30.11.14

José Miguel Silva (Musa, vai chatear o Camões)





Musa, sinceramente, vai chatear o Camões.
Que podem os poetas, diz-me, contra marketeers,
aguados humoristas e outros promotores
da realidade? Eu sei que não identificas real
com verdadeiro, nem sequer com existente,
mas que valor pode ter uma metáfora sem preço,
por brilhante que seja, neste mundo de gritos,
de sementes apagadas em lameiros de cimento?
Tu não vês o telejornal, Musa? Nunca ouviste
falar da impermeabilização dos solos na cidade
de Deus, do entupimento das artérias cerebrais?
Pensas que estás no século XIX? Mais, julgas-te
capaz de competir com traficantes de desejos,
decibéis e abraços? És capaz de fazer rir um
desempregado, de excitar um espírito impotente?
Consegues marcar golos «geniais» como o Ricardo
Quaresma, proteger do frio as andorinhas,
transportar as crianças à escola? Se achas que sim,
faz-te à onda do mercado, Musa, e boa sorte.
Mas não contes comigo pra te levar à praia.
Sabes perfeitamente que detesto areia, sol
na testa e mariolas de calção. Vá, não me maces.
Pela parte que me toca, ficamos por aqui.


José Miguel Silva


[Luz & sombra]

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29.11.14

Francisca Aguirre (Uma má posição)






UNA MALA DISPOSICIÓN



Quizás tuvo la culpa
una mala disposición de mi esqueleto.
Seguramente me falló la osamenta.
Debo tener la tráquea demasiado estrecha
y cualquier cosa le molesta
se irrita y trago mal.
El caso es que aquel hombre
estaba hecho una furia y todo le estorbaba:
los mendigos, los chinos, los rumanos.
Estaba hasta los pelos de las quejas de las mujeres.
Y se puso a decir que
lo que hacía falta era una mano dura como antes.

Y a mí me dio por toser
y terminé escupiéndole.


Francisca Aguirre

[Emma Gunst]




O meu problema foi talvez
uma má posição do esqueleto.
Seguramente falharam-me os ossos.
Devo ter a traqueia muito apertada
e qualquer coisa a incomoda,
irrita-se e eu engulo mal.
O caso é que aquele homem
estava possesso e tudo o perturbava,
os mendigos, os chineses, os romenos.
Estava até aos cabelos com queixas das mulheres.
E pôs-se a dizer que o que era preciso
era mão dura, como em tempos.

E a mim deu-me para tossir
e acabei cuspindo-lhe em cima.

(Trad. A.M.)

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28.11.14

Paulo Varela Gomes (Horror-3)





Não há questão estética que seja só estética, bem como não há questão social ou política que não seja também estética, acrescentava.

As horríveis aldeias e vilas por onde passava, a desgraça das estradas nacionais e dos subúrbios, mesquinhos, amontoados com grosseria, eram resultado da corrupção, a grande, a do Estado corrompido pelos construtores desde o tempo do marcelismo, e a pequena, a de toda a gente que mentia, roubava, violava a lei.

Malandrice e desleixo, Portugal era isso, a pobreza que o progresso transformou na estupidez do novo-rico ou daquele que julga que já é rico.


PAULO VARELA GOMES
O Verão de 2012
Tinta-da-China (2013)

.

Félix Grande (Poética)





POÉTICA



Tal como están las cosas
tal como va la herida

puede venir el fin
desde cualquier lugar

Pero caeré diciendo
que era buena la vida

y que valía la pena
vivir y reventar

Puedo morir de insomnio
de angustia o de terror

o de cirrosis o de
soledad o de pena

Pero hasta el mismo fin
me durará el fervor

me moriré diciendo
que la vida era buena

Puedo quedar sin casa
sin gente sin visita

descalzo y sin mendrugo
ni nada en mi alacena

Sospecho que mi vida
será así y ya está escrita

Pero caeré diciendo
que la vida era buena

Puede matarme el asco
la vergüenza o el tedio

o la venal tortura
o una bomba homicida

ni este mundo ni yo
tenemos ya remédio

Pero caeré diciendo
que era buena la vida

Tal como están las cosas
mi corazón se llena

de puertas que se cierran
con cansancio o temor

Pero caeré diciendo
que la vida era buena:

La quiero para siempre
con muchísimo amor

Félix Grande

[Cómo cantaba mayo]




Tal como estão as coisas
tal como vai a ferida

o fim pode chegar
de qualquer lugar

Mas tombarei a dizer
que a vida era boa

e que valia a pena
viver e estoirar

Posso morrer de insónia
de angústia ou terror

ou de cirrose ou
solidão ou desgosto

Mas até chegar o fim
há-de durar-me o fervor

e hei-de morrer dizendo
que era boa a vida

Poderei ficar sem casa
sem gente e sem visita

descalço e sem uma côdea
sem nada na despensa

Suspeito que a minha vida
assim será e está já escrita

Mas hei-de cair a dizer
que a vida era boa

Posso morrer de asco
do tédio ou da vergonha

de tortura cruel
ou de uma bomba assassina

que nem eu nem este mundo
temos já compostura

Mas tombarei a dizer
que era boa a vida

Tal como estão as coisas
meu coração fica cheio

de portas que se cerram
com fadiga ou temor

Mas hei-de cair dizendo
que a vida era boa:

Eu quero-lhe para sempre
com muitíssimo amor

(Trad. A.M.)

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27.11.14

Luís Quintais (A criação do mundo)





A CRIAÇÃO DO MUNDO



Quando o meu olhar se cruza
com o desta mulher
que vem ver quem passa,
o que me fere...
não é a funda dor dos seus olhos,
a agonia do rosto que implode,
o corpo inchado,
por acção da senilidade bloqueado.

O que me fere
é a entropia dos objectos que a rodeiam:
as paredes amortalhadas
pela respiração de todos os dias,
o frigorífico com mais de trinta anos
coberto de uso, de ferrugem,
a jarra, o azul ardente das suas flores,

o cromático reverso, a criação do mundo.


Luís Quintais



>>  Luis Quintais (sítio)

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26.11.14

Felipe Benítez Reyes (Valor do passado)





VALOR DEL PASADO



Hay algo de inexacto en los recuerdos:
una línea difusa que es de sombra,
de error favorecido.

             Y si la vida
en algo está cifrada
es en esos recuerdos
precisamente desvaídos,
quizás remodelados por el tiempo
con un arte que implica ficción, pues verdadera
no puede ser la vida recordada.

             Y sin embargo
a ese engaño debemos lo que al fin
será la vida cierta, y a ese engaño
debemos ya lo mismo que a la vida.

FELIPE BENÍTEZ REYES
Sombras particulares
(1992)

[Lifevest under your seat]



Há algo de falso na lembrança,
uma linha difusa de sombra,
de erro favorecido.

             E se a vida
se cifra em algo
é nessas lembranças
precisamente esvaídas,
quiçá remodeladas pelo tempo
com certa arte que implica ficção, pois verdadeira
não pode ser a vida recordada.

             E contudo
a esse engano devemos o que será
no fim a vida mesmo, e a tal engano devemos
o mesmo que devemos à vida.


(Trad. A.M.)

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25.11.14

Paulo Varela Gomes (Horror-2)





Olhava e via: quase nenhum bairro, casa, prédio, posteriores à década de 1960, quer dizer, posteriores à época em que ele saía da infância, merecia outro destino senão uma demolição impiedosa.

Queria lá saber que, antes dessa década e até muito recentemente, as pessoas fossem pobres.

Continuavam a sê-lo, agora pobres de espírito e pobres de gosto, e tinham destruído tudo, a paisagem antiga e habitada, a montanha, as planícies, a costa, tudo o que havia antes é de que ele ainda se lembrava, as casas pobres e dignas, que agora via em ruínas, abandonadas, largadas à beira dos caminhos como animais sarnosos que a impiedade matara.


PAULO VARELA GOMES
O Verão de 2012
Tinta-da-China (2013)

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Elder Silva (Água de sabão)





AGUA ENJABONADA



Cuando tiendes la ropa en el alambre
esperas algo más que un lavado
perfecto.
Sientes deseos que tu camisa blanca
se purifique algo en el tendedero,
que el sol se recueste en el suéter
comprado en San Pablo
y lo vuelva más naranja
y apague la borrasca del día
y la falta de confianza.
Cuando veo mis medias sacudidas
por el viento
espero no sentir el cansancio
de esa danza
cuando me las ponga para ir al trabajo.

Hay cierto alivio
y suspiras como en un spot
donde publicitan jabones
y hasta crees que algo ha sucedido
con tu ropa
cuando la descuelgas
para ordenarla en el ropero.
El olor a ropa limpia
tiene la belleza de tus ojos
mirando en un cielo atardecido,
y algo de la escandalosa impureza
del agua enjabonada.

Elder Silva

[Marcelo Leites]



Ao estender a roupa no arame
esperas algo mais do que uma perfeita
lavagem.
Pretendes que a camisa
branqueie alguma coisa
e que o sol se recline no suéter
comprado em São Paulo
e lhe avive a cor
e apague a borrasca do dia
e a falta de confiança.
Quando vejo as meias sacudidas pelo vento
só espero não sentir o cansaço
dessa dança
na hora de as calçar e de ir para o trabalho.

Pinta um certo alívio
e tu suspiras como num spot
de publicidade a sabões
e até julgas que algo aconteceu
à roupa
quando vais apanhá-la
para a arrumar no roupeiro.
O cheiro a lavado
tem a beleza dos teus olhos
a contemplar o céu do entardecer,
e algo também da escandalosa impureza
da água de sabão.

(Trad.A.M.)



>>  Antonio Miranda (4p) / La palabra única (7p) / Al pial de la palabra (14p) / Facebook
.

24.11.14

José Luís Peixoto (Não te pergunto de onde chegas)






não te pergunto de onde chegas?,
porque sei para onde vais.
hoje é a hora exacta em que até o vento
até os pássaros desistem.
e a noite a teus pés é um instante
e um destino.

não te pergunto onde está o teu rosto,
tantas vezes ocluso e pisado sob os ramos,
onde está o teu rosto?
nem te peço que incendeies o teu nome
numa nuvem nocturna,
nem te procuro.

és tu que me encontras.
ficas no rio que passa,
nada de um tempo que não existe,
nem correntes, nem pedra, nem musgo.
nem silêncio.

José Luís Peixoto


[Ginjal e Lisboa]

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23.11.14

Federico García Lorca (Da rosa)





DA ROSA



A rosa
não procurava a aurora:
quase eterna em seu ramo,
procurava outra coisa.

A rosa
não procurava ciência ou sombra:
confim de carne e sonho,
procurava outra coisa.

A rosa
não procurava a rosa:
imóvel pelo céu
procurava outra coisa.


Federico García Lorca
(Trad. José Bento)



[Silva]

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22.11.14

Paulo Varela Gomes (Horror-1)





Cada vez que saía de casa, o horror que era Portugal aparecia-lhe como um pesadelo de que não se consegue emergir, de que ele próprio não conseguiria de facto emergir, e como uma espécie de confirmação do destino.

Dizia que vivera os mais destrutivos cinquenta anos do último século e meio da história do país e que, pelo acaso do nascimento, fora forçado a assistir ao desmantelamento do que restava do Portugal antigo e à sua substituição por um país não apenas moralmente corrupto, mas também o mais feio da Europa ocidental.


PAULO VARELA GOMES
O Verão de 2012
Tinta-da-China (2013)

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Berta Piñán (Para outros)





PARA OTROS



Para otros la aventura, los viajes, el ancho
del océano, Roma ardiendo y las pirámides,
las selvas indomables, la luz de los desiertos,
los templos y el rostro de la diosa. Para ellos
rascacielos y ciudades, palacios del sueño
contra el tiempo, la sonrisa de Buda, las torres
de Babel, los acueductos, la industria incesante
del hombre y sus afanes.

A mi dejadme la sombra difusa del roble,
la luz de algunos días de otoño, la música callada
de la nieve, su caer incesante en la memoria,
dejadme las cerezas en la boca cuando niña, la voz
de los amigos, la voz del río y esta casa, de algunos libros,
pocos, mi mano dibujando, despacio, la curvatura
perfecta de tu espalda.

Berta Piñán



Para outros a aventura, as viagens, o largo
do oceano, Roma a arder e as pirâmides,
as selvas indomáveis, a luz dos desertos,
os templos e o rosto da deusa. Para eles
arranha-céus e cidades, palácios do sonho
contra o tempo, o sorriso de Buda, as torres
de Babel, os aquedutos, a indústria incessante
do homem e seus afãs.

A mim deixai-me a sombra difusa do carvalho,
a luz de certos dias de Outono, a música silenciosa
da neve, seu cair incessante na memória,
deixai-me as certezas na boca em criança, a voz
dos amigos, a voz do rio e desta casa, de certos livros,
poucos, minha mão desenhando, devagar, a curvatura
perfeita das tuas costas.

(Trad. A.M.)

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21.11.14

Jorge Sousa Braga (O guarda-rios)





O GUARDA-RIOS



É tão difícil guardar um rio
quando ele corre
dentro de nós.


Jorge Sousa Braga

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20.11.14

Federico Díaz-Granados (A casa do vento)





LA CASA DEL VIENTO



Busco mis muertos diluídos por el tiempo,
solitarios que deambulan por mi casa, por mi vida
vistiendo un viejo musgo.
Busco mis muertos que desterrados olvidan las palabras
a esta hora en que desciende la nostalgia
para viajar por las venas de la memoria.

Son estos mis muertos que habitan la casa del viento
esos mismos que juegan en las fotos con algunos personajes,
que hoy conversan con las raíces de los árboles
e indagan por la memoria de la tierra.

Ya mi vida no es un parque de diversiones,
a las máquinas enmohecidas bajo la potestad del viento
les ha crecido hojarasca.
Mi corazón parece un hospital
que recibe heridos en su sala de urgencias
y los amigos que han zarpado
siguen dando vueltas en el inmenso carrusel
con los desaparecidos que caen sin vértigo de la montaña rusa.
Cómo se parecen tus huesos a los sueños en esa casa del viento
en el hangar donde
reparan algunos payasos y maromeros mutilados
en esa casa que cada día se parece más a esa otra demolición
que es mi vida.


Federico Díaz-Granados




Busco meus mortos diluídos pelo tempo,
solitários que deambulam por minha casa, minha vida,
vestindo um musgo antigo.
Busco meus mortos desterrados que esquecem as palavras
nesta hora em que desce a saudade
para viajar pelas veias da memória.

São estes meus mortos que habitam a casa do vento
esses mesmos que brincam nas fotos com outras personagens,
que hoje conversam com as raízes das árvores
e interrogam a memória da terra.

Já minha vida não é um parque de diversões,
as máquinas com mofo cresceu-lhes folhagem
sob o poder do vento.
Meu coração parece um hospital
recebendo feridos na sala de urgências
e os amigos que zarparam
continuam às voltas no imenso carrossel
com os desaparecidos que caem da montanha russa.
Como se parecem teus ossos com sonhos nessa casa de vento
no hangar onde
reparam palhaços e acrobatas mutilados
nessa casa que cada dia se parece mais com essa outra demolição
que é minha vida.


(Trad. A.M.)

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19.11.14

Paulo Varela Gomes (Climas)





A indolência ia ao encontro das ideias vigentes entre as pessoas cultas de toda a Europa acerca dos povos do sul e das regiões mais próximas dos trópicos ou do equador, e que, sendo ideias feitas, correspondem também a parte da verdade.

Não se pode trabalhar com o calor, tinha-o visto na Jamaica, tinha-o experimentado, sabia que era assim, e lamentava profundamente que os hábitos de trabalho do Norte estivessem a ser impostos a todo o globo, à custa de uma utilização escandalosa de ares condicionados, sem que ninguém quisesse perceber que não é possível, sem um desgaste mortal de recursos, fazer dois terços dos seres humanos terem hábitos de vida imitados daqueles que vivem em climas temperados.


PAULO VARELA GOMES
O Verão de 2012
Tinta-da-China (2013)

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18.11.14

Jorge de Sena (Os trabalhos e os dias)





OS TRABALHOS E OS DIAS



Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro
e principio a escrever como se escrever fosse respirar
o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem
de um caminho sem nada para o regresso da vida.

À medida que escrevo, vou ficando espantado
com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada.
Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito.
Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,
quando fico triste por serem palavras já ditas
estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos.

Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.
E os convivas que chegam intencionalmente sorriem
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo
e desenhei uma rena para a caçar melhor
e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.


Jorge de Sena

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17.11.14

Alberto Szpunberg (Qualquer palavra)





(III)

Cualquier palabra guarda silencio
contra la pared donde se apoya el brazo
que ciñe la desconsolada frente:
el revoque caído descubre un rostro antes oculto,
desencajado ahora, polvoriento,
pero que en la palma de las manos deja huellas
donde aún palpita el ser amado,
como un trabajo, tenaz, como una verdad, irrepetible.

Alberto Szpunberg

[Marcelo Leites]





Qualquer palavra guarda silêncio
contra a parede onde se apoia o braço
que cinge a desconsolada fronte:
o reboco caído descobre um rosto antes oculto,
desencaixado agora, cheio de pó,
mas que deixa marcas na palma das mãos
onde palpita ainda o ser amado,
como um trabalho, tenaz,
uma verdade, irrepetível.

(Trad. A.M.)




>>  Porqué tiemblan (7p) / Antonio Miranda (4p) / Poesia argentina (bio-biblio-linques) / Wikipedia

.

16.11.14

Paulo Varela Gomes (Liberdades)





E se medirmos índices menos materiais - a chamada liberdade, por exemplo, os chamados direitos dos cidadãos - que extraordinária mentira (...), as multidões nos países ditos livres têm menos influência sobre os seus governos do que a plebe na Roma imperial.

O voto, a liberdade de palavra ou de propaganda são o pão que se dá aos imbecis mergulhados até ao inconsciente na atmosfera falsificada do circo.

Qualquer camponês medieval controlava melhor a sua vida do que um eleitor contemporâneo, convencido de que é livre, obrigado e obrigando-se pela força da ideologia a escolher sempre o mesmo género de governantes, a entreter-se com a sua comédia de fingimentos.


PAULO VARELA GOMES
O Verão de 2012
Tinta-da-China (2013)

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Alfredo Buxán (A luz insone)





A LUZ INSONE



Está desperta a luz
sentada em cima duma pedra
com milhões de anos,
à espera que saias
desse túnel de sombras
em que te abaixas.
Está desperta a luz
a meio da noite
embora cerres os olhos
como se a não houvera.


ALFREDO BUXÁN
La canción del aire
Cadernos de Néboa-6
(2014)

(Trad. A.M.)

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15.11.14

João Guimarães Rosa (Primavera na serra)





PRIMAVERA NA SERRA



Claridade quente da manhã vaidosa.
O sol deve ter posto lente nova,
e areou todas as manchas,
para esperdiçar luz.

Dez esquadrilhas de periquitos verdes
receberam ordem de partida,
deixando para as araras cor de fogo,
o pequizeiro morto.
E a árvore, esgalhada e seca, se faz verde,
vermelha e castanha, entre os mochoqueiros,
braúnas, jatobás e imbaúbas do morro,
na paisagem que um pintor daltônico
pincelou no dorso de um camaleão.

E o lombo da serra é tão bonito e claro,
que até uma coruja,
tonta e míope na luz,
com grandes óculos redondos,
fica trepada no cupim, o dia inteiro,
imóvel e encolhida, admirando as cores,
fatigada, talvez, de tanta erudição…


João Guimarães Rosa

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14.11.14

Ernesto Pérez Vallejo (Manual automasoquista)





MANUAL AUTOMASOQUISTA PARA NO ECHARTE DE MENOS



Átame a los pies de tu cama,
dame de comer solamente de tu mano,
enséñame algo que duela más que el olvido.
Ponte los tacones de los sábados cualquier día
y déjame oír como te marchas.
No vuelvas hasta mañana y que tu ausencia
sea también la falta de mí mismo.

Hazme promesas,
háblame de hipotecas,
de columpios,
de noches de pijama y de sofá,
de bailar hasta las tantas de los tontos,
de tus dietas absurdas ricas en fibra,
de aquel verano del noventa y tantos
en que tus padres te llevaron a Eurodisney
y que nunca más después de aquello
has vuelto a sentirte princesa.
Repróchame un castillo y una trenza
o que no mate dragones por tenerte.

Dime otra vez eso del reloj biológico,
tic tac tic tac tic tac
la maldita cuenta atrás,
que sienta el pánico de no llegar a tiempo
ni siquiera a tu vientre.

Abofetéame,
traza un camino de lunares
de tu cuello a la espalda,
un laberinto de pecas
desde tu boca a tu coño
y déjame perderme a mi manera.

Hazme ladrar,
con la falda levantada hasta las mismas nubes,
con las bragas bajadas hasta el mismo infierno,
mánchate los dedos con tus orgasmos
y házmelos lamer,
como si mi deseo por ti
ya no entendiera de anatomía.
Como si mi boca ya no tuviera lugar favorito para besarte
o tu no conocieras la palabra "límite".

Secuestra mis palabras
pide un rescate imposible,
mata a mis musas,
a todas,
métete dentro del espejo del baño,
que solo en ellos se aguantarme la mirada.
Exige posdatas de piel,
que mi garganta no sepa decir tu nombre
si no te amo.
Que mi lengua se enrede si confundo un te quiero
con cualquier te necesito.

Azótame,
hazme poeta de nuevo,
otra vez.
Y vete para siempre como nunca
duele más adentro,
más intensa,
ama más profunda, menos dócil
y deséame como nunca para siempre.

Arroja tu perfume a mi camisa,
amárrame tus labios a la boca,
tus manos a mi espalda,
tu sonrisa,
que vuele por el aire cual cometa
y se quede suspendida por mis ojos.

Retuerce mis pezones que el dolor
confunda su destino y ya no sepa
si doler cuando te vas
o a tu regreso.

No perdones nunca mis errores,
no me lleves nunca de la mano,
róbame el espacio,
los minutos,
clava tu tacones en mi pecho
y que a cada paso que te alejes
sea otra herida.

Y no me quieras nunca todavía
y no me odies siempre mientras tanto.


Ernesto Pérez Vallejo

[Los lunes que te debo]



Ata-me aos pés da cama,
dá-me comer por tua mão,
mostra-me algo que doa mais que o esquecimento.
Põe os saltos de sábado em qualquer dia
e deixa-me ouvir-te a ir embora.
Não voltes até amanhã e que a tua ausência
seja também a falta de mim mesmo.

Faz-me promessas,
fala-me de hipotecas,
de baloiços,
de noites de pijama e sofá,
de bailar até às tantas,
das tuas dietas ricas em fibra,
daquele Verão de noventa e tal
em que os teus pais te levaram à Eurodisney
e que nunca mais depois disso
voltaste a sentir-te princesa.
Reprocha-me um castelo e uma trança
ou não matar dragões por tua causa.

Diz-me aquilo outra vez do relógio biológico,
tic tac tic tac tic tac
a maldita contagem regressiva,
que sinta o pânico de não chegar a tempo
nem sequer ao pé de ti.
Esbofeteia-me,
faz-me um caminho de sinais
do teu pescoço até às costas,
um labirinto de sardas
da boca de cima à de baixo
e deixa-me perder-me a meu modo.

Faz-me ladrar,
de saia levantada até ao céu,
de calcinhas descidas até ao inferno,
molha os dedos no teu orgasmo
e dá-mos a lamber,
como se o meu desejo por ti
desconhecesse a anatomia.
Como se minha boca não tivesse
outro lugar para beijar
ou tu não conhecesses a palavra 'limite'.

Sequestra-me as palavras
pede um resgate impossível,
mata-me as musas,
todas,
mete-te no espelho do banheiro,
que só nele eu consigo suportar o meu olhar.
Exige pós-escritos na pele,
e que se não te amar
eu não consiga sequer dizer teu nome.
E que a língua se me enrede se eu confundir
um 'amo-te' com um qualquer 'preciso de ti'.

Açoita-me,
faz-me poeta de novo,
outra vez.
E vai-te para sempre como nunca,
dói-me mais dentro,
mais intensa,
ama mais fundo, menos dócil
e deseja-me como nunca para sempre.

Põe-me o teu perfume na camisa,
cola-me os lábios na boca,
as tuas mãos às minhas costas,
o teu sorriso,
que ele voe por aí feito cometa
e fique pendurado nos meus olhos.

Aperta-me os mamilos para que a dor se
confunda e fique sem saber
se há-de doer quando te vais
ou doer no teu regresso.

Não me perdoes nunca os erros,
nem me leves pela mão,
tira-me o espaço,
os minutos,
espeta-me os saltos no peito
e que seja uma chaga
por cada passo que te afastes.

E não me queiras nunca ainda,
nem me odeies sempre entretanto.

(Trad. A.M.)

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13.11.14

Paulo Varela Gomes (Cancro-2)





Disse-me, numa das sessões, que experimentava uma grande ambiguidade de sentimentos quando alguns dos seus amigos, ao saberem o que o esperava, começavam a chorar ou ficavam terrivelmente angustiados, tentando animá-lo mas precisando antes que os animassem a eles .
A ambiguidade provinha do facto de a piedade e o desgosto confirmarem a sentença de morte.
Estes amigos confessavam ao chorar que não podiam fazer nada por ele, e a criança, desprotegida e indefesa, sentia ao mesmo tempo medo e fúria.


PAULO VARELA GOMES
O Verão de 2012
Tinta-da-China (2013)

.

Enrique García-Máiquez (Leitura num colégio)





LECTURA EN UN COLEGIO



Más vale que no sepan para qué
sirve leer poesía, si algunos aún la leen.
No les expliques,
calla,
que no sepan
que su belleza no es neutral, que hace
insoportables la crueldade, la idiotez y el ruido
y por eso nos vuelve solitarios.

Algunos aún la leen.
Si te preguntan
qué es o para qué, tartamudea,
contesta imprecisiones, y sonríe.
Más tarde, cuando tengan el alma en carne viva
y hayan llorado mucho, recordarán que tú
pudiste hacerlo y no les previniste,
y te darán las gracias.


Enrique García-Máiquez

[Lavorare stanca]



Mais vale que não saibam para que
serve a poesia, se é que ainda alguém a lê.
Não lhes digas,
cala-te,
que não saibam
que não é neutra sua beleza, que torna
insuportáveis a crueldade, a idiotia e o ruído
e por isso nos faz solidários.

Ainda a lêem, alguns.
Se te perguntarem
o que é ou para quê, tartamudeia,
faz-te desentendido e sorri.
Depois, quando tiverem a alma em carne viva
e houverem chorado muito, recordarão
que tu podias mas não os preveniste,
e hão-de agradecer-te.

(Trad. A.M.)

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12.11.14

Inês Dias (Your funeral, my trial)





YOUR FUNERAL, MY TRIAL



O morto fica mais só
quando quem fala lhe rouba
a última memória desse barco
desmesurado da infância,
construído sem vista para o mar.

O morto fica mais só ainda,
quando quem ouve se esquece da música
para escolher o seu próprio funeral,
alinhando convidados e preferindo coroas
de plástico a condizer com as lágrimas.

O morto fica mais só ainda, se possível,
quando me distraio com o mel da luz
nos vitrais ou sigo o gato amarelado
para quem a morte é apenas uma questão de
sobrevivência, talvez um jogo, se algum rato
finge entregar-se com prazer às suas garras.

Hoje, pela primeira vez, não me chegam
os dedos para contar os meus dias de veladora.
Mesmo sabendo que nenhum ritual nos consola,
tento apaziguar a terra que se abre a meus pés,
plantando cravos condenados que nunca voltarão a florir.
E invejo secretamente o morto, porque já não precisa de
conhecer a flor preferida de ninguém:
pode simplesmente deixar-se estar,
na certeza de que o chão não lhe voltará a falhar.

Os mais sós, afinal, são sempre os sobreviventes.


Inês Dias

[Canal de poesia]

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11.11.14

Eloy Sánchez Rosillo (De manhã)





EN LA MAÑANA



Despertarse un buen día y descubrir
que la turbia amenaza que tanta muerte puso
durante tanto tiempo en nuestra vida
ya no nos mira con sus ojos fijos,
con sus ojos terribles.
¿Qué sucede?
¿Cómo se hizo en mi casa este silencio puro,
este sosiego que tenía olvidado?
¿Quién ha abierto el balcón y allí a dispuesto
esa maceta con geranios rojos?
¿Es cierto que se adentra por la estancia,
despacio, un sol muy dulce y acaricia
el suelo, este sillón, mis manos, mi cabeza,
mi pecho que agradece, mi corazón que canta?


ELOY SÁNCHEZ ROSILLO
Oír la luz
Tusquets Editores
(2008)

[Apología de la luz]




Acordar um belo dia e descobrir
que a turva ameaça que tanta morte trouxe
por tanto tempo à nossa vida
não nos mira já com seus olhos fixos,
terríveis.
O que se passa?
Como se fez este silêncio puro em casa,
este sossego que já tinha esquecido?
Quem abriu a varanda e pôs lá
aquele vaso de gerânios vermelhos?
De verdade que entra pela sala,
devagar, um sol muito doce e afaga
o soalho, este sofá, as minhas mãos, a cabeça,
o meu peito que agradece, o coração que canta?

(Trad. A.M.)

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10.11.14

Paulo Varela Gomes (Cancro-1)





Ao longo daqueles dias, tão cheios de premonição que não tiveram história, tão obcecados com o que vinha que mal se aperceberam do que já era, conseguiu acalmar a terrível angústia da mulher e encarar os amigos com risos e graças acerca do cancro.

Todavia, por detrás da resignação, estava não apenas a esperança de que, milagrosamente, todos estivessem enganados, quer dizer, estavam não apenas as mentiras que a vida conta para enganar a morte, mas também uma espécie de satisfação pelo cumprimento da profecia antiga, pela realização do destino, uma satisfação próxima do sentimento suicida das crianças: quando proclamava à sua volta que não tinha importância, que era até um alívio, que se ia embora contente, que sessenta anos eram anos bastantes, que só tinha pena dos próximos, a mulher, os filhos, os país e irmãs, os cães, estava a reproduzir a ameaça, não inteiramente retórica, antes cheia de perigo e de terror, que a criança ou o jovem adolescente formulam num pedido desesperado de socorro: eu morro e depois vocês vão ver...


PAULO VARELA GOMES
O Verão de 2012
Tinta-da-China (2013)
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Berta Piñán (Declaração)





DECLARACIÓN



Pero de nada sirvieron, ya ves,
amor mío, estos años tan largos
de propósitos serios y tercas promesas,
si vienes tú ahora y te metes en casa
y ocupas el tiempo como
si hubieras estado aquí desde siempre.
Bien sé que por ello
tendré que pagar a los hombres
el tributo que sólo a los dioses se paga.

Berta Piñán



Mas de nada serviram, já vês,
amor meu, estes anos tão longos
de propósitos sérios e firmes promessas,
se vens agora tu e entras em casa
e ocupas o tempo como
se tivesses estado aqui desde sempre.
E sei bem que por isso
aos homens terei de pagar
o tributo que só a deuses se paga.

(Trad. A.M.)


>>  Araz.net (12p+bio+biblio) / Poesia asturiana (4p) / Poemario de mujeres (4p) / Crisis de papel (recensão) /Wikipedia  / Facebook

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9.11.14

Carlos Mota de Oliveira (Os poetas adoram massagens)





OS POETAS ADORAM MASSAGENS



Os poetas adoram massagens
ficam de papo para o ar
ficam a ver passar os navios
ficam à mercê de Deus
ficam em paz
e o resto da Obra
fica por fazer.
Também eu hoje
me fico por aqui
com a “Massagem”
do Fernando Pessoa.


Carlos Mota de Oliveira

[Universos desfeitos]

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8.11.14

Susana March (Minha mãe e eu)





MI MADRE Y YO



Siempre soy un poco niña
cuando voy a ver a mi madre.
Ella me riñe como si lo fuera,
me arregla la lazada del vestido,
critica la forma de pintarme los labios,
me esponja el cabello,
me repite por centésima vez
el modo de hacer una buena sopa de pescado.
Y yo asiento a todo, dichosa, tranquila,
enamorada de mi madre,
de sus cabellos grises,
de su cuerpo deformado por los años y la maternidad,
de sus manos marchitas y hacendosas,
de sus pies diminutos que todavía
no han aprendido a estarse quietos.
Después me estrecho un instante
contra su seno y ella
me va borrando años, melancolías, ansias,
con la dulce caricia de su mano. Y yo pienso:
-"Algún día
dejaré de oír esta voz,
dejaré de sentir sobre la frente
el temblor de estos dedos..."
Y es como si el mundo
se quedara vacío de pronto.
¿Hay una orfandad más triste
que la orfandad del adulto?
¡Huérfanos de cabeza gris!
Yo no sería nunca vieja si viviera siempre mi madre.
¡Lo sé!
Pero quedarme sola,
afrontar sin ella la muerte y la enfermedad,
tener un gran dolor y no contárselo...
¡Ah, todo es mentira junto a esto!
Mi madre a la espalda,
mi hijo delante de mí.
¡Lo demás no importa!

Susana March

[Voo de milana]



Eu sou sempre criança
quando vou à minha mãe.
Ela ralha-me como se fosse,
ajeita-me o laço do vestido,
critica-me o pintar dos lábios,
alisa-me o cabelo,
diz-me pela centésima vez
como se faz uma bela sopa de peixe.
E eu digo que sim a tudo, feliz, tranquila,
apaixonada por ela,
pelos seus cabelos brancos,
o corpo deformado pelos anos e pela maternidade,
as mãos murchas e cuidadosas,
os pés pequeninos que não aprenderam
ainda a estar quietos.
Depois abraço-a um instante
e ela vai-me tirando anos, ânsias, melancolias,
só com o afago da mão. E eu penso:
- “Um dia
deixarei de ouvir esta voz,
deixarei de sentir na fronte
a tremura destes dedos”...
E é como se o mundo de repente
ficasse vazio.
Haverá uma orfandade mais triste do que
a orfandade de um adulto?
Órfãos de cabelos brancos!
Eu nunca seria velha se a minha mãe vivesse sempre.
Bem sei!
Mas ficar sozinha,
enfrentar sem ela a morte e a doença,
ter uma dor grande e não lha contar...
Ah, ao pé disto tudo o mais é mentira!
Minha mãe atrás,
meu filho diante de mim,
o resto não importa nada!

(Trad. A.M.)

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7.11.14

Cristóvão de Aguiar (Nova Relação - Voc.)





acogulada (cheia, até fazer cogulo/ fiquei de alma...)
adjunto (ajuntamento/ toda a gente no... o escutava com respeito)
alcançado* (suspenso?/ ver 'sucinto')
alevá!* (paciência?/ pois...)
amesendar-se (sentar-se à mesa/ amesendei-me também)
assuntar (apurar, prestar atenção/ amanhã hei-de... tudo)
bensinada (bem ensinada/ como ordenança... acudiu de pronto)
burgalhau (cascalho/ depois de limpa, a terra, de... e junça)
calmitude (de calma/ se houver pão e silêncio, vinho e...)
campar (triunfar/ se vivesse suspenso do ice-cream, estaria campando neste paraíso)
canada (azinhaga/ já estava pronto na boca da...)
capelas (pálpebras/ o sono está já a puxar-me as...)
chamatão (alarde, alarido/ não sei se sabia, se sabia nunca fez...)
colacia (proximidade, confiança/ nunca tive tanta... com eles como com os do lado materno) (faz gato sapato de quem lhe dê...)
desinício (fim/ véspera do.... das férias de Natal)
correnteza (ritmo/ amanhã hei-de assuntar tudo com outra...)
enjerido (frio, enregelado/ acendi o aquecedor como nos... dias de Inverno)
esclarecido (claro/ raramente se vê um dia tão...)
esmalmado (sem alma/ ... ali me deixei ficar desanimado)
espavorecido (apavorado/ comecei a achar graça ao que antes me havia...)
esporeado (corrido, apressado/ em passo... subo as escadas)
frança (rama/ árvores de... esguedelhadas)
incha (onda grande/ como quem mergulha num mar de saudade varrido por inchas bravas)
longuidão (atributo de longo/ tenho de ter em conta, no texto, a...)
maçadoria (atributo de maçador/ tenho de ter em conta a longuidão e a...)
maroiço (morouço, montinho/ fiz o serviço por trás dum...)
maúça* (constipação/ apanhei a... no sábado)
menente (admirado, perplexo, atónito/ estou... com esta algazarra toda)
mentes (enquanto/ namorava-se... a filarmónica miava uma rapsódia)
moleste (mal, problema/ ladrão que rouba ladrão, não havia...)
moquenco (velhaco/ um vizinho, muito solteirão e...)
sainte (ao sair, à saída/ fica ao... da Estação Nova)
sarnicar (morder, incomodar como sarna/ põe-se o tunante a... -me)
serrar (manter, tecer/ passavam o serão serrando a conversa)
sobreposse (a custo, mais do que pode/ eu e a ventania, ambos a respirarmos à...)
sucinto* (encolhido?/ sempre que o vento sopra, fico... e alcançado)
talente* (pinhas ainda... esventradas)
tenridade (tenra idade/ desde a... faz parte de um íntima geografia)
terral (vento de terra/ ao cair da noite e do... sentia-me dorido)
tronchada (cortada rente/ com as barbas e guedelhas mais...)
tronqueira (carreiro/ seguimos, ... abaixo, a caminho das Calhetas)
tunante (velhaco, malandro, fistor/ põe-se o... a sarnicar-me)
vário (desvairado, louco/ sume-te, vento...)


CRISTÓVÃO DE AGUIAR
Nova Relação de Bordo
(2004)
___________________

Quem puder ajudar, no glossário: corrigir, integrar lacunas, afastar dúvidas...

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Eduardo Mitre (Escrita)





ESCRITURA



Dejar caer una por una
todas las máscaras
hasta la soledad desnuda
frente al tiempo sin cara.

Buscar en el silencio
donde manan las palabras
su ofendida inocencia,
su vocación de alianza.

Fijar su gracia elocuente
como el fuego y el agua.
Y atravesarlas como un puente
en un cuerpo y un alma.

Eduardo Mitre



Deixar cair uma a uma
as máscaras todas
até à nua solidão
diante do tempo sem cara.

Buscar no silêncio
de que manam as palavras
a ofendida inocência,
a vocação de aliança.

Tomar-lhe a graça eloquente
como o fogo e a água.
E atravessá-las como a ponte
entre o corpo e a alma.

(Trad. A.M.)

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6.11.14

José Carlos Barros (A literatura ou é um saca-rolhas)





A literatura ou é um saca-rolhas engolido
pela boca (e portanto um pleonasmo)
ou é vaidade. Não é despiciendo o número
de desgraçados que engoliu um saca-rolhas

inadvertidamente e assim ficou agarrado
à escrita literária como outros à metadona depois
de se terem livrado da heroína. Mas
não é tão avantajado como pode

parecer passeando a gente os olhos pelas prateleiras
da fnac ou vendo nos sites o número
de títulos que as editoras anunciam por semestre.

Até porque se editam mais livros do que se
fabricam saca-rolhas. Não é preciso tirar um curso
na Universidade Nova para compreender

esta verdade tão simples. Escreve-se essencialmente
para termos o nome na capa de um livro
e um livro num escaparate. E a glória
maior é falarem de nós no Expresso

ou na Ler. Ou sentarmo-nos na Feira do Livro
e termos uma fila de seis pessoas
a pedir autógrafos. Não é por isso que o capitalismo
nos fode a cada esquina ou os políticos

nos hipotecam o futuro. Quer dizer. Da vaidade
literária não vem ao mundo
mal que se veja. Mas é assim. Pelo menos

comigo é assim. Eu nunca engoli um saca-rolhas
e se não fosse por vaidade nunca
havia de escrever a merda de um livro.


José Carlos Barros

[Casa de Cacela]

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5.11.14

Eduardo Milán (Não voltar, mas voltar)





No volver sino volver
a decir, ahora adherido
a tu piel, que da lugar. Hablo
de tu piel que es de lo poco
que conozco y esplende.
No soy más que la sombra de tu cuerpo
pero puedo hablar, sombra que habla
pero habla. Soy un residuo de un cielo,
el tuyo, un azul abierto.

Eduardo Milán



Não voltar, mas voltar
a dizer, colado agora
à tua pele. Falo
da tua pele, que brilha
e é do pouco que conheço.
Sou apenas a sombra de teu corpo,
mas consigo falar, sombra que fala
mas fala. Sou um resto de um céu,
o teu, um azul aberto.

(Trad. A.M.)

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4.11.14

Paulo Varela Gomes (Mau tempo)





Mau tempo, escreveu, era para Beckford, como para todos os comentadores citadinos das épocas moderna e contemporânea, o clima impróprio para aristocratas desocupados ou, mais tarde, para burgueses veraneantes, e não o mau tempo de agricultores e gente da pesca, não o mau tempo de quem trabalha.


PAULO VARELA GOMES
O Verão de 2012
Tinta-da-China (2013)

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Eduardo Llanos (Haiku de geração)





HAIKU GENERACIONAL



Henos aquí, pues,
como sastres ya miopes,
zurciendo el alma.

Eduardo Llanos

[Sureando]



Eis-nos aqui, pois,
alfaiates já míopes,
cerzindo a alma.

(Trad. A.M.)

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3.11.14

Almada Negreiros (Nós não somos do século)





Nós não somos do século de inventar as palavras.
As palavras já foram inventadas.
Nós somos do século de inventar outra vez
as palavras que já foram inventadas.


Almada Negreiros

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2.11.14

Dulce Chacón (Digo rosto de areia)





Digo rostro de arena
y digo labios
y párpados de arena.
Digo dolor de arena
y digo manos
y caricias
de amor, de arena.
Y digo viento.

Dulce Chacón



Digo rosto de areia
e digo lábios
e pálpebras de areia.
Digo dor de areia
e digo mãos
e carícias
de amor, de areia.
E digo vento.

(Trad. A.M.)

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1.11.14

Cristóvão de Aguiar (Vento-4)





Neste descampado instante, sinto os namorados da cantiga mais irmanados à minha desamparada solidão.

Não deixa pedra sobre pedra, fico completamente nu, a baloiçar-me de frio por dentro, a alma de súbito a diminuir-se, ficando mais contraída que o corpo.

Aprendi a lição com o vento ilhéu, de fôlego mais absoluto, que continua grande orador nos púlpitos do céu das Ilhas.

Ouço portas e janelas de ferrolhos mui subtis batendo pela casa fora até sentirem meter à conversa com as da vizinhança.

Sinto-as todas rebater no fundo não sei de que víscera, só sei que dói, como se as portadas pertencessem à ampla janela que se rasga no frontespício da estalagem onde moro e (me)moro é em cujo parapeito, em noites menos bravias, me debruço a namorar-te e a olhar-me, contemplado, no poço de teus olhos.

Sume-te, vento vário.

Vai dançar a pavana pra céus de mourama!


CRISTÓVÃO DE AGUIAR
Nova Relação de Bordo
(2004)

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David González (O nome das coisas)





LAS COSAS POR SU NOMBRE



en primer lugar
y ya desde el principio
y por espacio de años y años
y venga años
procedieron a llenar
mi cabeza
de pájaros

que razonan encerrados
en jaulas
aprendiendo a hablar

pájaros, sí

cientos y miles y cientos
de miles
de pájaros
de todas las especies
habidas y por haber
(algunas
ya extintas)

y después
más adelante
cuando ya ni siquiera tenía
migas de pan que echarles
me pusieron en las manos
una cartuchera
y una escopeta de caza

a esto
la sociedad lo tachará
de suicidio

yo prefiero
darle otro nombre,
su verdadero nombre:

asesinato

David González

[Javier Das]



em primeiro lugar
e já desde início
por anos e anos
e mais anos
andaram a encher-me
a cabeça
de pássaros

que discutem encerrados
em jaulas
a aprender a falar

pássaros, sim

centos, milhares e centos
de milhares
de pássaros
de todas as espécies
havidas e por haver
(algumas
já extintas)

e depois
mais adiante
quando não tinha já sequer
migalhas de pão para atirar
meteram-me nas mãos
uma cartucheira
e uma arma de caça

a isto
a sociedade tachará
de suicídio

eu prefiro
dar-lhe outro nome,
o nome verdadeiro:

assassínio


(Trad. A.M.)

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