30.4.15

Gloria Fuertes (Em noites claras)





En las noches claras,
resuelvo el problema de la soledad del ser.
Invito a la luna y con mi sombra somos tres.


Gloria Fuertes




Em noites claras
resolvo o problema da solidão.
Convido a lua e com a minha sombra
já somos três.

(Trad. A.M.)

.

29.4.15

José Cardoso Pires (O Delfim-6)





Com empenho e com algum temor, foi justamente isso que pretendeu o escritor-furão: dissertar, recuperando.

Investigar as desfigurações constantes de que cada facto aparece carregado e que, uma vez denunciadas, vão provocar novas desfigurações no conjunto dos elementos relacionados com ele.

Desfigurar para configurar: ao cabo e ao resto é esta dialéctica de repulsa e de integração que mantém o microcosmos da Gafeira naquele equilíbrio em suspenso.

(Corrijo: em vez de 'desfigurações' escrevo 'polivalências aberrantes', supondo que fique mais claro. Polivalências adquiridas pelas personagens e pelos acontecimentos quando pressionados pelos mecanismos da memória, pela mitificação ou pela censura; quando ausentados, em suma, de coordenadas universais).


JOSÉ CARDOSO PIRES
E agora, José?/ Memória descritiva
(1977)

.


Ernesto Pérez Vallejo (Do que as margens ignoram)





DE LO QUE NO SABEN LAS ORILLAS



Ahí está lo único bueno del verano,
lleva un bikini blanco,
se agacha de vez en cuando
a recoger caracolas de la orilla
y media playa suspira por su culo,
la otra media critica sus caderas.

Siempre he pensado que el peor enemigo de una mujer,
es otra mujer.
Ella lo sabe.

Anoche a las dos de la madrugada
yo ya llevaba seis mentiras,
a veces alterar mi soledad
no es tan sencillo.

Lo peor del conmigo es el sin ti.
Lo mejor del sin mí era el contigo.

Había una chica muy guapa,
de esas que tienes que mirarla tres veces
para creer en ella
y no culpar al alcohol
de crear bellezas que no existen.
Me la encontré en mis ojos en mitad de la barra
bebía ginebra y olía a vainilla,
tenía el pelo largo, la falda corta, la sonrisa amplia,
me la hubiera follado en el primer rincón
abandonado de la ciudad,
decorado con su boca las flores del parque,
agrietado con su manos lo más oscuro de mi pecho.
Pero no llevaba tacones.
Una mujer sin tacones
es como un hombre sin polla,
te puede gustar mucho
pero a la hora del desnudo
le falta un trozo.

Con el pelo suelto la chica del bikini blanco
parece un anuncio de viajes al Caribe,
un póster del último camionero romántico,
una isla donde el naufragio
más que catástrofe es una suerte.
Decía la camarera del bar
donde hipoteco todo mi equilibrio
que si la incertidumbre no arde,
el amor se apaga.
Que hay que saber llegar lo suficientemente tarde
para que te echen de menos
pero no tanto como para que te manden a la mierda.
Incluso al orgasmo dijo.
Y sonrió.

Yo hace exactamente ochocientos cincuenta y tres días
que no llego tarde a ningún sitio.
Y no porque el desamor me haya hecho un hombre puntual
si no porque ya nadie me espera.
Y es triste.

Como triste es que ella ahora
no necesite una mano en su espalda
para extender la crema protectora,
o que le lama los tobillos para que la sal del mar
cicatrice los besos que nunca me dieron en la infancia
y que tanto me duelen todavía.

Cinco de la mañana,
llevo tantas mentiras
que ni siquiera recuerdo bien quién soy.
Comentan que los borrachos siempre dicen la verdad,
yo opino que la verdad no es más que una mentira mal contada.
Supe al perderte,
que había ganado lo peor de mi mismo,
por eso dije te amo en lugar de te quiero
antes de que cruzaras el umbral de la puerta.
Te amo,
aunque en realidad lo que quería decir era:
- Por favor no te vayas nunca o mi vida será una mierda-
Solo dije te amo.
Y no fue suficiente.

Lo mejor es cuando salta las olas
y sus tetas se burlan del vértigo.
Tiene los pies más bonitos del mediterráneo,
no más de un treinta y siete
y las uñas pintadas de un azul claro.
Uno no sabe con exactitud
si tiene el cielo bajo los pies
o por encima de la cabeza.
De hecho uno no sabe en realidad si hay cielo
hasta que no la mira.
Andar despacio, abrir la puerta,
recordarte,
cerrar la vida.
Atravesar el silencio que has dejado en cada habitación,
vestir la terraza con tus vestidos de colores,
que nadie sepa que te has ido para siempre,
que el aire haga de tu olor algo perverso.
Aún sabe a ti las costuras de tus bragas,
aún siento igual si te pienso entre mis brazos,
aún me odio más sin odiarte todavía.

Se tumba en la toalla sutilmente,
tiene el cabello negro, piel oscura,
los ojos más bien verdes aunque a veces,
te mira en azul y te despista.
Debajo del ombligo hay un lunar
que bien podía ser centro del mundo,
debajo del lunar hay otra playa
que sabe de humedad más que las barcas.

La cama me pregunta por tu peso,
hay quien le llama insomnio a las ausencias
yo no digo tu nombre desde entonces.
Tu nombre nunca acepta una mentira
se incrusta en el cielo de la boca
y duele más gritarlo que ignorarlo.
Se recoge el cabello, luego observa
al sol despedirse de la orilla,
se pone su vestido, el de los martes
(Ese de flores rosadas y amarillas)
y marcha arena arriba sin mirar
lo triste de la playa con su ausencia.

Igual que está la casa, igual que yo,
desde que giró el pomo en un te amo
y me rompió el verano para siempre.


Ernesto Pérez Vallejo

[Los lunes que te debo]



Ali vai o melhor do Verão,
usa biquini branco,
agacha-se de vez em quando
a apanhar conchas na beira
e meia praia suspira-lhe pelo rabo,
a outra meia censura-lhe as ancas.

Sempre pensei que o inimigo pior da mulher
é outra mulher.
Ela sabe disso.
Esta madrugada às duas
eu levava já seis mentiras,
às vezes fintar a solidão
não é nada simples.

O pior do comigo é o sem ti,
o melhor do sem mim era o contigo.

Havia uma moça muito gira,
dessas que se tem de olhar três vezes
para acreditar nela
e não culpar o álcool
de criar belezas inexistentes.
Dei com os olhos nela a meio do balcão,
a beber genebra, e cheirava a baunilha,
tinha cabelo comprido, saia curta, largo sorriso,
dava-lhe uma queca no primeiro canto
escondido da cidade,
ou punha-lhe a boca a enfeitar o canteiro das flores,
rasgando o recesso do meu peito.
Mas não usava saltos.

Uma mulher sem saltos
é como um homem sem pila,
pode gostar-se muito dela
mas na hora de despir
falta-lhe alguma coisa.

De cabelo solto, a nina do biquini branco
parece um anúncio de viagens ao Caribe,
um poster do último camionista romântico,
uma ilha onde o naufrágio
é mais sorte do que tragédia.

Dizia a empregada do bar
onde hipoteco o meu equilíbrio
que se a incerteza não arder
o amor apaga-se.
Que tens de saber chegar tarde o bastante
para que te sintam a falta
mas não tão tarde que te mandem à merda.
Ou ao orgasmo, disse.
E sorriu.

Eu há exactamente oitocentos e cinquenta e três dias
que não chego tarde a nenhum lado.
Não porque o desamor me tenha feito pontual
mas porque ninguém me espera já.
E é triste.

Como triste é que ela agora
não precise dumas mãos que lhe ponham
o protector solar nas costas,
ou que lhe lamba os tornozelos para o sal
cicatrizar os beijos que me faltaram na infância
e que tanto me doem ainda.

Cinco da manhã
levo já tantas mentiras
que nem sequer me lembro bem de quem sou.
Dizem que os bêbedos falam sempre a verdade
cá para mim a verdade não passa de uma mentira mal contada.

Soube ao perder-te
que ganhei o pior de mim mesmo,
por isso disse amo-te em vez de quero-te
antes de passares o traço da porta.
Amo-te,
mas na verdade o que queria dizer era:
- Por favor não vás embora nunca ou a minha vida será uma merda -
Disse apenas amo-te.
E não foi suficiente.

O melhor é quando salta nas ondas
e as mamas se lhe iludem com a vertigem.
Tem os pés mais lindos do mediterrâneo
número trinta e sete não mais
e unhas pintadas de azul claro.
a gente não sabe exactamente
se tem o céu por baixo dos pés
ou por cima da cabeça.
De facto não se sabe em verdade se há céu
antes de a contemplar.

Andar devagar, abrir a porta,
recordar-te,
fechar a vida.
Atravessar o silêncio que deixaste em cada sala,
vestir o terraço com os teus vestidos,
que ninguém saiba que te foste para sempre,
e que o vento perverta o teu cheiro.
Teu sabor está nas costuras das cuecas,
eu sinto o mesmo ainda ao pensar-te nos meus braços
e ainda me odeio mais por não odiar-te ainda.

Ela deita-se na toalha subtilmente,
com seu cabelo preto, tez escura,
olhos sobre o verde, embora às vezes
nos olhe em azul e nos despiste.
Por baixo do umbigo tem um sinal
que podia bem ser o centro do mundo,
por baixo do sinal há outra praia
que sabe de humidade mais do que os barcos.

A cama pergunta-me por teu peso,
há quem chame insónia à ausência
eu desde então não pronuncio o teu nome.
Teu nome nunca aceita uma mentira
cola-se ao céu da boca
e dói mais gritá-lo do que ignorá-lo.

Apanha o cabelo, depois observa
o sol a despedir-se da costa,
põe o vestido, o das terças
(aquele de flores amarelas e rosa)
e caminha areia acima sem olhar
a tristeza da praia na sua ausência.

A casa está na mesma, tal como eu,
desde que rodou a maçaneta da porta num amo-te
e me rasgou aquele Verão para sempre.

(Trad. A.M.)

.

28.4.15

Maria Teresa Horta (Não contes)





Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar


Maria Teresa Horta

[Escritas]

.

27.4.15

Laura Casielles (Ascendente Balança)





ASCENDENTE LIBRA



Conoceréis el amor y entonces
pensaréis en la muerte;
reconoceréis la belleza y entonces pensaréis
en la maldición del paso del tiempo.
Leeréis un verso y recordaréis
que la fruta se pudre,
que la violencia impera;
veréis una joven hermosa
y pensaréis en huesos y en polvo.
Conoceréis la paz y oiréis el eco del grito;
os llevarán al mar y os asombrará
la certeza del llano
que es devastado por el fuego.
Conoceréis el deseo y entonces
temeréis el fin de la tierra.

Pero, otras veces,
conoceréis la muerte y pensaréis en el amor,
reconoceréis la maldición del paso del tiempo
y os haréis súbditos incorruptibles
de la belleza.


Laura Casielles

[Emma Gunst]



Conhecereis o amor e então
pensareis na morte;
reconhecereis a beleza e então
pensareis na maldição
da passagem do tempo.
Lereis um verso e recordareis
que a fruta apodrece,
que reina a violência;
vereis uma jovem bela
e pensareis em ossos e em pó.
Conhecereis a paz e escutareis o eco do grito;
levar-vos-ão até ao mar e há-de assombrar-vos
a certeza do plaino
devastado pelo fogo.
Conhecereis o desejo e então
haveis de temer o fim da terra.

Mas, outras vezes,
conhecereis a morte e pensareis no amor,
reconhecereis a maldição da passagem do tempo
e tornar-vos-eis súbditos incorruptíveis
da beleza.

(Trad. A.M.)

.

26.4.15

José Cardoso Pires (O Delfim-5)





'O Delfim' é, intenta ser, a descrição de um homem que através de alienações progressivas se conduz à mitomania.

(O Padre Novo em aparte: 'Você sabe como ele é. Inventa as histórias e depois acredita nelas'.)

Quanto mais o presente lhe põe à vista os sinais do futuro irrevogável, mais ele se alheia da evidência racional e mais carregado se torna o seu traço psicótico.

Mas se é destino dos barões sem crédito sublimarem-se à margem da realidade que os recusa, até que ponto não têm eles de perverter a imagem da mesma realidade para poderem subsistir?


JOSÉ CARDOSO PIRES
E agora, José?/ Memória descritiva
(1977)

.

Luis González Ansorena (E tu, homem vulgar)





Y tú,
hombre vulgar
y cotidiano,
me preguntas
para qué sirve
la poesía.
Lo entenderás
cuando las ratas
comprendan por qué
vuelan las águilas.

Luis Ansorena



E tu,
homem vulgar
e quotidiano,
perguntas
para que serve
a poesia.
Hás-de entendê-lo
quando os ratos
entenderem
porque é que voam as águias.

(Trad. A.M.)

.

25.4.15

Vinicius de Moraes (Pátria minha)





PÁTRIA MINHA



A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um ‘libertas quae sera tamem’
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes."


Vinicius de Moraes

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23.4.15

José Cardoso Pires (O Delfim-4)





Nas sociedades fechadas, sociedades predominantemente masculinas em que o cidadão é destituído de autoridade cívica e de influência social, os exibicionismos da virilidade são as compensações dessa desautorização.

Subdesenvolvimento cultural, compressão religiosa e renúncia à realidade erótica são três pontos de fé dessas mesmas sociedades que aceleram poderosamente o processo das afirmações machistas.



JOSÉ CARDOSO PIRES
E agora, José?/ Memória descritiva
(1977)

.

Fermín Herrero (Linha divisória)





MOJONERA



Todo poema acota un espacio
y lo funda, baliza un territorio. Aquí
la altura es páramo
y remanso - los hombres callan - pero
el agua baja de los montes y su voz
desnudándose al aire me traspasa. Muchos
aquí se van y pocos
vuelven, los que se quedan vagan
como espectros rulfianos pero
su corazón sin catastrar ignora
la prisa y los registros. Aquí
los frutos son de otoño y cuando
llegan, porque las casas dan
al invierno y la flor se desploma
en ruina al pasmo de las noches
en pueblos sin escuela ni tabernas. Pero
todavía en algunos
es virtud la templanza y no se pierde
el hombre por el lucro o la apariencia. Estos
son los dominios del silencio. El tiempo
aquí se para. Y me traduce.

Fermín Herrero




Todo o poema desenha um espaço
e dá-lhe fundo, baliza um território. Aqui
a altura é páramo
e remanso – os homens calam – mas
a água desce dos montes e a sua voz
trespassa-me ao desnudar-se ao vento.
Muitos se vão aqui e poucos voltam,
os que ficam vagam como espectros
rulfianos, mas o seu coração por cadastrar
desconhece a pressa e os registos. Aqui
os frutos são de Outono, quando vêm,
porquanto as casas dão para o Inverno
e a flor desfaz-se em ruína no pasmo das noites
em aldeias sem escola nem tabernas.
Mas em alguns é ainda virtude
a temperança e o homem não se perde
pelo lucro ou pela aparência. Estes
são os domínios do silêncio. O tempo
aqui detém-se. E traduz-me.


(Trad. A.M.)




>>  Abel Martín (33p) / Turismo T.A. (5p) / Escritores (linques)

.

22.4.15

Maria do Rosário Pedreira (Vieste como um barco)





Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o frio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.


Maria do Rosário Pedreira

[Abro páginas]

.

21.4.15

Cysko Muñoz (Mulher de azul)





MUJER DE AZUL



Busco una mujer
entre todas ellas
capaz de ver belleza
en el grito de un naufragio,
la belleza
de las innumerables tragedias cotidianas
o del maullido moribundo
del gato del tejado.

Quiero que sea capaz de romper
el destino de un mordisco
de convertir el miedo en migajas
dibujar un mantel
y pegarse un festín.
Una mujer a la que le hagan cosquillas las religiones
que sepa desde siempre
que vamos a encontrarnos
pero que en lo único en lo que crea
sea en el azar.

Quiero que sea a la vez
un sueño y un recuerdo
que llegue con la sonrisa en punto
del mediodía
y con la alegría
imprecisa de un jilguero
-que sepa, como se sabe en los libros-
que el amor romántico es una mentira
sobre un castillo de naipes
-pero que intuya, como se intuye en los sueños-
que juntos podemos ser sencillamente felices.

Una mujer de viento y espada
de beso y hoguera
que cuanto mas la aten
mas se aleje
una mujer de hacha de guerra
de yesca y alumbre
que cure las heridas con sal.

Una mujer con la que todo se peleé
pero nada se rompa
que tras cada tropiezo
se gire en el aire y se ponga a bailar
que invente palancas
con las que mover los otoños
que su lengua sea un río de lava
y su saliva espuma de mar.

Una mujer cuyas piernas inspiren los dogmas
y sus pisadas los aplasten uno tras otro.

Una mujer cuyos labios fabriquen las nubes
y sus besos no paren de llover.

Una mujer cuyas manos sean de arcilla
y sus caricias de agua

o simplemente una mujer sencilla
tal vez, una mujer de azul.

Busco una mujer, para empezar,
–y esto es lo único innegociable-
que sea capaz de mirar de frente
estos versos
y no les tenga miedo.

Una mujer así o nada.

No pienso conformarme con menos.

Cysko Muñoz



Busco mulher
que seja entre todas
capaz de ver beleza
no grito de um naufrágio,
a beleza
das inúmeras tragédias quotidianas
ou do miar moribundo
do gato no telhado.

Que seja capaz de rasgar
o destino à dentada
de reduzir o medo a migalhas
desenhar uma toalha
e fazer um festim.
Uma mulher com cócegas da religião
que saiba desde sempre
do nosso encontro fatal
mas que creia
só no acaso.

Que seja à uma
sonho e lembrança
que chegue com o sorriso em ponto
do meio-dia
e com a alegria
imprecisa de um rouxinol
- que saiba, como se sabe nos livros -
que o amor romântico é uma mentira
sobre um castelo de cartas
- mas que intua, como se intui nos sonhos -
que juntos podemos ser simplesmente felizes.

Uma mulher de vento e espada
de beijo e chama
que quanto mais a prendam
mais se desate
uma mulher de machado de guerra
de acendalha e de lume
que cure as feridas com sal.

Uma mulher com quem tudo se discuta
mas nada se parta
que ao tropeçar dê uma volta
no ar e se ponha a dançar
que invente alavancas
com que mover os outonos
que a língua seja um rio de lava
e a saliva espuma do mar.

Uma mulher que as pernas inspirem os dogmas
e seus passos esmaguem um após outro.

Uma mulher que os lábios fabriquem as nuvens
e os beijos não parem de chover.

Uma mulher que as mãos sejam de argila
e suas carícias de água

ou simplesmente uma mulher singela
talvez uma mulher de azul

Busco mulher, para começar
- e nisto só não transijo -
que seja capaz de olhar de frente
estes versos
e não lhes ter medo.

Uma mulher assim, ou nada.

Não penso contentar-me com menos.

(Trad. A.M.)

.

20.4.15

José Cardoso Pires (O Delfim-3)





Pior, mil vezes pior do que a perda real da propriedade é o apagar dos símbolos que ela promovia e que em última consolação ainda o ligavam à Gafeira e ao universo social.

Perdido isso, resta-lhe condensar a sua autocracia no território intramuros, alimentando-se (de quê?) de orgulho, do agudo e feroz orgulho dos enjeitados com passado.

Substitui 'Comunidade', país ou vida social por 'Casa' (os integralistas lusitanos assim fizeram) e nesse reduto muralhado estabelece as relações senhor-servo ao nível da protecção (nunca da troca de serviços) conferindo-lhes um carácter sentimental que as desligue de qualquer vinculação à política de trabalho.

O criado, está lá escrito, é um familiar menor.


JOSÉ CARDOSO PIRES
E agora, José?/ Memória descritiva
(1977)

.

Cristian Aliaga (Os versinhos)





LOS VERSITOS



Los versitos,
esos frascos sin tinta
donde ponemos lo mejor de la memoria.
¿Paredes de iluminación, torres amargas,
palabras solamente?

Pero a quién encomendar nuestra historia,
salvo a estas pequeñas nubes
de espuma.

Os quedaréis ciegos
de tanto cerrar los ojos.

Cristian Aliaga



Os versinhos,
estes frascos sem tinta
onde pomos o melhor da memória.
Muros de iluminação, amargas torres,
palavras somente?

Mas a quem encomendar a história,
senão a estas nuvens pequenas
de espuma?

Heis-de ficar cegos
de tanto cerrar os olhos.

(Trad. A.M.)

.

19.4.15

Marcos Siscar (Reversibilidade de beijos)





REVERSIBILIDADE DE BEIJOS



vou viajar preciso de um beijo
você me diz de um jeito largo
refém da experiência sim já não
é pouco isso de querer dar sem
abrir a boca isso de querer cair
de boca seca no café pingado
sua carne branca seu estômago
fraco recitando sem pensar
uma ocasional filosofia isso de ter
sem querer de me deixar sem
pedir à beira de um zigoto mofo
à beira de um bonde de partir nós
somos irmãos ambos mudos me dê
vou viajar preciso de um beijo


Marcos Siscar

.

18.4.15

Darío Jaramillo Agudelo (Eu podia perfeitamente)





Podría perfectamente suprimirte de mi vida,
no contestar tus llamadas, no abrirte la puerta de la casa,
no pensarte, no desearte,
no buscarte en ningún lugar común y no volver a verte,
circular por calles por donde sé que no pasas,
eliminar de mi memoria cada instante que hemos compartido,
cada recuerdo de tu recuerdo,
olvidar tu cara hasta ser capaz de no reconocerte,
responder con evasivas cuando me pregunten por ti
y hacer como si no hubieras existido nunca.
Pero te amo.

Darío Jaramillo Agudelo



Eu podia perfeitamente riscar-te da minha vida,
não atender o telefone, não te abrir a porta,
não te pensar nem desejar,
não te procurar em lado nenhum,
não tornar a ver-te,
andar nas ruas em que sei que não passas,
apagar da memória cada instante que partilhámos,
cada lembrança da tua lembrança,
esquecer-te a cara até não te reconhecer,
responder com evasivas se me perguntarem por ti
e fazer de conta que nunca exististe.
Mas eu amo-te.

(Trad. A.M.)

.

17.4.15

José Cardoso Pires (O Delfim-2)





Comentador mais que suspeito, sempre que abro 'O Delfim' interrogo-me sobre a sua lógica própria, demando associações internas, sugestões procuradas que resistiram ou não ao tempo, mil coisas.

Para começar, demoro-me no mais à vista, no binómio machismo-paternalismo.

Sublinho-o em várias passagens, vinculado a um conceito de Propriedade e, corolário final, à Morte.

Então ponho-me a alinhar referências nesta folha de papel e em vez da minha caligrafia é a do personagem Narrador que me parece mais ajustada a um trabalho deste tipo, ele que, como se sabe, tem a paixão dos esquemas.


JOSÉ CARDOSO PIRES
E agora, José?/ Memória descritiva
(1977)

.

Begoña Abad (Sabem que estão vivos)





Saben que están vivos
únicamente porque temen la muerte.

No avanzan porque moverse
puede conducirles a ella.

No respiran hondo
porque de ese modo la despistan.

Dicen que están vivos
pero salen de sus tumbas cada día.


Begoña Abad

[Apología de la luz]



Sabem que estão vivos
só porque temem a morte.

Não avançam porque mover-se
pode conduzi-los a ela.

Não respiram fundo
porque assim a despistam.

Dizem que estão vivos
mas saem do caixão cada dia.

(Trad. A.M.)

.

16.4.15

Manuel de Freitas (Weinen)





WEINEN, KLA GEN, SOR GEN, ZA GEN (BWV 12)



A carne é triste, mas eu leio pouco,
menos ainda do que o meu gato,
que talvez desculpe um dia
o indemonstrável possessivo
que escrevi sem muita convicção.

Pode-se fazer tanta coisa, à noite.
Ouvir por exemplo Bach
— o pai — tendo por único
cuidado uma atenção distraída
ao gelo que estala no copo
de vidro indonésio. Sim,
não me parece que eu seja,
para já, «politicamente correcto».

— Ou experimentar o amor,
de novo e sempre o amor,
com frias e esgotadas lágrimas
de lume. E, se o amor não
vem (acontece), posso ir dizê-lo
a ninguém, à porta de bares sombrios,
sem esperar sequer um poema.

Porque nem tudo se escreve,
percebe acordando o gato.
Possa ele também não saber,
neste Inverno, que a carne
é mesmo uma coisa muito triste.


Manuel de Freitas

[Canal de poesia]

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15.4.15

Batania (O morto)





EL MUERTO



Lo que cuesta mantener a un muerto,
lo que gasta en trajes y dentistas,
lo que agota llevarlo a la espalda
de Atocha hasta Argüelles,
si alguien supiera,
el muerto a cuestas,
todos los días,
lo que cansa vestir
los zapatos del muerto,
las camisas del muerto,
la bufanda del muerto,
si alguien me oyera,
cómo me suena el muerto,
cómo me llora,
cómo me roe,
cómo me grita
a trueno y rompepierna,
cómo me paso las noches
sin hacer un verso
porque no quiere el muerto,
porque no me sabe,
porque no se le ocurre,
no se me inspira,
si alguien entendiera,
lo que cuesta decir
sin pasar por loco
que mi padre vivió
sesenta y siete años
como un jilguero de nieve,
ningún clavo, ninguna tuerca,
ninguna mancha,
si alguien creyera,
y desde que vive
muerto
me obliga y me retuerce,
me ordena y me llama el muerto,
me apunta y me requiere,
siete años ya,
si alguien pudiera...

Batania

[Quien siembra vientos]



O que custa manter um morto,
o que ele gasta em fatos e dentista,
o que não cansa levá-lo às costas
de Atocha até Arguelles,
se alguém soubesse,
o morto às costas,
todos os dias,
o que cansa pôr
os sapatos do morto,
as camisas do morto,
o lenço do morto,
se alguém me ouvisse,
como o morto me canta,
como me chora,
como me rói,
como me grita
com estrondo e quebra-pernas
como passo as noites
sem fazer um verso
porque o morto não quer,
porque não me sabe,
porque não lhe ocorre,
não me inspira,
se alguém entendesse
o que custa dizer,
sem passar por louco,
que meu pai viveu
sessenta e sete anos
como um pintassilgo de neve
sem um cravo, sem uma porca,
sem uma mancha,
se alguém acreditasse,
e desde que vive
morto
me obriga e retorce,
me ordena e me chama o morto,
me convoca e requer,
sete anos já,
se alguém pudesse...

(Trad. A.M.)

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14.4.15

José Cardoso Pires (O Delfim-1)





Bem perto daqui, no condado apócrifo da Gafeira, há um homem que se inventa quotidianamente para iludir a morte.

Vive entre fumos - fumos da História e não só: a lagoa onde habita desperta todas as manhãs envolta em vapores dos pântanos e por cima tem mais fumo, uma sagração de nuvens.

Nos restos daquele império, que não passa de um amontoado de casebres, um cavername do passado, reúnem-se os descendentes dos velhos servos, mas estão todos à volta de enguias que se contorcem nas brasas: a fumegar.

E a tremular no fumo, ele, o homem que se inventa.

Falo, como é bem de ver, de Tomás Manuel da Palma Bravo, o Delfim.


JOSÉ CARDOSO PIRES
E agora, José?/ Memória descritiva
(1977)

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Antonio Orihuela (Anarquistas e pirilampos)





ANARQUISTAS Y LUCIÉRNAGAS



A veces creo que las luciérnagas somos nosotros,
una especie en peligro de extinción,
escasos, intermitentes, estacionales,
feos como una gamba

pero en la noche oscura
brillantes

y ahí.

Antonio Orihuela



Às vezes julgo que os pirilampos somos nós,
uma espécie em risco de extinção,
poucos, intermitentes, sazonais,
feios como uma gamba

mas brilhando
no escuro da noite

e aí.


(Trad. A.M.)

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13.4.15

Louise Glück (Uma fantasia)





A FANTASY



I’ll tell you something: every day
people are dying. And that’s just the beginning.
Every day, in funeral homes, new widows are born,
new orphans. They sit with their hands folded,
trying to decide about this new life.
Then they’re in the cemetery, some of them
for the first time. They’re frightened of crying,
sometimes of not crying. Someone leans over,
tells them what to do next, which might mean
saying a few words, sometimes
throwing dirt in the open grave.
And after that, everyone goes back to the house,
which is suddenly full of visitors.
The widow sits on the couch, very stately,
so people line up to approach her,
sometimes take her hand, sometimes embrace her.
She finds something to say to everybody,
thanks them, thanks them for coming.
In her heart, she wants them to go away.
She wants to be back in the cemetery,
back in the sickroom, the hospital. She knows
it isn’t possible. But it’s her only hope,
the wish to move backward. And just a little,
not so far as the marriage, the first kiss.


Louise Glück

[Sibilas y pitias]



Vou dizer-te uma coisa, todos os dias
morre gente. E não é tudo:
todos os dias, nas funerárias, nascem viúvas
e órfãos. Sentam-se, de mãos dadas,
para decidir da nova vida,
depois vão ao cemitério, alguns
a primeira vez. Têm medo de chorar,
e de não chorar, por vezes. Alguém se curva,
diz-lhes o que fazer a seguir, pronunciar
umas palavras, por exemplo, ou atirar
um punhado de terra sobre o caixão.
E depois voltam todos para casa,
cheia de repente de visitas,
a viúva sentada no sofá, muito importante,
as pessoas em fila, aproximando-se,
umas para lhe tomar a mão, outras para abraçá-la.
Ela tem algo para dizer a todos, agradecendo
a presença de cada um, mas o que quer no fundo
é que vão embora. Gostaria de voltar
ao cemitério, ao quarto do falecido, ao hospital,
mas sabe que é impossível. Em todo o caso,
é a sua esperança, esse desejo de voltar atrás.
Um pouco, só, sem ir ao dia do casamento,
ou do primeiro beijo.

(Trad. A.M.)

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12.4.15

Ángel González (Estes poemas)





ESTOS POEMAS



Estos poemas los desencadenaste tú,
como se desencadena el viento,
sin saber hacia dónde ni por qué.
Son dones del azar o del destino,
que a veces
la soledad arremolina o barre;
nada más que palabras que se encuentran,
que se atraen y se juntan
irremediablemente,
y hacen un ruido melodioso o triste,
lo mismo que dos cuerpos que se aman.


Ángel González




Estes poemas libertaste-los tu,
como se liberta o vento,
sem saber onde nem porquê.
São dons do acaso ou do destino
que a solidão às vezes
enredemoinha ou varre;
palavras apenas que se encontram,
que se atraem e juntam
irremediavelmente,
fazendo um ruído melodioso ou triste,
tal como dois corpos no amor.


(Trad. A.M.)

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11.4.15

José Cardoso Pires (Paris)





Cidade de porteiras agressivas, cada bairro sua aldeia, posta-restante dos resistentes de todos os países - não há como Paris para abrigar o exilado, nem estação mais outonal para a sua melancolia.

Ama-o cruelmente.

Umas vezes bate-se por ele, outras, 'nous ne sommes pas en république, quoi', explora-o.

Isola-o até ao desespero.


JOSÉ CARDOSO PIRES
E agora, José?/ Um homem de perfil
(1977)

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Antonio Gala (E eras tu a lua)





Y la luna eras tú.
Una luna creciente, blanca, fría.
Mirabas hacia el mar y hacia las cosas
que no eran yo.
Y con cuánto silencio te gritaba
-creciente, blanco, frío yo también:
«Mírame, mírame,
ay, mírame mirarte...»


Antonio Gala



E eras tu a lua,
uma lua crescente, branca, fria.
Olhavas para o mar e para as coisas
que não eram eu.
E com o silêncio eu te gritava
- também eu crescente, branco, frio:
“Olha pra mim, olha pra mim,
ai, olha eu a olhar para ti...”


(Trad. A.M.)

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10.4.15

Manuel Bandeira (Poética)





POÉTICA



Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expedien-
te protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicioná-
rio o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de
si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes ma-
neiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos ‘clowns’ de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


Manuel Bandeira

[Poemas de Bandeira]

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9.4.15

Ana Pérez Cañamares (Fé)





FE



Hay días en que lo cierro
todo: corazón, puerta, boca
alma bajo siete llaves.

Otros, a propósito dejo
el bolso abierto
la palabra en la piel
las tripas al aire
sólo para llegar a casa
y observar con alegría
que no me falta nada
que me defiende la fe
eficiente como un arma.


ANA PÉREZ CAÑAMARES
Alfabeto de cicatrices
Baile del Sol (2010)

[Aragna dos signos]




Há dias em que fecho tudo,
coração, porta, boca, alma,
a sete chaves.

Outros, deixo de propósito
a bolsa aberta
a palavra na pele
as tripas ao ar
só para chegar a casa
e ver com alegria
que não me falta nada,
que a fé me defende.
Como uma arma.

(Trad. A.M.)

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8.4.15

José Cardoso Pires (Um homem de perfil)





Sentado na Place de la Sorbonne, sentado e em perfil de pássaro, é como ainda hoje o vejo.

Nada a mais naquele vulto esgarçado; nem frases de circunstância nem sorrisos; menos ainda o gesto nulo, a redundância, porque tudo nele, paisagem, frase, alimento, tinha um valor substantivo.

Lembrava um tronco só lenho, fincado na terra árida.

Por terra árida entenda-se o lado difícil da natureza, o partido urgente - doenças e expatriações.

A solidão.

O sentido vigilante do convívio, principalmente isso: poucas pessoas conheci até agora que tivessem sofrido com semelhante orgulho e com tamanho silêncio de si próprias, e poucas, raríssimas, capazes de tantas fidelidades debaixo da frase seca e da aparência alheada.


JOSÉ CARDOSO PIRES
E agora, José?/ Um homem de perfil
(1977)

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Darío Jaramillo Agudelo (Um amor impossível)





Un amor imposible es el más feliz de los amores.
O puede serlo.
Basta que creas que es posible un amor imposible
y esto hará la felicidad del amor imposible.
Puede que seas el amor imposible de tu amor imposible.
Pero esto es un milagro.

Darío Jaramillo Agudelo



Um amor impossível é o mais feliz dos amores.
Ou pode sê-lo,
basta teres por possível o amor impossível
e isso fará a felicidade do amor impossível.
Podes até ser o amor impossível do teu amor impossível.
Mas isso é um milagre.

(Trad. A.M.)



>>  A media voz (56p) / Circulo de poesia (15p) / Festival de Medellin (10p) / Wikipedia

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7.4.15

Manuel António Pina (Se existisses)





Se existisses, serias tu,
talvez um pouco menos exacta,
mas a mesma existência, o mesmo nome, a mesma morada.

Atrás de ti haveria
as mesmas duas palmeiras, e eu estaria
sentado a teu lado como numa fotografia.

Entretanto dobrar-se-ia o mundo
(o teu mundo: o teu destino, a tua idade)
entre ser e possibilidade,

e eu permaneceria acordado
e em prosa, habitando-te como uma casa
ou uma memória.


Manuel António Pina

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6.4.15

Amalia Bautista (Ela)





ELLA



Ella también soy yo. Aunque no quiera,
aunque ninguna de las dos queramos,
somos una y la misma. Pero ella me traiciona
cuando escribe por mí, cuando no se conforma,
cuando lo quiere todo.
Ella es la de las lágrimas de rabia,
la que nunca te besa con mis labios.


Amalia Bautista

[Lifevest under your seat]



Ela sou eu também. Mesmo sem querer,
mesmo não querendo uma nem outra,
somos uma só e a mesma. Mas ela trai-me
quando escreve por mim, quando não se conforma,
quando quer tudo.
Ela, a das lágrimas de raiva,
a que nunca te beija com meus lábios.

(Trad. A.M.)

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5.4.15

Manoel de Barros (O fotógrafo)





O FOTÓGRAFO



Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa. Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei sobre. Foi difícil fotografar sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia
de braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros


[Poemblog]

>>  YouTube

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4.4.15

Juan Vicente Piqueras (Ela e eu)





ELLA Y YO



Ella lee libros de yoga, de budismo, de numerología.
Yo leo poesía, teatro, ensayos, novelas, todo
lo que cae en mis manos.

Ella es vegetariana.
Yo, omnívoro.

Ella es disciplinada, ascética, creyente.
Yo, escéptico y perezoso.

Ella cree en la reencarnación de las almas.
Yo soy agnóstico.

Ella está segura.
Yo, no.

Ella es presente de indicativo.
Yo, condicional en mis mejores días
y en los peores pretérito
pluscuamperfecto de subjuntivo.

Ella es un hombre de acción.
Yo, una mujer confundida.

Ella quiere que yo cambie.
Yo, también.

Ella sabe lo que quiere y lo que necesita
y lo que quiero y necesito yo.
Yo sólo sé que no sé nada
pero no estoy muy seguro.

Ella es la luna de día.
Yo, un girasol en la noche.

Ella y yo, contra viento y marea,
nos amamos.


Juan Vicente Piqueras



Ela lê livros de ioga, budismo, numerologia.
Eu leio poesia, teatro, ensaio, romance, tudo
o que me vem à mão.

Ela é vegetariana.
Eu, omnívoro.

Ela é disciplinada, ascética, crente.
Eu, céptico e preguiçoso.

Ela crê na reencarnação.
Eu sou agnóstico.

Ela está segura.
Eu, não.

Ela é presente do indicativo.
Eu, condicional nos dias bons,
nos maus pretérito
mais que perfeito do conjuntivo.

Ela é um homem de acção.
Eu, uma mulher confusa.

Ela quer que eu mude.
Eu, também.

Ela sabe o que quer e precisa
e o que quero eu e preciso.
Eu só sei que não sei nada
mas não estou muito certo.

Ela é a lua de dia.
Eu, um girassol de noite.

Ela e eu, contra ventos e marés,
amamo-nos.

(Trad. A.M.)

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3.4.15

Luís Quintais (Nuvens)





NUVENS



A metafísica será talvez
uma indisposição que se quer passageira.

Porém, eu continuo a inquietar-me
com as nuvens que são arrastadas,

violentamente arrastadas, na direcção sudeste,
filtrando a luz do sol em obsessiva correria.


Luís Quintais

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2.4.15

Álvaro Valverde (Desterro)





DESTIERRO



No es preciso partir para sentirse
un desterrado, un extranjero. Basta
con apartarse un poco de los otros,
con no participar de sus costumbres,
con ejercer sin más de solitario
por mucho que te arrastre esa marea
de pequeñas o grandes multitudes.

Siguiendo a Erri de Luca,
la vida para alguien puede ser
exilio sin viaje en un lugar.

Ir por libre, sin club o cofradía,
acarrea un destierro inevitable.
Como el de un perseguido. No lo dudes,
sin salir de este sitio en el que vives
solo eres la sombra de un extraño.


ÁLVARO VALVERDE
Plasencias
(2013)

[Miradas]




Não é preciso partir para sentir-se
desterrado, estrangeiro. Basta
afastar-se um pouco dos outros,
não comungar dos costumes,
exercer sem mais de solitário
por muito que te arraste a maré
de pequenas ou grandes multidões.

Seguindo Erri de Luca
a vida pode ser para alguém
um exílio sem viagem num lugar.

Viver livre, sem clube nem confraria,
acarreta um desterro inevitável.
Como o de um perseguido. Não duvides,
sem sair deste sítio em que vives
és apenas a sombra de um estranho.

(Trad. A.M.)

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1.4.15

Luís Filipe Castro Mendes (Para quê poetas)





PARA QUÊ POETAS EM TEMPOS DE INDIGÊNCIA?



Levantar a gola do casaco,
esconder os punhos da camisa já puídos
e defender, com os dentes cerrados, as palavras:
mas quem aguenta mais este murmúrio vão,
que não colhe mais as flores do mal nem a luz
radiosa na própria miséria?
Resistir, como sempre fizeram os humilhados.
Decorar palavras antigas.
Repeti-las, para que não sejam esquecidas,
aos vindouros.


LUÍS FILIPE CASTRO MENDES
A Misericórdia dos Mercados
Assírio & Alvim (2014)


[Poema possível]

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