31.3.15

Leonard Cohen (Gostava de ler)





I'd like to read
one of the poems
that drove me into poetry
I can't remember one line
or where to look

The same thing
happened with money
girls and late evenings of talk

Where are the poems
that led me away
from everything I loved

to stand here
naked with the thought of finding thee

Leonard Cohen

[LC-Homepage]



Gostava de ler
um daqueles poemas
que me levaram à poesia
Nem um verso me lembra
nem onde foi

E o mesmo se passa
com o dinheiro as mulheres
e as noitadas de conversa

Onde vão os poemas
que me apartaram
de tudo o que amava

para sobrar aqui
nu com o sonho de Vos achar

(Trad. A.M.)

.

30.3.15

Juan Manuel Roca (Diário da noite)





DIARIO DE LA NOCHE




A la hora en que el sueño se desliza
Como un ladrón por senderos de fieltro
Los poetas beben aguas rumorosas
Mientras hablan de la oscuridad,
De la oscura edad que nos circunda.
A la hora en que el tren tizna la luna
Y el ángel del burdel se abandona a su suerte,
La orquesta toca un aire lastimero.
Una yegua del color de los espejos
Se hunde en la noche agitando su cola de cometa.
¿Qué invisible jinete la galopa?

Juan Manuel Roca




À hora em que o sonho desliza
como um ladrão por carreiros de feltro
os poetas falam da escuridão,
esta escura idade que nos cerca.
À hora em que o comboio tisna a lua
e o anjo do bordel se entrega à sua sorte,
a orquestra toca uma ária chorosa.
Uma égua da cor dos espelhos
afunda-se na noite agitando o rabo de cometa.
Que cavaleiro invisível a montará?

(Trad. A.M.)

.

29.3.15

Louise Glück (Nostos)





NOSTOS



There was an apple tree in the yard
- this would have been
forty years ago - behind,
only meadows. Drifts
of crocus in the damp grass.
I stood at that window:
late April. Spring
flowers in the neighbor's yard.
How many times, really, did the tree
flower on my birthday,
the exact day, not
before, not after? Substitution
of the immutable
for the shifting, the evolving.
Substitution of the image
for relentless earth. What
do I know of this place,
the role of the tree for decades
taken by a bonsai, voices
rising from the tennis courts.
Fields. Smell of the tall grass, new cut.
As one expects of a lyric poet.
We look at the world once, in childhood.
The rest is memory.

Louise Glück




Havia uma macieira no pátio
- há coisa talvez de quarenta anos -
para trás só campos. Ondas
de açafrão sobre a erva húmida.
Pus-me à janela, aí por fins de Abril,
a olhar no pátio do vizinho
as flores da Primavera.
Quantas vezes floresceu
a árvore no dia dos meus anos,
nesse dia exacto, não antes, nem depois?
Substituição do imutável por aquilo
que se transforma, pelo que evolui.
Substituição da imagem pela
terra implacável. O que sei eu
deste lugar, do papel desta árvore
tomada por um bonsai anos a fio,
vozes a vir dos campos de ténis.
Campos, o cheiro da erva alta, cortada de fresco.
Como se espera de um poeta lírico.
Olhamos o mundo uma vez, na infância.
O resto é lembrança.

(Trad. A.M.)


>>  Poetry Foundation (perfil+42p) / Poets (10p) / Wikipedia

.

28.3.15

Antonio Gala (És ainda meu)






Aún eres mío, porque no te tuve.
Cuánto tardan, sin ti,
las olas en pasar...

Cuando el amor comienza, hay un momento
en que Dios se sorprende
de haber urdido algo tan hermoso.
Entonces, se inaugura
-entre el fulgor y el júbilo-
el mundo nuevamente,
y pedir lo imposible
no es pedir demasiado.

Fue a la vera del mar, a medianoche.
Supe que estaba Dios,
y que la arena y tú
y el mar y yo y la luna
éramos Dios. Y lo adoré.


Antonio Gala



És ainda meu, pois não te tive.
E como tardam, sem ti,
as ondas a passar...

Quando amor começa, há um instante
em que Deus se espanta
de urdir algo tão belo.
Então, entre o fulgor e o júbilo,
cria-se o mundo de novo,
e pedir o impossível
não é pedir demasiado.

Foi à beira do mar, à meia-noite.
Estava Deus lá,
e a areia e tu
e o mar e eu e a lua
éramos Deus. E adorei.


(Trad. A.M.)



>>  Antonio Gala (sítio of.) / Poetas andaluces (44p) / A media voz (41p) / Fundacion A.G. / Wikipedia

.

27.3.15

José Miguel Silva (Tudo coisas mortais)





TUDO COISAS MORTAIS PARA A POESIA



A casa, o lume, o sono dobrado
do corpo feliz, a cesta de figos,
a curva do rio, a fotografia
no cimo do monte, a veracidade
das glicínias, o rosto da mãe,
a fava no bolo, o trunfo de copas,
o filme da tarde, a música nova,
o rasto da chuva por entre os pinheiros,
as aves que voltam, os dias que passam
perto de nós.


José Miguel Silva

[Arquivo de cabeceira]

.

26.3.15

Alfredo Buxán (Enquanto puderes)





ENQUANTO PUDERES



Deixa que cada coisa, lentamente,
encontre seu amparo nas paredes
desta casa que começa a conhecer-te
pelo tom da voz e pelas pisadas
de pássaro na carpete, pela roupa
em seu canto à espera da madrugada,
pela penumbra cálida de um saxe
à meia-noite, pelo sono frágil também.
Cuida-a com tuas mãos cada dia
e escuta o que escreve em silêncio
cada objecto: nada é definitivo.
Agradece à idade este presente,
sê feliz sem deixar de ser tu mesmo
enquanto puderes. Lembra o medo
que passaste em tantos anos
de enganosa solidão. Lembra
tudo: o mar, o nome dos teus,
as mulheres e o cansaço infinito
de buscar uma luz por entre a bruma.
Não duvides mais, aceita que não é tarde
e que chegou a hora de um inventário
sossegado: tens aquilo que anelavas.
Talvez porque nada já necessitas
que se possa comprar com a mentira.
Não dês um passo atrás, não te rendas
nem renuncies tão pouco ao silêncio
que te trouxe, fiel, o primeiro verso
até à beira mesma desta casa
que começa - dá-lhe tempo - a ser tua.


ALFREDO BUXÁN
Las Palabras Perdidas
(Poesía 1989-2008)
Bartleby Editores (2011)

(Trad. A.M.)


.

25.3.15

Jorge Sousa Braga (De novo o silêncio)





DE NOVO O SILÊNCIO



O silêncio é como se fosse água.
Daquela água pura da montanha
que se bebe directamente
pelo coração.


Jorge Sousa Braga

.

24.3.15

Alfonso Brezmes (Amor e mitologia)





AMOR Y MITOLOGÍA



Y luego, cuando el tiempo se detenga
como un perro ante el umbral
que da paso al cuarto de su amo,
y un lento veneno se deslice
por las arterias del mundo,
yo seré tus sábanas blancas,
la desgastada almohada que te escucha,
el invisible vaso que al dormirte
olvidas cada noche en la mesilla.
Y en tu dulce intimidad me iré colando,
como un oscuro dios menor que sabe
que todo es posible en los sueños.
Hasta nosotros mismos.

Alfonso Brezmes



E depois, quando o tempo se detiver
como um cão diante do umbral
à porta do quarto do dono,
e um veneno lento correr
nas artérias do mundo,
eu serei o teu lençol branco,
a travesseira gasta que te escuta,
o copo invisível que ao adormecer
esqueces sempre na mesinha.
E hei-de colar-me na tua intimidade,
como obscuro deus menor que sabe
que tudo é possível no sonho.
Até nós mesmos.

(Trad. A.M.)

.

23.3.15

Jorge de Sena (Ode à incompreensão)





ODE À INCOMPREENSÃO



De todas estas palavras não ficará, bem sei,
um eco para depois da minha morte
que as disse vagarosamente pela minha boca.
Tudo quanto sonhei, quanto pensei, sofri,
ou nem sonhei ou nem pensei
ou apenas sofri de não ter sofrido tanto
como aterradamente esperara
- nenhum eco haverá de outras canções
não ditas, guardadas nos corações
alheios, ecoando abscônditas ao sopro do poeta.

Não por mim. Por tudo o que, para ecoar-se,
não encontrou eco. Por tudo o que,
para ecoar, ficou silencioso, imóvel
- isso me dói como se ausência a música
não tocada, não ouvida, o ritmo suspenso,
eminente, destinado, isso me dói
dolorosamente, amargamente, na distância
do saber tão claro, da visão tão lúcida,
que para longe afasta o compassado ardor
das vibrações do sangue pelos corpos próximos.

Tão longe, meu amor, te quis da minha imperfeição,
da minha crueldade, desta miséria de ser por intervalos
a imensa altura para que me arrebatas
- meu palpitar de imagem à beira da alegria,
meu reflexo nas águas tranquilas da liberdade imaginada -
tão longe, que já não meus erros regressassem
como verdade envenenando o dia-a-dia alheio.

Tão longe, meu amor, tão longe,
quem de tão longe alguma vez regressa?!

E quem, ó minha imagem, foi contigo?

(De mim a ti, a mim,
quem de tão longe alguma vez regressa?)


Jorge de Sena

[Tim Tim no Tibet]

.

22.3.15

Juan Vicente Piqueras (Advérbios)





ADVERBIOS DE LUGAR



Aquí es donde estoy yo. Esté donde esté
yo siempre estoy aquí donde me ves.
Esta casa, estas caras, estas cosas
cansan, porque aquí cansa.
Aquí hace sed de irse, sed de allí.
Pero allí es el lugar donde jamás podré estar,
donde yo soy imposible. Vaya adonde vaya,
allá donde yo llegue será aquí
y estaré ya esperándome a mí mismo
con un ramo de rosas iguales en la mano.
Ahí es tu aquí.
Ahí parece un grito porque es donde te duele.
Yo quiero estar ahí, donde estás tú,
tú aquí o, mejor, los dos allí, remotos, juntos
porque lo vivo es lo junto.
Ahí hay el amor que no hay aquí.
Esas cosas tocadas por tus manos,
eso que piensas, dices, callas, sueñas,
esos lugares donde estás sin mí,
eso deseo, eso necesito.
Y ser tu ahí, tu aliento intercalado.
Allí es la salvación, el espejismo
nacido de la sed de estar aquí.
Allí sí que seríamos felices,
donde tu aquí y mi ahí estarían juntos,
comerían perdices que no existen.
Allí es la lluvia aquella
que cae sobre este páramo sediento.
Allí es Jauja, el Dorado. No hay palabras
que puedan dar idea de aquel sitio.
Las palabras son éstas, nunca aquéllas.

Yo estoy aquí y tú ahí y allá nosotros cuándo.
Esto es piedra. Eso es seda. Aquello es mar.
Aquí, hogar imposible, íntima ausencia,
odiado domicilio, cárcel del cada día.
Ahí, calor del tú, tu vida mía,
tesoro de tu isla, aire de amor.
Allí, donde no estamos, llueve sobre la vida
que nunca será nuestra y nos aguarda.

Juan Vicente Piqueras



Aqui é onde eu estou. Esteja onde estiver
eu estou sempre aqui onde me vês.
Esta casa, estas caras, estas coisas
cansam, porque aqui cansa.
Aqui há sede de ir, sede de ali.
Mas ali é o lugar onde jamais poderei estar,
onde eu sou impossível. Vá onde for,
lá onde eu chegue será aqui
e estarei à espera de mim mesmo
com um ramo de rosas na mão.
Aí és tu aqui.
Aí parece um grito por ser onde te dói.
Eu quero estar aí, onde tu estás,
tu aqui, ou melhor, os dois ali, remotos, juntos
porque a vida é junto.
Aí há o amor que não há aqui.
E essas coisas tocadas por tuas mãos,
o que pensas, dizes, calas, sonhas,
esses lugares onde existes sem mim,
é isso o que desejo, o que preciso.
E ser o teu aí, teu sopro intermitente.
Ali é a salvação, a miragem
nascida da sede de estar aqui.
Ali sim seríamos felizes,
onde se juntariam o teu aqui e o meu aí,
a comer perdizes que não existem.
Ali é a chuva, essa
que cai neste campo sedento.
Ali é Jauja, o Eldorado. Não há palavras
para dar uma ideia de tal sítio.
As palavras são estas, jamais aquelas.

Eu estou aqui e tu aí e nós além quando.
Isto é pedra, isso seda, aquilo mar.
Aqui, lar impossível, íntima ausência,
odiado domicílio, prisão do dia-a-dia.
Aí, calor do tu, tu vida minha,
tesouro da ilha tua, ar de amor.
Ali, onde não estamos, chove sobre a vida
que nunca será nossa e nos aguarda.


(Trad. A.M.)



>>  JVP (sítio) / Círculo de poesia (8p) / Wikipedia

.

21.3.15

João Guimarães Rosa (Tentativa)





TENTATIVA



Manhã básica, alcalina,
neutralizando a gota ácida do sol.
O tornassol do céu, no fundo
do grande tubo de ensaio,
vai se espessando, cada vez mais azul.

Dos poços da marna alagada,
cheios, como frascos chatos sem gargalos,
sobem vapores alvacentos.
A pressão calca cinco atmosferas,
e o calor cresce,
nas alavancas de pirômetros negros,
dilatando as sombras.

Rápida,
uma revoada triangular de periquitos
estraleja e crepita,
flambada em alça enorme de platina,
como o fio de chama, fugidio e verde,
de um sal de boro…

Quanto esforço da manhã,
para riscar tão alto,
um corisco de esperança…


João Guimarães Rosa

.

20.3.15

Laia Noguera (Falaria de ti como um triunfo)





Hablaría de ti como un triunfo.
Como una banda de música.
Pero hay grietas en las paredes.
Por eso te cojo la mano.
Éste es el regalo.


Laia Noguera

[Emma Gunst]




Falaria de ti como um triunfo.
Como uma banda de música.
Mas há gretas nas paredes.
Por isso te dou a mão.
É este o presente.

(Trad. A.M.)

.

19.3.15

Inês Dias (Menina calçando a meia)





MENINA CALÇANDO A MEIA



Não te mexas.

O futuro é perder o equilíbrio,
cair até bater no fundo
de uma insónia hora a hora
interrompida para respirar
à superfície da luz.

Não te mexas, ainda.

Não hesites, não assustes o sonho
pousado em teia sobre ti,
não agites as águas.
E talvez a vida se deixe
ficar à margem
com os seus dias armados de pedras.


Inês Dias

[Arquivo de cabeceira]

.

18.3.15

Jorge Teillier (Para falar com os mortos)





Para hablar con los muertos
hay que elegir palabras
que ellos reconozcan tan fácilmente
como sus manos
reconocían el pelaje de sus perros en la oscuridad.
Palabras claras y tranquilas
como el agua del torrente domesticada en la copa
o las sillas ordenadas por la madre
después que se han ido los invitados.
Palabras que la noche acoja
como los pantanos a los fuegos fatuos.
Para hablar con los muertos
hay que saber esperar:
ellos son miedosos
como los primeros pasos de un niño.
Pero si tenemos paciencia
un día nos responderán
con una hoja de álamo atrapada por un espejo roto,
con una llama de súbito reanimada en la chimenea
con un regreso oscuro de pájaros
frente a la mirada de una muchacha
que aguarda inmóvil en un umbral.

Jorge Teillier



Para falar com os mortos
há que escolher palavras
que eles reconheçam tão fácil
como as mãos
reconheciam o pelo de seus cães no escuro.
Palavras claras e tranquilas
como a água da corrente domesticada no copo
ou as cadeiras arrumadas pela mãe
depois de os convidados saírem.
Palavras que a noite acolha
como a noite aos fogos-fátuos.
Para falar com os mortos
há que saber esperar,
eles são medrosos
como os primeiros passos da criança.
Mas se tivermos paciência
um dia respondem-nos
com uma folha de álamo agarrada num espelho partido,
com uma chama de súbito acesa na chaminé
com o regresso dos pássaros
face ao olhar de uma rapariga
aguardando imóvel no traço da porta.

(Trad. A.M.)

.

16.3.15

Juan Manuel Roca (Poema invadido por romanos)





POEMA INVADIDO POR ROMANOS



Los romanos eran maliciosos.
Llenaron Europa de ruinas
confabulados con el tiempo.
Les interesaba el futuro,
las huellas más que las pisadas.
Los romanos, Casandra, eran mañosos.
No fraguaron el Acueducto de Segovia
como un ducto de agua y de luz.
Lo pensaron como vestigio,
como un absorto pasado.
Sembraron de edificios roñosos Europa,
de estatuas acéfalas
engullidas por la gloria de Roma.
No hicieron el Coliseo
para que los tigres devoraran
a su antojo a los cristianos,
tan poco apetecibles,
ni para ver ensartadas
como entremeses del infierno
a las huestes de Espartaco.
Pensaron su ruina, una ruina proporcional
a la sombra mordida del sol que agoniza.
Mi amigo Dino Campana
pudo haber saltado a la yugular
de uno de sus dioses de mármol.
Los romanos dan mucho en qué pensar.
Por ejemplo,
en un caballo de bronce
de la Piazza Bianca.
Al momento de restaurarlo,
al asomarse a su boca abierta,
encontraron en el vientre
esqueletos de palomas.
Como tu amor,
que se vuelve ruina
mientras más lo construyo.
El tiempo es romano.

Juan Manuel Roca




Os romanos eram maliciosos.
Encheram a Europa de ruínas
conjurados com o tempo.
Interessava-lhes o futuro,
os traços mais do que as pegadas.
Os romanos, Cassandra, eram manhosos.
Não imaginaram o Aqueduto de Segóvia
como uma conduta de água e de luz.
Pensaram-no como vestígio,
como um absorto passado.
Semearam de edifícios musgosos a Europa,
de estátuas acéfalas
engolidas pela glória de Roma.
Não fizeram o Coliseu
para que os tigres devorassem
por capricho seu os cristãos,
tão pouco apetecíveis,
nem para ver trespassados
como aperitivos do inferno
os exércitos de Espártaco.
Pensaram a sua ruína, uma ruína proporcional
à sombra mordida pelo sol que agoniza.
O meu amigo Dino Campana
poderia ter saltado à jugular
de um dos seus deuses de mármore.
Os romanos dão muito em que pensar.
Por exemplo,
num cavalo de bronze
da Piazza Bianca.
No momento de o restaurar,
ao assomarem à boca aberta,
encontraram no ventre
esqueletos de pombas.
Como o teu amor,
que se torna ruína
quando mais o construo.
O tempo é romano.

(Trad. Nuno Júdice)

[Bibliotecário de Babel]




>>  Arte poetica (8p) / Poemas del alma (11p) / Antonio Miranda (5p) / Antologia critica (perfil HAT) /
Wikipedia

.

15.3.15

Gonçalo M. Tavares (Eu não quero mudar o mundo)





EU NÃO QUERO MUDAR O MUNDO



Eu não quero mudar o mundo.
Não tenho tempo para isso.
Quem quer mudar o lugar do mundo actua
como quem muda o lugar de um móvel:
empurra primeiro para um lado,
foi força demais,
empurra então para o outro lado,
agora com força de menos,
depois mais um pequeno toque para lá
e um ainda mais pequeno toque para lá,
e agora sim:
o móvel está no lugar.
Depois abrimos o móvel e vemos que os copos que estavam
lá dentro se encontram todos partidos. Estão a ver?

Os copos todos partidos. Que aborrecimento.
Não nos lembrámos da fragilidade do vidro.


Gonçalo M. Tavares

[Troca de olhares]

.

14.3.15

Laura Casielles (Primeira conjugação)





PRIMERA CONJUGACIÓN



Encontrar las palabras
elementales. Aprender
cómo decir 'perdón' en el idioma del que irrumpe,
y 'buenos días', y 'toma',
y 'he venido a conocerte', aprender
cómo decir 'gracias' en el idioma
de los que también rasgan
y también
se desgarran,
cómo decir
'café', 'cariño', 'patria',
'shalom', 'salam aalaikum', aprender
cómo se dice 'pasa', 'entra', 'esta es mi casa'
en un país al sur del que apenas
quedan ruinas, aprender
'obrigada', 'spasiba', aprender
qué colores no existen en las lenguas de África.
Y cómo responder que sí en Pekín.
Llegar a las ciudades y descubrir
los entresijos del mercado,
entender,
aprender
cuál es en cada tierra
la etimología de alma, y de qué modo
saludaban al miedo mis bisabuelos.

Encontrar las palabras elementales.
Y luego hablar.

Laura Casielles




Encontrar as palavras
elementares. Aprender
a dizer 'perdão' na língua do que irrompe,
e ‘bom dia’, e ‘toma’,
e ‘prazer em conhecer’, aprender
a dizer ‘obrigado’ na língua
dos que rompem também
e também se rasgam,
como dizer ‘café’, ‘querido’, 'pátria’,
‘shalom’, ‘salam aalaikum’, aprender
como se diz ‘passa’, ‘entra’, ‘olha a minha casa’,
num país do sul de que apenas
restam ruínas, aprender
‘obrigada’ ‘spasiba’, aprender
que cores é que não existem nas línguas africanas.
E como responder que sim em Pequim.
Chegar às cidades e descobrir
os arcanos do mercado,
entender,
aprender
em cada terra
qual a etimologia de ‘alma’ e de que modo
é que os bisavós saudavam o medo.

Encontrar as palavras elementares.
E depois falar.


(Trad. A.M.)

.

13.3.15

Francisco Rodrigues Lobo (Como passarei sem ponte?)





(Mote)

Vai o rio de monte a monte,
Como passarei sem ponte?



(Voltas)

É o vau mui arriscado,
só nele é certo o perigo;
O tempo como inimigo
tem-me o caminho tomado.
Num monte está meu cuidado,
e eu, posto aqui noutro monte,
como passarei sem ponte?

Tudo quanto a vista alcança
coberto de males vejo:
D'aquém fica meu desejo
e d'além minha esperança.
Esta, contínua, me cansa
porque está sempre defronte:
Como passarei sem ponte?


Francisco Rodrigues Lobo

[Poemas & poetas]

.

12.3.15

Jorge Riechmann (Alabanza sucinta)





ALABANZA SUCINTA DE LA ENAMORADA




Cada vez que me miras
nazco en tus ojos.



Jorge Riechmann

.

11.3.15

Francisco Alvim (Um homem)

 




UM HOMEM



De regresso ao mundo e a meu corpo
As estradas já não anoitecem à sombra de meus gestos
nem meu rastro lhes imprime qualquer destino
Sou a água em cuja pele os astros se detêm
A pedra que conforma o bojo das montanhas
O voo dos ares


Francisco Alvim

.

10.3.15

Jorge M. Molinero (Pátria)





PATRIA



En más de mil poemas,
más de mil definiciones de
Patria.

He aquí la mía:

mi Patria soy yo. Y
cada vez que me veo
en un espejo,
deseo el exilio
o la independencia.

Jorge M. Molinero



Em mais de mil poemas,
mil ou mais definições de
Pátria.

Eis a minha:

minha Pátria sou eu. E
cada vez que me vejo
ao espelho,
reclamo o exílio
ou a independência.

(Trad. A.M.)

.

9.3.15

Fernando Pessoa (A morte é a curva da estrada)





A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.


A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.



Fernando Pessoa

.

8.3.15

Laia Noguera (Amo a vida pequenina)





Amo la vida pequeña,
sentarse en la entrada
para ver cómo pasa la gente,
cómo se mueve un gorrión,
cómo se inclina la tarde
en las casas del cuerpo.

Ya sé que moriré
mucho antes de que hayan muerto
los árboles que quiero.

Pero no me preocupa nada,
porque en el instante
en que se me rompa el último hilo
seré sólo aquella mujer
que se sentaba en la entrada
para mirar simplemente
y ser hoja y raíz.


Laia Noguera Clofent

[Emma Gunst]




Amo a vida pequenina,
sentar-me à porta de casa,
a ver passar as pessoas,
um pardal a mover-se,
a tarde declinando
nas casas do corpo.

Bem sei que hei-de morrer
muito antes de morrerem
as árvores a que quero.

Mas não me preocupa nada,
porque no instante
em que se partir o fio derradeiro
serei apenas aquela mulher
que se sentava à porta de casa
para observar simplesmente
e ser folha e raiz.

(Trad. A.M.)



>>  Laia Noguera (blogue) / Facebook / Poetica crapulistica (3p)

.

7.3.15

Eugénio de Andrade (Despedida)





DESPEDIDA



Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.


Eugénio de Andrade

.

6.3.15

José Hierro (Com tristeza e esperança)





CON TRISTEZA Y ESPERANZA



Demasiado amor fue aquél
-olvidamos que somos criaturas mortales,
seres de mar y viento, de nube y piedra y hoja.
Demasiado amor. Nos dimos vida
como quien va a morir un instante después.
Y estamos condenados a vivir,
muriendo poco a poco,
de una manera dolorosa y sin grandeza.
Te busco a veces con desesperación,
pongo mi oído en el papel que tu me escribes.
Una vez mas parece que descanso
sobre tu pecho - acaso no comprendas
el niño que hay en mí. Pecho o papel
palpitan cuando los escucho,
hacen sonar la vida que te di,
la vida y muerte que me diste.
Con furia y con amor lejano me golpea
este papel -pecho quise decir.
Trata de destruir el tiempo.
Sobre su ruina edifica el amor,
un amor hecho de esperanza,
no de alma y cuerpo unidos, como ayer.
Me dice que no puede morir nada que fue,
nada tan lleno de sentido, me dice.

Demasiado amor aquél.
Poco para llenar toda una vida,
suficiente cuando pensamos
que este momento es un silencio,
un abismo entre orillas
lleno aún del aroma del amor,
de su recuerdo vivo, de la seguridad
– a qué vivir, si no - de que un día la vida
desplegará otra vez - no sé si fugazmente, pero basta -
ante nosotros sus mágicos colores.

José Hierro

[Lifevest under your seat]




Demasiado amor foi aquele
- esquecemos que somos mortais,
seres de vento e mar, de pedra e nuvem e folha.
Amor demasiado. Demo-nos vida
como quem vai morrer logo a seguir.
E estamos condenados a viver,
morrendo pouco a pouco,
dolorosamente, sem grandeza.
Busco-te às vezes em desespero,
encosto o ouvido na folha que tu me escreves.
Uma vez mais parece que repouso
no teu peito - talvez não entendas
a criança que há em mim. Mas, peito ou
folha de papel, palpitam quando os escuto,
fazendo soar a vida que te eu dei,
assim como a vida e morte que tu me deste.
Com fúria e amor distante bate-me
este papel - digo, peito -
tentando destruir o tempo.
Sobre as ruínas constrói o amor,
um amor feito de esperança,
não de corpo e alma unidos, como ontem.
E diz-me que não pode morrer algo que existiu,
algo, diz-me, tão cheio de sentido.

Demasiado amor aquele,
pouco para encher a vida toda,
bastante se pensarmos
que este momento é um silêncio,
um abismo entre margens
cheio ainda do cheiro do amor,
da sua lembrança viva, da certeza
- e senão para quê viver - de que a vida um dia
abrirá de novo - talvez fugazmente, mas é quanto basta -
diante de nós suas cores de magia.

(Trad. A.M.)

.

5.3.15

Daniel Faria (As mulheres aspiram a casa)





As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.


Daniel Faria

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4.3.15

Jorge Luis Borges (Um mundo sem livros)





UN MUNDO SIN LIBROS



Hay quienes no pueden imaginar un mundo sin pájaros,
hay quienes no pueden imaginar un mundo sin agua;
en lo que a mí se refiere, soy incapaz
de imaginar un mundo sin libros.
A lo largo de la historia el hombre ha soñado
y forjado un sinfín de instrumentos.
Ha creado la llave, una barrita de metal
que permite que alguien penetre en un vasto palacio.
Ha creado la espada y el arado,
prolongaciones del brazo del hombre que los usa.
Ha creado el libro, que es una extensión secular
de su imaginación y de su memoria.
A partir de los vedas y de las biblias,
hemos acogido la noción de libros sagrados.
En cierto modo, todo libro lo es.
En las páginas iniciales de El Quijote,
Cervantes dejó escrito que solía recoger y leer
cualquier pedazo de papel impreso que encontraba en la calle.
Cualquier papel que encierra una palabra
es el mensaje que un espíritu humano manda a otro espíritu.
Ahora, como siempre, el inestable y
precioso mundo puede perderse.
Sólo pueden salvarlo los libros,
que son la mejor memoria de nuestra especie.
Hugo escribió que toda biblioteca es un acto de fe;
Emerson, que es un gabinete donde se guardan
los mejores pensamientos de los mejores;
Carlyle, que la mejor universidad de nuestra
época la forma una serie de libros.
Al sajón y al escandinavo les maravillaron tanto las letras,
que les dieron el nombre de runas,
es decir, de misterios, de cuchicheos.
Pese a mis reiterados viajes, soy un modesto Alonso Quijano
que no se ha atrevido a ser don Quijote
y que sigue tejiendo y destejiendo las mismas fábulas antiguas.
No sé si hay otra vida.
Si hay otra, deseo que me esperen en su recinto
los libros que he leído bajo la luna con las mismas cubiertas
y las mismas ilustraciones, quizá con las mismas erratas,
y los que me depara aún el futuro.
De los diversos géneros literarios,
el catálogo y la enciclopedia son los que más me placen.
No adolecen, por cierto, de vanidad.
Son anónimos como las catedrales de piedra
y como los generosos jardines.
No veré, por cierto, los textos que su diligencia ha juntado,
pero sé que desde el otro hemisferio me beneficiarán
de algún modo y que serán de grata lectura.


Jorge Luis Borges

[Sureando]




Há quem não consiga imaginar um mundo sem pássaros,
ou um mundo sem água,
eu cá sou incapaz de imaginar um mundo sem livros.
O homem, ao longo da história, sonhou
e forjou um sem fim de instrumentos .
Criou a chave, uma barrinha metálica
que permite penetrar num vasto palácio.
Criou a espada e o arado,
extensões do braço do homem que os usa.
Criou o livro, que é uma extensão secular
da sua imaginação e da sua memória.
A partir dos vedas e das bíblias,
acolhemos a noção de livros sagrados.
De certo modo, qualquer livro o é.
Cervantes deixou escrito, no início do D. Quixote,
que costumava apanhar e ler
qualquer pedaço de papel impresso que achasse na rua.
Qualquer papel contendo uma palavra
é uma mensagem que um espírito humano manda a outro.
Agora, como sempre, pode perder-se este mundo
instável e precioso.
Só os livros o podem salvar, os livros
que são a melhor lembrança da nossa espécie.
Hugo disse que toda a biblioteca é um acto de fé;
Emerson, que é um gabinete onde se guardam
os melhores pensamentos dos melhores;
Carlyle, que a melhor universidade do nosso tempo
é composta por uma série de livros.
Os nórdicos e os saxões maravilharam-se tanto das letras,
que lhes deram o nome de runas,
quer dizer, de mistérios, de cochichos.
Eu, apesar das muitas viagens, sou um modesto Alonso
Quijano que não se atreve a ser D. Quixote
e continua a tecer e a destecer as mesmas fábulas antigas.
Outra vida não sei se há.
Se houver, quero ser esperado pelos livros
que li ao luar, com as mesmas capas e ilustrações,
com as mesmas erratas talvez,
mas também pelos que me depara ainda o futuro.
Dos vários géneros literários,
os que mais me agradam são catálogos e enciclopédias.
Não padecem de vaidade, por certo,
são anónimos como catedrais de pedra
e como generosos jardins.
Não verei, certamente, os textos todos acumulados,
mas sei que no outro lado me farão bem de algum modo
e hão-de ser-me de muito grata leitura.

(Trad. A.M.)

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3.3.15

Charles Bukowski (O que eles querem)





WHAT THEY WANT



Vallejo writing about
loneliness while starving to
death;
Van Gogh's ear rejected by a
whore;
Rimbaud running off to Africa
to look for gold and finding
an incurable case of syphilis;
Beethoven gone deaf;
Pound dragged through the streets
in a cage;
Chatterton taking rat poison;
Hemingway's brains dropping into
the orange juice;
Pascal cutting his wrists
in the bathtub;
Artaud locked up with the mad;
Dostoevsky stood up against a wall;
Crane jumping into a boat propeller;
Lorca shot in the road by Spanish
troops;
Berryman jumping off a bridge;
Burroughs shooting his wife;
Mailer knifing his.

- that's what they want:
a God damned show
a lit billboard
in the middle of hell.
that's what they want,
that bunch of
dull
inarticulate
safe
dreary
admirers of
carnivals.

Charles Bukowski

[Avaunt Afflatus]




Vallejo escrevendo sobre
a solidão enquanto morre
de fome;
a orelha de Van Gogh rejeitada
por uma puta;
Rimbaud bazando para África
em busca de ouro e topando
com uma sifilis incurável;
Beethoven surdo de todo;
Pound arrastado pelas ruas
dentro duma jaula;
Chatterton engolindo veneno dos ratos;
os miolos de Hemingway misturando-se
como sumo de laranja;
Pascal a abrir os pulsos
na banheira;
Artaud encerrado no manicómio;
Dostoievsky empurrado contra a parede;
Crane a atirar-se a uma hélice dum barco;
Lorca fuzilado numa estrada por soldados espanhóis;
Berryman a jogar-se duma ponte abaixo;
Burroughs a alvejar a mulher;
Mailer a esfaquear a dele.

- é o que eles querem,
uma porra dum espectáculo,
um painel iluminado
no meio do inferno,
é o que eles querem,
esse punhado
de broncos
moles
seguros
chatos
amantes de
carnavais.

(Trad. A.M.)

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2.3.15

Laura Casielles (Acção de graças)





ACCIÓN DE GRACIAS



Estar
un poquito en la calle y un poquito en los libros,
tener
al menos un amor que haya cambiado el mundo
y un puñado de amores menos eternos
que formen entre todos el país donde se quiere vivir
por lo demás,
ser
una casa con ventanas abiertas,
viento y sol, una cama con alguien,
proyectos,
el pasado presente, el futuro olvidado,
un par de carencias,
la mar,
la salud que no falte,
la risa siempre a punto,
gozar
de los amigos en cuya presencia
nada ha fallado nunca.
No pedir más.


Laura Casielles

[Emma Gunst]




Estar
um pouco na rua, um pouco nos livros,
ter um amor pelo menos
capaz de mudar o mundo
e uma mão cheia de amores menos eternos
que somados façam um país
para viver tudo o resto,
ser
uma casa de janelas abertas,
com vento e com sol, e uma cama com alguém,
projectos,
o passado presente, o futuro olvidado,
algumas carências,
o mar,
a saúde que não falte,
o riso sempre pronto,
gozar
dos amigos com quem
nunca nada falhou.
Não pedir mais.


(Trad. A.M.)



>>  Tres pies del gato (blogue) / Las afinidades electivas (4p) / Portal de poesia (10p) / Emma Gunst (7p) /
Wikipedia

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1.3.15

Carlos Drummond de Andrade (Congresso do medo)





CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO



Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosa


Carlos Drummond de Andrade

[Revista Bula]

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