonhos a mesma inconsistente fugacidade.

A sua deliciosa frescura emocional, os seus temas inéditos, o seu contexto raro quando investido em tal e tal fenómeno, diluíam-se, incaptáveis à razão lúcida.



AQUILINO RIBEIRO
Cinco Réis de Gente- I
(1948)

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Luis Rosales (A última luz)





LA ÚLTIMA LUZ



Eres de cielo hacia la tarde, tienes
ya dorada la luz en las pupilas,
como un poco de nieve atardeciendo
que sabe que atardece.
           Y yo querría
cegar del corazón, cegar de verte
cayendo hacia ti misma
como la tarde cae, como la noche
ciega la luz del bosque en que camina
de copa en copa cada vez más alta,
hasta la rama isleña, sonreída
por el último sol,
         ¡y sé que avanzas
porque avanza la noche! y que iluminas
tres hojas solas en el bosque,
         y pienso
que la sombra te hará clara y distinta,
que todo el sol del mundo en ti descansa,
en ti, la retrasada, la encendida
rama del corazón en la que aún tiembla
la luz sin sol donde se cumple el día.


Luis Rosales




És de céu pela tarde, com a
luz dourada nas pupilas,
como um pouco de neve entardecendo
ciente de entardecer.
         E eu quereria
cegar do coração, cegar de te ver
caindo para ti mesma
como a tarde cai, como a noite
cega a luz do bosque caminhando
de copa em copa cada vez mais alto,
até ao ramo cimeiro, lambido
pelo último sol;
         e sei que avanças
com a noite que avança e que iluminas
três folhas sozinhas no bosque;
         e penso
que a sombra te fará clara e distinta,
que todo o sol do mundo em ti descansa
o ramo aceso do coração em que estremece ainda
a luz sem sol onde se cumpre o dia.

(Trad. A.M.)

.

17.9.15

Charles Bukowski (O meu destino)





O MEU DESTINO



como a raposa
fujo com os perseguidos
e se não sou
o homem mais feliz
à superfície da terra
seguramente que sou
o homem com mais sorte
vivo.


Charles Bukowski

(Trad. F.Carvalho)


[Revista Triplo V]

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16.9.15

Luis García Montero (O silêncio e o ruído)





EL SILENCIO Y EL RUIDO



Son números dormidos en la agenda.
Nadie quiere borrarlos,
pero ellos mismos pierden la memoria,
se alejan de sus dueños
en un rincón oscuro de los días que pasan.
Son números sin voz, sin cenas, sin preguntas
pálidos y encerrados,
tristes de no salir
después de un imprevisto.

Alguna vez el aire
de una disposición irracional
nos pide que marquemos el teléfono
de los amigos muertos.
Suena larga la nada, se repite
como un corte de luz,
sin nadie que conteste.
Eso es el silencio.

Pero también existe el ruido.
Llega sin estridencias, casi un rumor, no grita,
se parece al vacío más que al daño.
La voz de la otra espera,
en la orilla marcada
de nuestro propio tiempo,
dice que no es aquí:
-Se ha equivocado.

Extraña soledad la que se siente
por no pertenecer a la conversación
y saberse la huella de un antiguo
propietario del mundo.

Los hospitales tienen otoños de papel,
borrosas escaleras amarillas
de nombres y números.

Uno empieza a morir en las agendas.


Luis García Montero




Números adormecidos na agenda.
Ninguém quer apagá-los,
mas perdem a memória eles mesmos,
afastam-se dos donos
num recanto escuro dos dias que passam.
Números sem voz, sem cenas, sem perguntas,
pálidos e encerrados,
tristes de não saírem
para uma coisa imprevista.

Às vezes a onda
de um impulso irracional
leva-nos a marcar o telefone
de amigos mortos.
Soa o nada longamente, repete-se
como um corte de luz,
sem ninguém responder.
Isto é o silêncio.

Mas há também o ruído,
surge sem estridências, um rumor quase,
não grita, mais parecido ao vazio.
A voz da outra espera,
na outra margem
de nosso próprio tempo,
diz que não: - É engano.

Estranha solidão a que se sente
por não pertencer à conversa,
saber-se a marca de um antigo
proprietário do mundo.

Os hospitais têm outonos de papel,
ilusórias escalas amarelas
de nomes e números.

Começa-se a morrer nas agendas.

(Trad. A.M.)

.

15.9.15

Mário de Carvalho (Esforço)





Costuma dizer-se que o que se escreve sem esforço se lê sem gosto.

É-me grato perceber que um escritor se preparou, trabalhou para mim.

Gostamos de avaliar a canseira do escritor, mas não gostamos de vê-lo a esforçar-se.

Preferimos que, como operário competente, remova as pranchas, arrume a ferramenta e varra o passeio.

Não é preciso uma rara perspicácia, nem conhecimentos altamente especializados, para perceber que a aparente simplicidade de Garrett, Eça de Queiroz ou José Cardoso Pires é cuidadosamente (mesmo torturadamente) elaborada. (p.240)



MÁRIO DE CARVALHO
Quem disser o contrário é porque tem razão
(2014)

.

Luis Cernuda (Se o homem pudesse)





SI EL HOMBRE PUDIERA DECIR LO QUE AMA




Si el hombre pudiera decir lo que ama,
si el hombre pudiera levantar su amor por el cielo
como una nube en la luz;
si como muros que se derrumban,
para saludar la verdad erguida en medio,
pudiera derrumbar su cuerpo,
dejando sólo la verdad de su amor,
la verdad de sí mismo,
que no se llama gloria, fortuna o ambición,
sino amor o deseo,
yo sería aquel que imaginaba;
aquel que con su lengua, sus ojos y sus manos
proclama ante los hombres la verdad ignorada,
la verdad de su amor verdadero.
Libertad no conozco sino la libertad de estar preso en alguien
cuyo nombre no puedo oír sin escalofrío;
alguien por quien me olvido de esta existencia mezquina
por quien el día y la noche son para mí lo que quiera,
y mi cuerpo y espíritu flotan en su cuerpo y espíritu
como leños perdidos que el mar anega o levanta
libremente, con la libertad del amor,
la única libertad que me exalta,
la única libertad por que muero.
Tú justificas mi existencia:
si no te conozco, no he vivido;
si muero sin conocerte, no muero, porque no he vivido.


Luis Cernuda




Se pudesse o homem dizer o que ama,
se pudesse erguer seu amor ao céu
como uma nuvem na luz;
se como muros que se derrubam,
para saudar a verdade lá dentro erguida,
pudesse derrubar seu corpo,
deixando só a verdade do seu amor,
a verdade de si mesmo,
não a glória, fortuna ou ambição,
mas sim o amor ou desejo,
eu seria aquele que imaginava;
aquele que com sua língua, olhos e mãos
proclama ante os homens a verdade ignorada,
a verdade de seu amor verdadeiro.
Liberdade não sei senão a de estar preso a alguém
cujo nome me dá ao ouvi-lo um calafrio;
alguém por quem esqueço esta existência mesquinha,
por quem o dia ou a noite são para mim o que quiser,
e o meu corpo e espírito bóiam em seu corpo e espírito,
como lenhos perdidos que o mar afoga ou levanta,
livremente, com a liberdade do amor,
a única liberdade que me exalta,
a única por que morro.
Tu justificas minha existência:
se não te conheço, não vivi; se morro
sem conhecer-te, não morro, pois não vivi.


(Trad. A.M.)

.

14.9.15

Cassiano Ricardo (Ficaram-me as penas)





FICARAM-ME AS PENAS



O pássaro fugiu, ficaram-me as penas
da sua asa, nas mãos encantadas.
Mas, que é a vida, afinal? Um vôo, apenas.
Uma lembrança e outros pequenos nadas.
Passou o vento mau, entre açucenas,
deixou-me só corolas arrancadas...
Despedem-se de mim glorias terrenas.
Fica-me aos pés a poeira das estradas.

A água correu veloz, fica-me a espuma.
Só o tempo não me deixa coisa alguma
até que da própria alma me despoje!

Desfolhados os últimos segredos,
quero agarrar a vida, que me foge,
vão-se-me as horas pelos vãos dos dedos.


Cassiano Ricardo

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13.9.15

Luis Alberto de Cuenca (A despedida)





LA DESPEDIDA



Mientras haya ciudades, iglesias y mercados,
y traidores, y leyes injustas, y banderas;
mientras los ríos sigan vertiendo su basura
en el mar y los vientos soplen en las montañas;
mientras caiga la nieve y los pájaros vuelen,
y el sol salga y se ponga, y los hombres se maten;
mientras alguien regrese, derrotado, a su cuarto
y dibuje en el aire la V de la victoria;
mientras vivan el odio, la amistad y el asombro,
y se rompa la tierra para que crezca el trigo;
mientras tú y yo busquemos el medio de encontrarnos
y nuestro encuentro sea poco más que silencio,
yo te estaré queriendo, vida mía, en la sombra,
mientras mi pecho aliente, mientras mi voz alcance
la estela de tu fuga, mientras la despedida
de este amor se prolongue por las calles del tiempo.


Luis Alberto de Cuenca

[La cancion de la sirena]




Enquanto houver cidades, igrejas e mercados,
e traidores, injustas leis, e bandeiras,
enquanto os rios verterem sua porcaria
no mar e os ventos soprarem nos montes;
enquanto a neve cair e os pássaros voarem,
e o sol nascer e se puser, e os homens se matarem;
enquanto alguém voltar, derrotado, a sua casa
e fizer no ar o V da vitória;
enquanto viverem o ódio, a amizade, o assombro,
e a terra se abrir para o trigo crescer;
enquanto tu e eu buscarmos o meio de encontrar-nos
e for nosso encontro pouco mais que silêncio,
eu hei-de amar-te, vida minha, na sombra,
enquanto meu peito bater e minha voz alcançar
o rasto da tua fuga, enquanto a despedida
deste amor se prolongar pelas avenidas do tempo.

(Trad. A.M.)

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12.9.15

Mário de Carvalho (Estilo)





A palavra estilo vem do étimo latino 'stilus', que significa ponteiro para escrever.

Era aquela pequena haste metálica com que se escrevia em tabuinhas de cera.

Pode designar hoje a 'maneira' de cada autor.

Bem se diferenciam a prosa tersa e concisa de José Cardoso Pires, conjugada com expressões populares e familiares, a metalinguagem torrencial de José Saramago, o tumulto aforístico e sentencioso de Agustina, a capacidade metafórica e a focagem melancólica dos humildes em António Lobo Antunes, a espessura do português ancestral nutrido a rebrilhar de laivos bem-humoradas em Aquilino, o discorrer correcto, uniforme e sombrio de Vergílio Ferreira.

O modo, ou, se quisermos, a 'maneira' de cada escritor, recorta e identifica o seu estilo. (p.233)



MÁRIO DE CARVALHO
Quem disser o contrário é porque tem razão
(2014)

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Ana Pérez Cañamares (Água da chuva)





AGUA DE LLUVIA



Mamá venía cantando por el pasillo a despertarme:
con los ojos aún cerrados yo olía la lluvia.

Mamá se alegraba
por todos las plantas, los huertos y los árboles
que recibían el agua
lejos
muy lejos
de nuestro bloque de diez pisos.

Mamá estaba viendo borbotear la fuente de su pueblo
desbordarse acequias y arroyos
a las viejas echarse el manto
por encima de la cabeza
y las hojas y ramas goteando
murmurando melodías que se colaban
en su casa triste
con muertos y sin radio.

Yo no entendía aquel refrán
que ella murmuraba de vuelta a la cocina:
agua de lluvia no quita riego.

Yo no sabía entonces
que las madres pueden ser
flores sedientas.


Ana Pérez Cañamares




Mamã vinha-me acordar cantando pelo corredor,
eu cheirava a chuva de olhos ainda fechados.

Mamã alegrava-se
pelas plantas, quintais e árvores
que recebiam a água
longe
muito longe
do nosso lote de dez pisos.

Mamã estava a ver borbotar a fonte da sua terra
transbordar regos e arroios
a ver as velhas pôr o xaile
por cima da cabeça
e as folhas e ramos a gotejar
murmurando melodias que se enfiavam
na sua casa triste
sem rádio e com mortos.

Eu não entendia aquele refrão
que ela entoava no regresso à cozinha:
água de chuva não dispensa rega.

Eu não sabia então
que as mães podem ser
flores sedentas.

(Trad. A.M.)

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11.9.15

Louise Warren (Quando não tiver ninguém)





Quando não tiver ninguém
a quem falar de ti
ninguém
a quem mostrar teu rosto
hei-de amoldar-me à tua ausência
deixar que tome forma
inclinar-me para ti


Louise Warren

(Trad. A.M.)



>>  Louise Warren (sítio) / Internatural (textos)

.

10.9.15

Lucas Rodríguez (Poema à Pepe Ramos)

 




POEMA AL ESTILO PEPE RAMOS



Que me jodan
que me den por el culo
y encuentre cositas blancas en mi cuca
que me roben la bici
y me despidan de mi mierda de curro
que Satanás me desgarre las tripas
que pierda el abono trasporte a primeros de mes
que me prohíban la entrada al circo
y se me caiga el poco pelo que aún me queda
que se me averíe la play
y que no me salga nunca el sol
que mis lágrimas me sepan a hiel
que me persiga el acordeonista de recoletos
y que nunca encuentre
a nadie que te sustituya.


Lucas Rodríguez

[El koala puesto]




Que me lixem
que me vão ao cu
que ache na cabeça aquelas coisinhas brancas
que me roubem a bici
e me despeçam da merda do emprego
que Satanás me rasgue as tripas
que perca o passe transporte logo no início do mês
que me proíbam a entrada no circo
e me caia o pouco cabelo que ainda me resta
que se me avarie a play
e que deixe de fazer sol
que as lágrimas me saibam a fel
e me persiga o acordeonista de recoletos
e que jamais encontre
alguém que te substitua.


(Trad. A.M.)

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9.9.15

Aquilino Ribeiro (Início)





Retrocedendo nos limbos do passado até onde a minha memória é como a lanterna dum mineiro perdido no fundo duma galeria, que vejo?

Vejo no grande e desmantelado pátio fidalgo a nossa casa, de lojas para animais e habitação, com a sua obsequiosa escada de pedra e um esgrouviado sabugueiro a bater atónito nas vidraças, que deitavam para o povo, sempre que o Soão soprasse forte.

Vejo depois a larga porta de dois batentes escancarada, e na sala de tecto em pirâmide octogonal, obrado de velho castanho, uma coisa rastejava.



AQUILINO RIBEIRO
Cinco Réis de Gente- I
(1948)

.

León Felipe (Credo)





CREDO



Aquí estoy...
En este mundo todavía... Viejo y cansado... Esperando
        a que me llamen...
Muchas veces he querido escaparme por la puerta maldita
        y condenada
y siempre un ángel invisible me ha tocado en el hombro
        y me ha dicho severo:
No, no es la hora todavía... hay que esperar...
Y aquí estoy esperando...
con el mismo traje viejo de ayer,
haciendo recuentos y memoria,
haciendo examen de conciencia,
escudriñando agudamente mi vida...
¡Qué desastre!... ¡Ni un talento!... Todo lo perdí.
Sólo mis ojos saben aún llorar. Esto es lo que me queda...
Y mi esperanza se levanta para decir acongojada:
Otra vez lo haré mejor, Señor,
porque... ¿no es cierto que volvemos a nacer?
¿No es cierto que de alguna manera volvemos a nacer?
   (…)


León Felipe



Aqui estou...
Neste mundo ainda... Velho e cansado... Esperando
          a chamada...
Muita vez quis fugir pela porta maldita
          e condenada
e sempre um anjo invisível me bateu no ombro
          e disse severo:
Não, não é hora ainda... tens de esperar...
E cá estou esperando...
com a mesma roupa velha de ontem,
a fazer revisões,
a fazer exame de consciência,
esquadrinhando a minha vida agudamente...
Que desastre!... Nem um talento!... Tudo perdi.
Só meus olhos sabem ainda chorar. É isto que me resta...
E a minha esperança levanta-se a dizer angustiada:
Para outra vez farei melhor, Senhor,
porque... não é certo que nascemos de novo?
Não é certo que voltamos a nascer de algum modo?
   (...)

(Trad. A.M.)

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8.9.15

Dinis Moura (Os naufrágios do amor)





Os naufrágios do amor exigem
medidas drásticas e extraordinárias.

Depois de dezenas de requerimentos,
o mesmo número de insistências,
muita perseverança e algumas rezas,
eis que finalmente surgiu uma vaga.
Foi ontem à tarde.
Durante um bom par de horas
estive à conversa com Santo António
– A ver se me arranja uma moçoila,
uma moçoila carinhosa, bonita, fiel.

A agenda a transbordar,
imensos pedidos, permanentes quefazeres.
– Por tais e quejandos motivos, vi-me forçado
a acrescentar mais três dias ao mês de Fevereiro:
até ao dia 31 não terei mãos a medir.
Ainda pensei que esse assunto das redes socais
contribuísse para aliviar-me a carga – mas qual quê?
A faina duplicou, triplicando-me destarte as preocupações.

Depois em gestos medidos,
numa expressividade parenética:
logo que sobeje tempo
prometo tratar disso.
Como estava a dizer-lhe,
há depois aqueles peixes mais ariscos.

Eu bem fui insistindo na rogatória,
falei na cor dos olhos, que os queria
castanhos, como os da minha mãe.
Gostaria dela com cabelo comprido,
pele branca, sorriso de flor de cerejeira,
pernas de Vénus de Botticelli,
mas o canonizado tagarela passou o resto
da tarde a discorrer caudalosamente sobre
peixes, anzóis e canas de pesca
– e eu a ver navios!


Dinis Moura

[Canal de poesia]

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7.9.15

Amalia Bautista (Ida e volta)





IDA Y VUELTA



Cuando nos dirigimos al amor
todos vamos ardiendo.
Llevamos amapolas en los labios
y una chispa de fuego en la mirada.
Sentimos que la sangre
nos golpea las sienes, las ingles, las muñecas.
Damos y recibimos rosas rojas
y rojo es el espejo de la alcoba en penumbra.

Cuando volvemos del amor, marchitos,
rechazados, culpables
o simplemente absurdos,
regresamos muy pálidos, muy fríos.
Con los ojos en blanco, más canas y la cifra
de leucocitos por las nubes,
somos un esqueleto y su derrota.

Pero seguimos yendo.


Amalia Bautista

[Emma Gunst]




À ida para o amor
vamos todos a arder,
com borboletas nos lábios
e no olhar uma chispa de fogo.
Sentimos o sangue a bater
nas têmporas, nas virilhas, no pulso.
Damos e recebemos rosas vermelhas
e vermelho é o espelho do quarto em penumbra.

Ao voltar do amor, murchos,
enjeitados, culpados
ou simplesmente absurdos,
vimos muito pálidos, muito frios.
De olhos desmaiados, mais grisalhos
e com os leucócitos nas nuvens,
somos um esqueleto e sua derrota.

Mas continuamos a ir, sempre.

(Trad. A.M.)

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6.9.15

Mário de Carvalho (Aquilino-2)





Há palavras do léxico aquiliniano que nem sempre estão ao alcance do leitor, mesmo quando tem vastas reservas vocabulares.

Não faz mal nenhum recorrer ao dicionário, é até saudável.

Mas nem todos os dicionários registam as palavras do grande escritor.

Isso não impede o prazer da leitura de um texto de Aquilino, tanto mais que há uma qualidade do autor que logo captura o nosso entendimento: tem graça no dizer, e a maioria dos saborosos e raros vocábulos que recupera tira-se pelo sentido. (p.231)


MÁRIO DE CARVALHO
Quem disser o contrário é porque tem razão
(2014)

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Laura Wittner (Passeio)





PASEO



Buscando recuperar el estado de flotación
que existió una, dos veces como mucho
en cada relación o actividad
la persona sale de su casa,
testea el aire, elige la postura y se lanza hacia delante
para un rato después encontrarse circulando
entre escenarios de los que espera demasiado:
muy verdes hojas de hiedra sobrecrecida
como trapos colgando de un alambrado de uno treinta,
luces amarillas de un fulgor desconcertante
que en su disposición son molde
de lo que se llama planetario,
graffitis modernos con pintura plateada
y el tren que justo entonces pasa por encima,
en fin,
todo tipo de cosas sugerentes
que algo tendrían que entregar
si el cable de este razonamiento
no se hubiera cortado en algún punto.

Laura Wittner

[Otra iglesia]





Tentando recuperar o estado de flutuação
que existiu uma, duas vezes se tanto
em cada relação ou actividade,
uma pessoa sai de casa, testa o ar,
escolhe a postura e lança-se para a frente,
para um pouco depois se achar a circular
por entre cenários de que espera demasiado:
folhas muito verdes de hera pendendo
como trapos de uma vedação de um e trinta,
luzes amarelas de fulgor desconcertante
servindo de molde àquilo que se chama planetário,
grafitos modernos com tinta prateada
e o comboio que nesse instante passa por cima,
enfim, esse tipo de coisas sugestivas
que algo poderiam dar
se o cabo deste razoamento
não se cortasse nalgum ponto.


(Trad. A.M.)

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5.9.15

Bocage (Liberdade onde estás?)





Liberdade onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu infame influxo em nós não caia
Porque (triste de mim!) porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa redenção é vinda hora
A esta parte do mundo, que desmaia.
Oh! Venha... Oh! Venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal, que frio e mudo
Oculta o pátrio amor, torce a verdade,
E em fingir, por temor, empenha estudo:

Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio, e prazer, ó liberdade!


Bocage




>>  BN (tudo+algo) / Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas / Citador (35p) / IST (18p) / Portal da literatura (65p)

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4.9.15

Karmelo C. Iribarren (Ingénuo)





INGENUO



Creí que, como el mar
una noche de verano, tu sonrisa
me invitaba a sumergirme
(únicamente
a mí)
en tus aguas
profundas.

Pero salió la luna
y vi la playa llena
de exhaustos nadadores.


Karmelo C. Iribarren



Julguei que, tal como o mar
em noite de Verão, teu sorriso
me convidava a mergulhar
(só a mim)
em tuas águas
profundas.

Mas veio a lua
e então vi
a praia cheia
de exaustos nadadores.

(Trad. A.M.)

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3.9.15

Mário de Carvalho (Aquilino-1)





Quando falamos na irradiação semântica das palavras, na sua polissemia, vem logo à ideia o grande Aquilino Ribeiro e a sua magnífica paleta de gradações, num turbilhão alegre de reminiscências e sonoridades que não têm paralelo na literatura portuguesa.

Não se trata, como pode acontecer noutros autores do séc. XX, de um mostruário de palavras - destinado a demonstrar e a cansar pela quantidade (há exemplos) - mas de um talentoso espertar de uma tradição que vem, sem dúvida, da velha prosa fradesca, designadamente de um Frei Luís de Sousa, de António Vieira, decerto, mas sobretudo de um Camilo, de que Aquilino é um talentoso continuador.

Não apenas pela mestria (podíamos dizer: prestidigitação) sobre os recursos da língua, mas sobremaneira pela graça que lhe repassa os textos, pela cultura solidíssima que os informa e pela exuberante imaginação verbal. (pp. 230/1)


MÁRIO DE CARVALHO
Quem disser o contrário é porque tem razão
(2014)

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Alfredo Buxán (Hoje, por exemplo)





HOJE, POR EXEMPLO



A vida começa um dia qualquer.
Tanto dá que chova ou o vento
arraste a folharada no caminho.
Quando a destruição parece inevitável
e a alma se rende
no último reduto,
quando a morte ronda
sem tapar a cara,
um simples gesto
mesmo involuntário
dá uma volta ao rumo da noite,
tempera a dor, assume-a e dá-lhe sentido,
e abre uma fenda na treva
por onde entra o ar, renovado.
Depende de nós o passo seguinte.
Entender os sinais. Iniciar a viagem.


ALFREDO BUXÁN
La transparencia
Cadernos de Néboa-3
(2012)

(Trad. A.M.)


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2.9.15

Carlos Drummond de Andrade (Inocentes do Leblon)





INOCENTES DO LEBLON



Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.



Carlos Drummond de Andrade

[Antonio Cicero]

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1.9.15

Juanjo Barral (O dinheiro não dá felicidade)

 




EL DINERO NO DA LA FELICIDAD



De golpe
-y no precisamente de fortuna-
le han bajado 35 mil el sueldo
la hipoteca ha subido diez
y para celebrarlo
la grúa le lleva el coche: siete más
la multa.
Así que se descojona
porque el dinero no da la felicidad
sobre todo cuando te lo quitan.


Juanjo Barral




De golpe – e não precisamente de sorte –
baixaram-lhe o salário em 35 mil
a hipoteca subiu dez
e para festejar
o reboque levou-lhe o carro: sete,
mais a multa.
Daí sentir-se esculhambado
porque o dinheiro não dá felicidade,
sobretudo quando to tiram.

(Trad. A.M.)

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