28.2.15

Luis Rosales (A festa dos pássaros)





LA FERIA DE LOS PÁJAROS



Sentí que se desgajaba
tu corazón lentamente
como la rama que al peso
de la nevada se vence,

y vi un instante en tus ojos
aquella locura alegre
de los pájaros que viven
su feria sobre la nieve.


Luis Rosales




Senti esgalhar
teu coração devagar
como se fosse um ramo
com o peso da neve,

e por um instante vi em teus olhos
essa loucura alegre
dos pássaros voando
em festa sobre a neve.

(Trad. A.M.)

.

27.2.15

Ana Paula Inácio (Primeira flor)





PRIMEIRA FLOR



Os milagres acontecem
a horas incertas
e nunca estou em casa
quando o carteiro passa.
Hoje, abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal.
Olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo.


Ana Paula Inácio

[Pátria pequena]

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26.2.15

Jorge Espina (Mãe)




MADRE



Madre tiembla cuando dice adiós,
Madre siempre tiene miedo,
Madre llora por sus hijos,
Madre llora por sus nietos.
Madre es una flor deshojada
Con aroma a café recién hecho,
Madre es una manzana de sidra
Cansada de caer al suelo.
Madre es un viejo druida
Que cura el dolor con ungüento.
Madre es un ladrillo en el horno
Que calienta la cama en invierno.
Recuerdo el roto en el corazón,
Lo cosió madre,
Mi madre
Que se juega hoy la vida al parchís
En un hogar para ancianos.

Jorge Espina



Mãe treme a dizer adeus,
mãe está sempre com medo,
mãe chora pelos filhos,
mãe chora pelos netos.
Mãe é uma flor desfolhada
com cheiro de café fresco,
mãe é uma maçã de sidra
cansada de cair ao chão.
Mãe é um velho druida
que tira dores com unguento.
Mãe é um tijolo do forno
que aquece a cama no Inverno.
Recordo o golpe no coração,
coseu-o a mãe,
minha mãe
que joga hoje a vida às cartas
num lar de idosos.

(Trad. A.M.)

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25.2.15

Amadeu Baptista (Sala dos actos-3)





SALA DOS ACTOS-3



usa a tua nudez acessórios mortais
para quem procura. a fita de veludo,
o cinto de fivela prateada,
a pintura guerreira, o golpe subtil

com que anuncias a ascensão
ao cume do carinho, exactamente
quando sobre o desvario
distendes os flancos e lanças sobre mim

o golpe intrépido
para que o êxtase estoure no meu corpo
esse mar de grata violência

que pressinto chegar em vagas sucessivas
sempre que gritas e, nesse grito,
desatas o meu grito.

Amadeu Baptista


[Amadeu Baptista]

.

24.2.15

Jorge Boccanera (Universo)





UNIVERSO



El domador que mete su cabeza dentro de la boca
del león, ¿qué busca?
¿La lástima del público?
¿Que tenga lástima el león?
¿Busca su propia lástima?

El poeta que arroja su anzuelo en la garganta de la
Sordomuda, ¿qué busca?
¿La lástima del público?
¿Que tenga lástima la Sordomuda?
¿Busca su propia lástima?

Y el público, ¿está loco? ¿por qué aplaude?


Jorge Boccanera

[Revista Triplo V]




O domador que mete a cabeça na boca
do leão, que busca?
A piedade do público?
A do leão?
A sua própria piedade?

O poeta que espeta o anzol na garganta
da Surda-muda, que busca?
A piedade do público?
A da Surda-muda?
A sua própria piedade?

E o público, está louco? Porque aplaude?

(Trad. A.M.)

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23.2.15

António Lobo Antunes (Lisboa)





Lisboa, mesmo a esta hora, é uma cidade tão desprovida de mistério como uma praia de nudistas, onde o revelador do sol exibe brutalmente nádegas planas e peitos sem cones de sombra a aprofundá-los, que o mar parece abandonar na areia à laia dos seixos sem arestas da vazante.

Uma noite de cartório notarial, em cujos lençóis de papel selado ressona timidamente um povo de terceiros-oficiais resignados, transforma as casas e os prédios em tristes jazigos de família, no interior dos quais os casais azedos esquecem por algumas horas as suas querelas minúsculas, para se assemelharem a estátuas jacentes de pijama às riscas, que o despertador à cabeceira da cama empurrará em breve para quotidianos frenéticos e cinzentos.


ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Os cus de Judas
(1979)

.

José Hierro (Como a rosa)





Como la rosa: nunca
te empañe un pensamiento.
No es para ti la vida
que te nace de dentro.
Hermosura que tenga
su ayer en su momento.
Que en sólo tu apariencia
se guarde tu secreto.
Pasados no te brinden
su inquietante misterio.
Recuerdos no te nublen
el cristal de tus sueños.
Cómo puede ser bella
flor que tiene recuerdos.

José Hierro


Como a rosa, não te
turve um pensamento.
Não é para ti a vida
que te vem de dentro.
Beleza que a tenha
ontem a seu tempo.
Que teu segredo se guarde
só na tua aparência.
Passados não te ofereçam
seu inquietante mistério.
Lembranças não embaciem
o vidro de teus sonhos.
Como bela pode ser
a flor que tem lembranças.

(Trad. A.M.)



>>  A media voz (57p) / Poesi.as (43p) / Antologias poeticas (57p)   / Fundación (de/sobre) / Cervantes (de/sobre) / Wikipedia

.

22.2.15

Alexandre O'Neill (Seis poemas confiados/V)





(V)

Eu estava bom p’ra morrer
nesse dia.
Não tinha fome nem sede,
nem alarme ou agonia.

Eu estava tal como está
esse que perdeu a amiga,
o homem que sofreu já
tanto (nem se imagina!)

que ficou bem atestado
de fadiga
e copiou-se em alegre,
mas de uma torpe alegria,

que não era mesmo alegre,
mas alegre se fingia
só para enganar o morto
que dentro de si trazia.

Este é um modo de dizer
em que ninguém acredita,
mas não sei melhor dizer:
era assim que eu me sentia!

A solidão o que era?
O amor o que seria?
Já ninguém à minha espera,
para nenhures é que eu ia.

Eu estava bom p’ra morrer
— e ainda hoje morria…
Assim me quisesses dar
e tirar — só tu! — a vida.


Alexandre O'Neill

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21.2.15

Jorge Ampuero (Exórdio do caminhante)





EXORDIO DEL CAMINANTE



No basta
con iniciar
el viaje
y la búsqueda
porque
es posible
andar
y perderte
por cualquier
camino
si realmente
no sabes
adónde
vas.

Jorge Ampuero




Não basta
iniciar
a viagem
e a busca
porque
é possível
andar
e perder-te
por qualquer
caminho
se realmente
não souberes
aonde
vais.

(Trad. A.M.)

.

20.2.15

António Lobo Antunes (Madrugada)





Às quatro da manhã os espelhos são ainda suficientemente misericordiosos ou opacos para nos não devolverem o rosto amarrotado e encolhido das noites sem sono, que os olhos baços animam de desânimo pisco: o excesso de luz do aeroporto impedia-me de me confrontar nos vidros com a minha silhueta hesitante, inclinada como uma cana de pesca para o peixe gordo da mala, com a gravata que as muitas horas de avião haviam decerto desviado da bissectriz dos colarinhos, tranformando-a num trapo mole como os relógios de Dali, com as rugas que se acumulavam em torno das pálpebras, à maneira dos vincos concêntricos de areia dos jardins japoneses; entre o homem que voltava sozinho da guerra à sua cidade e caminhava através de cachos de estrangeiros indiferentes, e nós que nos dirigimos para a saída do bar ao longo de um corredor de nucas e perfis cuja monótona diversidade os aproxima dos manequins da Baixa, petrificados em acenos imóveis de uma inutilidade patética, há apenas a diferença insignificante de alguns mortos na picada, cadáveres que você não conheceu, as nucas e os perfis nunca viram, os estrangeiros do aeroporto ignoravam.


ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Os cus de Judas
(1979)

.

María García Zambrano (Versais)





VERSALES



¿Qué harás con esta voz que yo te he dado,
con mi secreto,
con la lengua parida en este instante,
con mi madre y su amor,
con mis poemas?

¿Qué vas a hacer con estas manos
manchadas con la tinta de mi vida?

Te irás como si nada,
lo sé,
viviéndote mi verso en copa de cerveza.
Y pronto olvidarás
que me has bebido.

María García Zambrano



O que farás com esta voz que eu te dei,
com meu segredo,
com a língua parida neste instante,
com minha mãe e seu amor,
com meus poemas?

O que vais fazer com estas mãos
manchadas da tinta da vida minha?

Ir-te-ás como se nada,
bem sei,
vivendo meu verso em copo de cerveja.
E depressa esquecerás
que me bebeste.

(Trad. A.M.)

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19.2.15

W. C. Williams (Solstício)





SOLSTICE



The river is full
The time is ripe
Give murderous thoughts rest

No leaves on the trees
A mild sun darkens
the frosty earth

Quietness reigns
No birds, no wind
The shortest day of the year

is favorable


W. C. Williams

[De sibilas y pitias]



O rio vai cheio
O tempo está maduro
Deixemos de lado os pensamentos ruins

Nem uma folha nas árvores
Um sol pálido mal ilumina
o mundo gelado

Reina a tranquilidade
Não há pássaros, nem vento
O dia mais curto do ano

ajuda.

(Trad. A.M.)

.

18.2.15

Francisco J. Picón (Caminhos de ida e volta)





CAMINOS DE IDA Y VUELTA



Existen caminos
con destino incierto
que conducen
hacia un mañana
impredecible

hay caminos
con arcenes
y censuras

hay caminos
sin final,
sin principio,
sin ahora
sin pasado

y hay caminos
de regreso,
colmados de experiencia
y rugosidades,
caminos
de aprendizaje
tardío,
caminos
de arrepentimientos
y destierros

mientras
exista un camino
hacia algún lugar
no te estanques...
la vida es transitar
sin descansos
perennes,
sin demoras
ni apremios,

la vida
es un camino
perpetuo,
un sinfín
de relámpagos
inaudibles

siempre
existe un camino,
no lo cruces
al azar.

Francisco J. Picón



Existem caminhos
com destino incerto
que levam a um amanhã
imprevisível

há caminhos
com bermas
e censuras

há caminhos
sem final,
sem princípio,
sem agora
sem passado

e há caminhos
de regresso
cheios de experiência
e rugosidades,
caminhos
de aprendizagem
tardia,
caminhos
de arrependimento
e desterro

enquanto
houver um caminho
para algum lugar
não te detenhas
a vida é transitar
sem descansos
perenes,
sem pressas
nem demoras,

a vida
é um caminho
perpétuo,
um sem fim
de relâmpagos
inaudíveis

sempre
existe um caminho
não o atravesses
ao acaso.

(Trad. A.M.)

.

17.2.15

António Lobo Antunes (No cu de Judas)





De tempos a tempos chegavam visitas inesperadas ao cu de Judas: oficiais do Estado-Maior de Luanda, que o formol do ar condicionado conservava, quinquagenárias sul-africanas que beijavam os doentes em arroubos de cio da menopausa, duas actrizes de revista a agitarem a descompasso as pernas gordas num palco de mesas, acompanhadas por um acordeão exausto; jantaram na messe ao lado do comandante reluzente de orgulho, cuja timidez se embrulhava nos sorrisos de um adolescente em falta, enquanto o tenente da criada lhes cirandava em torno, farejando os decotes num êxtase mudo.

O capelão, contrito, descia as pálpebras virgens sobre o breviário da sopa.

- Quarenta anos a acumular esperma - calculava o capitão idoso a medi-lo de longe. - Se aquele gajo se vier afoga-nos a todos na água benta dos tomates.


ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Os cus de Judas
(1979)

.

Jordi Doce (Acontecimento)





SUCESO



No estábamos allí cuando ocurrió.
Íbamos de camino a otra ciudad,
otra vida,
bajo un cielo cambiante que se movía con nosotros.
Cruzamos campos verdes, amarillos,
pueblos de gente suspicaz y cuervos impasibles,
y ni una vez echamos a faltar nuestra casa
o sentimos nostalgia del pasado.
Así era el viaje:
por la noche silencio,
a la mañana niebla.
Una vez encontré un botón de hojalata en el bolsillo
y jugué a sostenerlo bajo el sol,
arrojando destellos a las altas espigas.
Luego fue una moneda usada
y tuvimos el paso franco en todos los controles.
Las llanuras de Europa son testigo.
Ellas saben también que algo ocurrió,
aunque nunca lo viéramos.
Íbamos de camino a otro país,
otra vida,
sin bultos estridentes,
sin espacio para el recuerdo.
Todo salía a nuestro encuentro,
ahora silencio y luego niebla.

Jordi Doce

[Apología de la luz]



Não estávamos lá quando aconteceu,
íamos a caminho de outra cidade,
outra vida,
sob um céu cambiante que se movia connosco.
Atravessámos campos verdes, amarelos,
terras de gente suspicaz e corvos impassíveis
e nem uma vez sentimos falta da casa
ou saudade do passado.
Assim era a viagem,
silêncio de noite,
névoa de manhã.
Uma vez achei no bolso um botão de metal
e pus-me a brincar com o sol,
a mandar os raios para as altas espigas.
Depois fez de moeda usada
e tivemos passagem franca em todos os controlos.
Os plainos da Europa são testemunhas,
sabendo que algo ocorreu,
embora nós não víssemos.
Íamos a caminho de outro país,
outra vida,
sem sombras estridentes,
nem espaço para a lembrança.
Tudo nos vinha ao encontro,
ora silêncio, ora névoa.

(Trad. A.M.)

.

16.2.15

João Miguel Fernandes Jorge (Jantar em Alcabideche)





JANTAR EM ALCABIDECHE



Estavam os meus amigos. E, todos, mais
ou menos bêbados. As mãos brincavam com
as facas, apertavam os copos entre os
dedos, espremiam limão sobre os peixes
grelhados. Os gestos, a alegria
do encontro tornara-os tenros e desajeitados.
Mais do que dirigindo-nos a nós próprios,
fazíamo-lo para uma presença imaginária,
a secreta corrente que a cada um unia; e,
mais secretamente ainda, dois e três escondia.
Depois, não há como o álcool,
o vinho branco escolhido – que não fora
excelente – para fazer querer
ser o eu presente o verdadeiro eu;
e que, até então, sempre permanecera
escondido.
Os meus amigos falam, falam todos ao mesmo
tempo e não se entendem.
E quanto mais querem dizer mais abraços dão.
Riem e chegam mesmo a participar, felizes,
na união em cada um;
meio perdidos no seu sonho de representação
de si, não procuram mais do que provar, e
provar aos outros, uma única coisa: cada um
é o mais fiel naquele jantar,
Eu, quase sempre, permaneci alheio e
olhava-os, como vocês, leitores,
nos estão a olhar agora.


João Miguel Fernandes Jorge

[Cómo cantaba mayo]

.

15.2.15

Luis Rosales (Autobiografia)




AUTOBIOGRAFÍA



Como el náufrago metódico que contase las olas
que faltan para morir,
y las contase, y las volviese a contar, para evitar
errores, hasta la última,
hasta aquella que tiene la estatura de un niño
y le besa y le cubre la frente,
así he vivido yo con una vaga prudencia de
caballo de cartón en el baño,
sabiendo que jamás me he equivocado en nada,
sino en las cosas que yo más quería.

Luis Rosales




Como o náufrago metódico que contasse as ondas
que lhe faltam para morrer,
e as contasse, e tornasse a contar, para evitar
erros, até à última,
aquela da altura de uma criança,
que o beija e lhe cobre a fronte,
assim vivi eu com uma vaga prudência de
cavalo de cartão no banho,
sabendo que nunca me enganei em nada,
salvo naquilo que mais me importava.

(Trad. A.M.)




>>  Poesi.as (34p) / Poetas andaluces (26p) / Cátedra (6p) / Wikipedia

.

14.2.15

António Lobo Antunes (Mafra e mais)





Em Mafra, sob a chuva, vi correr os ratos entre os beliches na tristeza desmesurada do convento, labirinto de corredores assombrados por fantasmas de furriéis.

Em Tomar, onde os peixes sobem do Mouchão para vogarem ao acaso pelas ruas em cardumes cintilantes, construí Jerônimos de paus de fósforo admirados pelas escleróticas amarelas dos paraquedistas com hepatite.

Em Elvas, à ilharga de um aspirante gordo e inseguro como um pudim flan na borda de um prato, desejei evaporar- me nas muralhas da cidade à maneira dos violinistas de Chagall no azul espesso da tela, batendo as desajeitadas asas de cotão das minhas mangas militares, até pousar em Paris para uma revolução de exílio feita de quadros abstrato e de poemas concretos, a que o Diário de Notícias da Casa de Portugal forneceria o lastro lusitano de anúncios de casamento castos como notários hipermétropes, e de missas do sétimo dia adoçadas pelo sorriso sem carne dos mortos.

E em Santa Margarida, aguardando o embarque, pastoreei longas bichas de soldados a caminho de um dentista demente que despovoava gengivas uivando de felicidade assassina.


ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Os cus de Judas
(1979)

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Jonio González (A lagoa)





LA LAGUNA



no busco mi sombra
en las sombras que proyectan los palacios
sin embargo
mi silencio apenas se distingue del rumor de las islas

con cada palada se precipita una estrella
entre la oscuridad y el abismo


Jonio González



não busco minha sombra
nas sombras dos palácios
contudo
meu silêncio mal se distingue
do sussurro das ilhas

uma estrela salta com cada paulada
entre o escuro e o abismo

(Trad. A.M.)

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13.2.15

Alberto de Lacerda (Sobre o silêncio)





Sobre o silêncio incide
o mais severo encanto



ALBERTO DE LACERDA
Oferenda II
IN-CM (1994)

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12.2.15

Jon Juaristi (Não é como temias)





NO ES COMO LO TEMÍAS



Te asombra la dulzura del declive,
la paz del cuerpo,
la ausencia de rencor en la memoria.

Como un piso tranquilo y espacioso
o una digna mansión de renta antigua
te acoge la vejez.

Libros, tardes de lluvia,
conversación pausada
entre amigos de siempre
que nada nuevo tienen que decirse,
y evitan, sin embargo, despedirse,
mientras de día en día
lo ganado perdí
que antes tenía.


Jon Juaristi

[Sureando]




Espanta-te o suave do declive,
a paz do corpo,
a falta de rancor na memória.

Como um andar espaçoso e tranquilo
ou digna vivenda de renda antiga,
a velhice te recebe.

Livros, tardes de chuva,
pausada conversa
entre amigos de sempre
que não têm para dizer nada de novo,
e contudo retardam a despedida,
enquanto de dia para dia
o ganho vais perdendo
que antes tinhas.

(Trad. A.M.)

.

11.2.15

António Lobo Antunes (Santa Margarida)





Conhece Santa Margarida?

Digo isto porque, às vezes, na messe dos oficiais decorada com o mau gosto obstinadamente impessoal da sala de espera de um dentista de Moscavide (flores de plástico, oleografias imprecisas cujos arabescos monótonos se confundem com o papel da parede, cadeiras hirtas semelhantes a quadrúpedes desirmanados pastando num acaso sem simetria as franjas gastas dos tapetes), os majores em reboliço abandonavam os copos de uísque, de cubos de gelo substituídos por dados de póquer, para, erectos como soldados de chumbo barrigudos, saudarem a entrada de uma senhora que qualquer coronel subitamente urbano comboiava, deixando atrás de si, perceptível na tremura dos galões, um rastro cochichado de cio de caserna, que se cristalizaria em esquemas explicativos no mármore venoso dos urinóis, destinado à alfabetização dos faxinas.

A masturbação era a nossa ginástica diária, êmbolos encolhidos nos lençóis gelados à maneira de fetos idosos que nenhum útero desibernaria, enquanto, lá fora, os pinheiros e a névoa se confundiam numa trama inextricável de sussurros húmidos, sobrepondo à noite a noite pegajosa dos seus troncos, açucarados do algodão de feira popular da bruma.


ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Os cus de Judas
(1979)

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Joaquín Giannuzi (Aniversário)





CUMPLEAÑOS



He cerrado la puerta de mi padre.
Finalmente lo supe, al amanecer
de este cumpleaños en que te sobrevivo.
Pero aún con la difícil respiración
al borde de la cama y sombrías
opciones por delante, puedo entender
que tú y todos los muertos han perdido
y que vivir es el único prestigio que cubre la tierra.
Entonces, todo lo que es está bien.
Por alguna razón me incorporo; jadeando,
vacío tu rostro hacia la pesada oscuridad
y tengo tu misma manera de torcer la boca
al paso de la puntada por el pecho anginoso.

Joaquín Giannuzi




Fechei a porta de meu pai.
Soube-o finalmente, ao amanhecer
deste aniversário em que te sobrevivo.
Mas mesmo respirando a custo
na beira da cama e com sombrias opções
pela frente, consigo entender
que tu e todos os mortos perderam
e viver é a única glória sobre a terra.
Logo, tudo o que é está bem.
Por alguma razão me levanto; arfando,
despejo teu rosto no escuro pesado,
com o mesmo teu modo de torcer a boca
por causa da pontada da angina de peito.

(Trad. A.M.)

.

10.2.15

Albano Martins (Entre a flor e o perfume)





Entre a flor
e o perfume
não há divórcio.

Entre ontem
e hoje
não há intervalo.

Entre o sono e o sonho
é mudo
o diálogo.

Entre o êxito
e o fracasso
a distância é um degrau.


Albano Martins

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9.2.15

Joan Margarit (Aqueles tempos)





AQUELLOS TIEMPOS



Como todos los días, antes de que amanezca,
cojo el coche y me voy a nadar.
Está lloviendo y hace frío, avanzo
rodeado por la danza de otros faros
tras el velo de lluvia de las calles.

Llego al aparcamiento, entre las pistas
y la piscina, cuando ya amanece.
Bajo del coche y veo allá en el suelo
la pelota de tenis, recubierta
de suave lana y empapada de agua.
Una amarilla, enorme perla
sobre los adoquines que relucen
duros y barnizados por la lluvia.

Me sorprende un recuerdo. Viene de los azules
cielos de una miseria afectuosa y gris,
sin pérgolas ni tenis. Qué alegría
si yo hubiese encontrado esta pelota,
que entonces parecía tan suntuosa,
tan humillada ahora por la lluvia.

Mi soledad, lo mismo que la suya,
ha perdido hace tiempo su prestigio.
Veo en el suelo del aparcamiento
todo lo que he amado y no podré
salvar nunca del frío y de la lluvia.


JOAN MARGARIT
No estaba lejos, no era difícil
(2011)

[Mediterraneo sur]



Como todos os dias, antes de amanhecer,
pego no carro e vou nadar.
Está a chover e faz frio, avanço
pela dança de outros faróis
através do véu de chuva das ruas.

Chego ao estacionamento, entre as pistas
e a piscina, quando já amanhece.
Saio do carro e vejo adiante
uma bola de ténis, coberta
por uma lã empapada de água.
Uma pérola enorme, amarela,
sobre os paralelos a reluzir,
duros e envernizados da chuva.

E vem-me, de surpresa, uma lembrança.
Dos céus azuis de uma miséria afectuosa,
cinzenta, sem pérgolas nem ténis. Que alegria
se eu tivesse encontrado esta bola,
que então parecia tão sumptuosa,
e tão humilhada agora pela chuva.

A minha solidão, tal como a sua,
perdeu faz tempo o seu prestígio.
Vejo no chão do estacionamento tudo
aquilo que amei e não poderei
salvar nunca do frio e da chuva.

(Trad. A.M.)

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8.2.15

António Lobo Antunes (Jardim Zoológico)





Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fins de rebuçado na concha da língua.

Não sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com o meu pai, os bichos eram mais bichos, a solidão de esparguete da girafa assemelhava-se à de um Gulliver triste, e das lápides do cemitério dos cães subiam de tempos a tempos latidos aflitos de caniche.

Cheirava aos corredores do Coliseu ao ar livre, cheios de esquisitos pássaros inventados em gaiolas de rede, avestruzes idênticas a professoras de ginástica solteiras, pinguins trôpegos de joanetes de contínuo, catatuas de cabeça à banda como apreciadores de quadros; no tanque dos hipopótamos inchava a lenta tranquilidade dos gordos, as cobras enrolavam-se em espirais moles de cagalhão, e os crocodilos acomodavam-se sem custo ao seu destino terciário de lagartixas patibulares.


ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Os cus de Judas
(1979)

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Joan Brossa (Tu)





TU



Se fosses onda, eras a minha brincadeira preferida.
Se me amasses sempre, eras a plenitude.
Se fosses um modo de falar, eras o diálogo.
Se inquieta chorasses, buscava-te e não te encontrava.
Se fosses um pôr do sol, eras o mais belo de todos.
Se fosses uma árvore, eras um cedro.
Se tivesses cores, eras branca e vermelha.
Se fosses a neve, passavas mais além.
Se fosses uma substância, eras o bálsamo.
Se fosses trocada, eras a madeira da coluna.
Se eu fosse barco, levava-te à frente mesmo da proa.
Se não fosses rapariga, eras uma rosa silvestre.
Se invisível estrela fosses, eras o mútuo amor.
Se me abraçasses e te delisses, eras o orvalho da noite que as árvores molha.
Se desmaiasses, eras um escudo partido.
Se fosses uma flor, jamais te apagarias.
Se relampejasses, eras como pedra da cor do fundo do mar.
Se eu te visse onde fosse, a ti te apontava.
Se fosses indiferente, eras o crepúsculo.
Se me olhasses distraída, eras a minha esperança.
Tua presença para mim é a forma mais prazenteira da harmonia mesma.
Se tu invadisses a música, um acorde soaria grave e queixoso.
Se fosses um trevo, eras a chave da aurora.
Se fosses a suavidade, eras o peso da água.
Se a tristeza fosses, eras o tempo e os dias.
Se fosses um desejo, eras paixão derrocada.
Se fosses a lua, eras uma asa.
Se fosses relógio, eras um círculo profundo.
Se fosses o espaço, eras sua metade e seu centro.
Se não fosses uma estrela favorável, eras uma rocha a defender um território.
Se te escondesses de mim para sempre, eras a noite em redor.
Se um caminho fosses, eras a beira do mar.
Se fosses um jardim, eras um astro de flores.
Se fosses a paisagem. eras o bosque respirando.
Se fosses um anel, eras sempre inquebrável.
Se fosses a sombra densa, eras um caminho entre os astros diáfanos.
Se fosses uma tarde, eras um dia.
Se um ano fosses, eras um século.
Se fosses um ruído, eras de uns passos ressoando em segredo.
Se fosses um pedestal, eras uma ilha azulada.
Se o mundo se partisse em bocados, tu eras o seu silêncio.
Se inclinasses mais a fronte, o coração bateria sereno.
Se suspiras, o tempo que passa torna-se doce.
Se te elevas no céu, na meditação te encontro.
Se uma bolinha fosses, serias uma simples gota de água.
Vives no sentido da chama, não é no da cinza.
Se fosses um número, serias uma quantidade interminável.
Se mudasses de forma, montanha serias escura e aprazível.
Se fosses o vento terral, dormirias num rabo de cores.
Se a chuva te conhecesse, cairia onde dissesses.
Se tentasses salvar alguém, enchê-lo-ias de espigas.
Se fosses uma parede, as árvores te guardariam.
Se a luz tombasse, serias a taça de cada dia.
Cobririas a juventude, se fosses a madrugada.
Se o Outono passasse, tu serias a Primavera iminente.
Se uma cor fosses, serias a alegria do sol sobre a erva.
Se fosses uma voz, terias a cor dum perfume.
Se fosses um perfume, terias a voz da cor que te usasse.
Se um vidro fosses, apagarias os suspiros.
Se fosses um deserto, ondearias sem limites.
Se fosses uma palavra, seria amar-se.
Se fosses um ídolo, eu oficiaria a adoração nos santuários.
Se fosses suave claridade, de rebanhos te rodearias.
Se fosses uma gota de sangue, darias luz.
Se o mundo dos vivos fosse só caos e solidão,
teu destino seria manifestares-te.
Se o mundo fosse brumosa caverna,
tu abrangerias os infinitos.
Tu és o mais belo reflexo da Imagem primordial
que se multiplica para além dos tempos
sem poder expressar-se.


Joan Brossa


(Trad. A.M.)

- Sobre versão Alfonso Alegre/ Victoria Padilla

.

7.2.15

Affonso Romano de Sant'Anna (A implosão da mentira)





A IMPLOSÃO DA MENTIRA



Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.


Affonso Romano de Sant’Anna

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6.2.15

Jesús López Pacheco (Poeta)





POETA



Poeta es el que asume seriamente
algún dolor de todos.
El que hace de dolor y vida
belleza nueva
para que sirva de esperanza a los mejores.
Poeta es el que puede alegremente
hacer de la verdad belleza necesaria.


Jesús López Pacheco

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5.2.15

José Cardoso Pires (O chefe de brigada)






Na versão que corria de mesa em mesa o chefe de brigada teria entrado ali com o ar do míope despassarado e esbarrara para começar com uma margarida da noite que estava ao balcão mergulhada em espuma de super-bock.

Dita margarida essa que em data para olvidar tinha tido os seus desentendimentos com a Judite por causa de um baile de facadas e que, sendo de mau esquecer e de pior perdoar, passara aviso às restantes margaridas e respectivos interessados.


JOSÉ CARDOSO PIRES
Balada da Praia dos Cães
(1982)

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María García Zambrano (O tempo das uvas)





EL TIEMPO DE LAS UVAS



Hasta ti
costa de mis esperanzas
barco ebrio
navego.
Conozco los continentes
para llegar a tu abrazo.
Conozco los delirios
que traerá el temporal.
- El viajero no abandonó la patria
su amada hasta el fin de los días.
En el mar de los hombres.
En el mar de los nombres
me aventuro donde
las aves escapan
a costas amables
y las aves que escapan
me indican
el camino al sol.

María García Zambrano



Até ti
costa da minha esperança
barco ébrio navego.

Conheço os continentes
para alcançar teu abraço.
Conheço os delírios
que o temporal vai trazer.

- O viajante não deixou a pátria
amada até ao fim dos seus dias.

No mar dos homens.
No mar dos nomes
me aventuro onde
as aves fogem
de costas amáveis
e as aves que fogem
indicam-me
o caminho para o sol.

(Trad. A.M.)

.

4.2.15

A.M.Pires Cabral (Arte de gritar)





ARTE DE GRITAR



Quisera dizer coisas
que ninguém tivesse dito antes de mim.

Deixar uma pegada sobre a areia intacta,
não sobre outras pegadas que já houvesse lá.

Mas cheguei tarde; os que me precederam
no exercício desta dura arte de gritar

amavam a minúcia, a completude,
nunca deixavam uma tarefa a meio.

Disseram tudo. Deixaram só migalhas susceptíveis
de glosas rasteiras, para eu me entreter

como uma criança pobre brinca com destroços
de brinquedos recuperados do lixo.

E eu digo essas migalhas como quem
escreve a terra em laudas rasuradas.

E escrevê-las-ei mesmo quando
não tenha língua já para as dizer.

(Os poetas entendem-me estes mansos
trocadilhos. Os outros, não importa.)


A. M. PIRES CABRAL
Gaveta do Fundo
Tinta da China (2013)


[Poema possivel]


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3.2.15

Jesús Lizano (As pessoas curvas)





LAS PERSONAS CURVAS



Mi madre decía: a mí me gustan
las personas rectas.
A mí me gustan las personas curvas,
las ideas curvas,
los caminos curvos,
porque el mundo es curvo
y la tierra es curva
y el movimiento es curvo;
y me gustan las curvas
y los pechos curvos
y los culos curvos,
los sentimientos curvos;
la ebriedad: es curva;
las palabras curvas:
el amor es curvo;
¡el vientre es curvo!;
lo diverso es curvo.
A mí me gustan los mundos curvos;
el mar es curvo,
la risa es curva,
la alegría es curva,
el dolor es curvo;
las uvas: curvas;
las naranjas: curvas;
los labios: curvos;
y los sueños; curvos;
los paraísos, curvos
(no hay otros paraísos);
a mí me gusta la anarquía curva.
El día es curvo
y la noche es curva;
¡la aventura es curva!
Y no me gustan las personas rectas,
el mundo recto,
las ideas rectas;
a mí me gustan las manos curvas,
los poemas curvos,
las horas curvas:
¡contemplar es curvo!;
(en las que puedes contemplar las curvas
y conocer la tierra);
los instrumentos curvos,
no los cuchillos, no las leyes:
no me gustan las leyes porque son rectas,
no me gustan las cosas rectas;
los suspiros: curvos;
los besos: curvos;
las caricias: curvas.

Y la paciencia es curva.
El pan es curvo
y la metralla recta.
No me gustan las cosas rectas
ni la línea recta:
se pierden
todas las líneas rectas;
no me gusta la muerte porque es recta,
es la cosa más recta, lo escondido
detrás de las cosas rectas;
ni los maestros rectos
ni las maestras rectas:
a mí me gustan los maestros curvos,
las maestras curvas.
No los dioses rectos:
¡libérennos los dioses curvos de los dioses rectos!
El baño es curvo,
la verdad es curva,
yo no resisto las verdades rectas.
Vivir es curvo,
la poesía es curva,
el corazón es curvo.
A mí me gustan las personas curvas
y huyo, es la peste, de las personas rectas.

Jesús Lizano



Minha mãe dizia: eu gosto
de pessoas rectas.
E eu cá gosto de pessoas curvas,
ideias curvas,
caminhos curvos,
porque o mundo é curvo
e a terra é curva
e o movimento é curvo;
e eu gosto das curvas,
dos peitos curvos,
dos rabos curvos,
dos sentimentos curvos;
a embriaguez: é curva;
as palavras, curvas;
o amor é curvo;
o ventre é curvo!
o diverso é curvo.
Eu gosto dos mundos curvos;
o mar é curvo,
o riso é curvo,
a alegria é curva,
a dor é curva;
as uvas, curvas;
as laranjas, curvas;
os lábios, curvos;
e os sonhos, curvos;
os paraísos, curvos (não há outros);
eu gosto da anarquia curva.
O dia é curvo
e a noite é curva;
a aventura é curva.
E não gosto, eu, de pessoas rectas,
do mundo recto,
de ideias rectas;
eu gosto de mãos curvas,
de poemas curvos,
de horas curvas:
contemplar é curvo
(nas que se podem contemplar as curvas
e conhecer a terra);
os instrumentos curvos,
não os punhais, nem as leis:
não gosto das leis porque são rectas,
não gosto de coisas rectas;
os suspiros, curvos;
os beijos, curvos;
as carícias, curvas.
E a paciência, é curva.
O plano é curvo
e a metralha recta.
Não gosto de coisas rectas
nem da linha recta:
perdem-se,
todas as linhas rectas;
não gosto da morte porque é recta,
é o que há de mais recto, o que se esconde
por trás das coisas rectas;
nem os professores rectos,
nem as professoras rectas:
eu gosto é de professores curvos,
de professoras curvas.
Não de deuses rectos,
deus nos livre de deuses rectos!
O banho é curvo,
a verdade é curva,
eu não suporto verdades rectas.
Viver é curvo,
a poesia é curva,
o coração é curvo.
Eu gosto de pessoas curvas
e fujo, como da peste, de pessoas rectas.


(Trad. A.M.)

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2.2.15

José Cardoso Pires (Ah tigre)





Outra luz, outras lentes.

Aí a tem a descascar-se e a pôr à vista a segunda pele que é a da boazona em tratos de perdão.

Assim mesmo, deixemo-nos de fitas.

As lágrimas da sereia e o corno compreensivo; errare humanum est.

Estamos nisto.

Mas alto aí, o folhetim parece que deu uma volta.

Pelo que acaba de perceber, o major depois de informado dos segredos do lençol alheio e do remorso da bela adúltera, luziu-lhe lá uma certa estrelinha e amandou a palmada do bom pastor na ovelha tresmalhada.

Ah tigre.


JOSÉ CARDOSO PIRES
Balada da Praia dos Cães
(1982)

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Jenaro Talens (Territórios de um corpo)





TERRITORIOS DE UN CUERPO (II)



Déjame ser el huésped de tu boca,
la lentitud con que el calor recorre tu desnudo.
Soy como el frío de una noche desierta,
pronto a buscar cobijo en los derrumbaderos
donde hace el nido la melancolía.
Hay tanto resplandor, la luna es tanta
que me deslumbras con la calidez
de tu silencio, y me sumerjo en ti.
Nunca pensé una eternidad tan cerca.

Jenaro Talens




Deixa-me ser hóspede da tua boca,
lentidão do calor percorrendo tua nudez.
Eu sou como o frio da noite deserta,
pronto a buscar abrigo nos abismos
onde a melancolia faz ninho.
Há tal resplendor, uma lua tal
que me deslumbras com a quentura
de teu silêncio, e eu mergulho em ti.
Nunca pensei a eternidade tão perto.


(Trad. A.M.)

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1.2.15

Vasco Graça Moura (Soneto do amor e da morte)





SONETO DO AMOR E DA MORTE



Quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar,
sempre a doer, sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.


Vasco Graça Moura



>>  Escritas (23p) / DGLB (bio-biblio-linques) / Citador (12p) / Poetry int. (8p) / Wikipedia

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