31.8.14

Alexandre O'Neill (Seis poemas confiados/IV)





(IV)

Passam os anos a caretear…
Com ou sem sorte,
não será tempo de viver, de amar,
de resistir à morte?
Ouve amor-o-eterno e o que ele diz
a quem se dá.
Não esperes pelo tempo: sê feliz
que a felicidade é já!
E a felicidade é esse rosto eleito
por ti,
é esse palmo de ternura e o jeito
com que sorri.
E a felicidade é a melancolia
que nesse rosto existe,
quando te quer dizer que só por ele
é bom estar triste…
Passem, então, os anos a deitar-nos
línguas de fora…
Se morrermos será de nos amarmos
em cada hora!

Mais um ano de esperança? Não o queiras
se a esperança é adiar,
e vive-o como se fosse a vida inteira
se tiveres de esperar!…


Alexandre O'Neill

.

30.8.14

América Martínez Ferrer (A palavra)





La palabra,                                        
ebria de contención,
trepó hasta la punta de mi lengua:

Desde ahí se despeñó hacia el silencio

desgarrándolo

América Martínez Ferrer



A palavra,
ébria de contenção,
trepou-me à ponta da língua:

Daí despenhou-se no silêncio

rasgando-o

(Trad. A.M.)

.


29.8.14

Ver (146)







[Eduardo Teixeira Pinto]

.

Amalia Bautista (Conta-me outra vez)





CONTA-ME OUTRA VEZ



Conta-me outra vez, é tão lindo
que nunca me canso de ouvi-lo.
Repete outra vez que o casal
da tal história foi feliz até morrer,
que ela não lhe foi infiel e ele nem sequer
pensou em enganá-la. E não te esqueças
que, apesar do tempo e dos problemas,
continuavam a beijar-se todas as noites.
Conta-me mil vezes, por favor,
é a mais bela história que conheço.


(Trad. A.M.)



> Outra versão:  A Natureza do Mal (Luís Januário)

.

28.8.14

Alberto de Lacerda (Stratford-upon-Avon)





STRATFORD-UPON-AVON



Madeira e pedra e água
cisnes
tudo morre
em noites sucessivas e renasce
em cada dia efémero

Só os deuses humanos interiores
a chama passageira
só as palavras irmãs do que é mais frágil
renascem

Só os que trazem em si a eternidade
sabem merecer
a festa mortal de cada instante


ALBERTO DE LACERDA
Oferenda II
IN-CM (1994)

.

27.8.14

Álvaro Valverde (A sombra dourada)





LA SOMBRA DORADA



Abro la verja del jardín sin nadie.
Espera mi llegada el viejo limonero
y al verlo me parece
que no hubiera pasado en parte alguna
todo este largo tiempo,
que siempre hubiera estado
sentado en esta sombra, silencioso,
viendo pasar los días
con la mirada turbia de los que nada esperan,
pero al fin sobreviven.
Con tanta asiduidad he recordado
este mismo lugar
que no es extraño
sentir la vuelta a casa
como un hecho casual como si ahora
volviera una vez más y simplemente
cerrara una vez más la misma puerta.
La casa es hacia dentro el laberinto
que siempre he perseguido. Permanece
sitiada por los muros
azules de la infancia,
por ecos de una edad sobrevenida.
En la azotea,
el puerto sigue siendo un sueño antiguo
y arriba en las estrellas
leo de nuevo
el rumbo del viaje que comienza.

Álvaro Valverde



Abro a cerca do jardim deserto.
Espera-me o velho limoeiro
e parece-me, ao vê-lo,
que não estive ausente
este longo tempo,
estive sempre aqui,
sentado nesta sombra, silencioso,
a ver passar os dias,
com o olhar incerto de quem nada espera,
mas a final sobrevive.
Tantas vezes recordei
este mesmo lugar
que não é estranho
sentir o regresso a casa
como um facto normal, como se voltasse
agora uma vez mais e simplesmente
fechasse a porta mais uma vez.
A casa é para dentro o labirinto
que eu sempre persegui.
É ainda cercada pelos muros
azuis da minha infância,
pelos ecos de uma idade sobrevinda.
No terraço,
o porto continua sendo um sonho antigo
e nas estrelas em cima
leio de novo
o rumo da viagem que começa.

(Trad. A.M.)

.

26.8.14

Raul Brandão (Ria de Aveiro-3)






Há três dias que ando metido na ria, com a barba por fazer, sujo como um ladrão de estrada, e fora de toda a realidade.

Afigura-se-me que vivo num país estranho – amplidão, água e sonho.

Pelo areal os palheiros da Costa Nova, de S. Jacinto e da Torreira...

Que me importa!

Estonteado, encharcado de azul, cheio de sol e de luz, esqueci o passado e esqueci o presente.

A vida é navegar na ria, comer da caldeirada de enguia e tainha, que os homens cozinham à proa, aproveitando-lhes entre as tripas a marsola para lhe dar mais gosto.

É dormir no barco, abicar aos areais e vogar sempre, sentindo a pancada das águas que fogem em tinta cobalto de um lado, em tinta cinzento do outro.

É sair desta amplidão para a descoberta do charco, do canal, da gota de água, dos sítios escondidos e ignorados.

É assistir à transformação das águas e navegar à vela ao pé das casas e no interior das casas.


- RAUL BRANDÃO, Os Pescadores.


.

Álvaro Mutis (Amen-2)





AMEN




Que te receba a morte
com teus sonhos intactos.
No regresso de uma furiosa adolescência,
no início das férias que nunca te deram,
te deixará a morte seu primeiro aviso.
Há-de abrir-te os olhos às lágrimas
embalar-te na brisa do outro mundo.
A morte se fundirá com teus sonhos,
neles reconhecendo os sinais
que em tempos foi deixando,
como um caçador que na volta
reconhece o seu rasto no trilho.



Álvaro Mutis


(Trad. A.M.)

.

25.8.14

Albano Martins (Geografia sentimental)





GEOGRAFIA SENTIMENTAL



Pertenço a esta
geografia, ao lume branco
da resina, ao gume
do arado. A minha casa
é esta: um leito
de estevas e uma rosa
de caruma abrindo
no tecto do orvalho.

Albano Martins


[Pátria Pequena]


.

24.8.14

Alfonso Costafreda (As palavras)





LAS PALABRAS



Piedras preciosas para el sentido,
diamantes de realidad.

Si van en sueños pierden su brillo,
su luminosa verdad.

Palabras vivas, nadie las toque
que no las sepa cuidar.

Alfonso Costafreda



Pedras preciosas do sentido,
diamantes do real.

Perdem o brilho, se vão em sonhos,
a luminosa verdade.

Palavras vivas, não lhes toque
quem as não saiba cuidar.

(Trad. A.M.)


> Outra versão: Fel de cão (José Bento)

.

23.8.14

Ver (145)






[Eduardo Teixeira Pinto]

.

Gonzalo Fragui (As mulheres e a filosofia)





LAS MUJERES Y LA FILOSOFÍA



Siempre es igual

Uno propone un amor platónico
y ellas responden con un odio aristotélico.


Gonzalo Fragui

[Emma Gunst]




É sempre o mesmo

Um tipo propõe um amor platónico
e elas respondem com um ódio aristotélico.

(Trad. A.M.)




>>  Letralia (23p) / Festival Medellin (6p) / Issuu-Poeterias / Arteliteral (recensão) / Facebook

.

22.8.14

Affonso Romano de Sant'Anna (Definição)





DEFINIÇÃO



O corpo é onde
é carne:

o corpo é onde
há carne
e o sangue
é alarme.

O corpo é onde
é chama:

o corpo é onde
há chama
e a brasa
inflama.

O corpo é onde
é luta:

o corpo é onde
há luta
e o sangue
exulta.

O corpo é onde
é cal:

o corpo é onde
há cal
e a dor
é sal.

O corpo
é onde
e a vida
é quando.


Affonso Romano de Sant’Anna

.

21.8.14

Alfonso Brezmes (Amor e gastronomia)





AMOR Y GASTRONOMÍA



Para cuándo, para cuándo,
dices mientras clavas
tus uñas rojas en mi camiseta azul.
Para pronto, para pronto,
respondo mientras acabo de poner la mesa:
mi cena, cariño, eres tú...

Alfonso Brezmes



Quando, quando,
perguntas tu enquanto me cravas
as unhas na camisa azul.
É já, é já, respondo eu
enquanto acabo de pôr a mesa:
és tu, amor, o meu jantar...

(Trad. A.M.)


> Conexo: Luis Alberto de Cuenca- El desayuno (mais antigo, talvez)

.

20.8.14

Leonardo Padura (Fome e alegria)





(FOME E ALEGRIA)

Assediados pela fome, pelos apagões, pela desvalorização dos salários e pela paralisia dos transportes - entre muitos outros males - Ana e eu vivemos um período de êxtase.

A nossa magreza, potenciada por longas deslocações que fazíamos nas bicicletas chinesas compradas nos nossos centros de trabalho, fez de nós seres quase etéreos, uma nova espécie de mutantes, capazes não obstante de aplicar as últimas energias a fazer amor, a conversar horas e horas e a ler como condenados - Ana poesia, eu, depois de muito tempo de privação, romance novamente.

Foram anos quase irreais, vividos num país lento e escuro, sempre tórrido, a desmoronar-se diariamente, mas sem cair nas cavernas da comunidade primitiva que nos espreitava.

Mas anos também em que nem a mais desoladora escassez conseguia vencer o júbilo que nos dava a mim e a Ana vivermos um com o outro, como náufragos que se amarram um ao outro para se salvarem juntos ou perecerem em companhia.
(Cap.1)


- LEONARDO PADURA
El hombre que amaba a los perros

.

Alejandro Céspedes (Resta um fio)





queda un hilo

el que con una línea todo lo separa
el que con una línea lo une todo

el hecho particular y sin importancia de que no lo veas no significa que no exista o que no esté aquí acechándote desde algún lugar de la página en blanco preparado y ansioso de saltar sobre tu ceguera

alguien que cree saber dónde encontrarlo
sigue fingiendo que sabe cómo ahorcarse

Alejandro Céspedes



resta um fio

esse que com uma linha tudo separa
esse que com uma linha tudo une

o facto singular e sem importância de não o veres não significa que não exista ou não esteja aqui à espreita, de algum lugar desta página em branco, preparado e ansioso por saltar à tua cegueira

alguém que julga saber onde achá-lo
finge que sabe como enforcar-se


(Trad. A.M.)

.

19.8.14

Leonard Cohen (Eu sei de um homem)





I heard of a man
who says words so beautifully
that if he only speaks their name
women give themselves to him.


If I am dumb beside your body
while silence blossoms like tumours on our lips
it is because I hear a man climb the stairs
and clear his throat outside our door.


Leonard Cohen


[LC-Homepage]




Eu sei de um homem
que diz palavras tão belas
que só com dizer o nome
leva as mulheres todas atrás.

Se a teu lado me calo
e o silêncio nos cerra os lábios
é só porque se ouve um homem a subir as escadas
e clarear a garganta do lado de fora da porta.


(Trad. A.M.)

.

18.8.14

Alejandra Pizarnik (Silêncio)





silencio
yo me uno al silencio
yo me he unido al silencio
y me dejo hacer
me dejo beber
me dejo decir

apuñalada por lo ausente
por la espera bastarda
renaceré a los juegos terribles
y lo recordaré todo

Alejandra Pizarnik



silêncio
eu ato-me ao silêncio
eu atei-me ao silêncio
e deixo-me ir
deixo-me beber
deixo-me dizer

apunhalada pela ausência
pela espera infausta
hei-de renascer para
brincadeiras terríveis
e depois lembrar tudo

(Trad. A.M.)
.

17.8.14

Ver (144)







[Eduardo Teixeira Pinto]

.

Aldo Luis Novelli (Antes do fim)





ANTES DEL FINAL



Estoy solo.

Quiero escribir todas las páginas del mundo
leer la cifra secreta oculta en el agua primordial
cantar el canto nuevo de la nueva humanidad/
cantar sin tiempo un canto de lluvia y empaparme la cara
y la sangre de agua fresca/ del agua clara que baja de la cima.

Y me pregunto: ¿por eso estoy aquí?
en medio del desierto rodeado de gente que no conozco.
¿Conozco esta gente? ¿me rodea y me habla a mí? ¿a quiénes hablan?

Quiero decir estos poemas con la voz de un pájaro y el zarpazo de un tigre.
¿Qué son estos poemas? ¿qué es eso que llaman poesía?
Clasificar el mundo y sus objetos y ponerle número
a cada cosa es la religión de los tiempos.
Una legión de fanáticos caminan detrás de los objetos.

El arte es el opio de los pueblos dicen los nuevos pastores
¿existe el arte? ¿el pueblo?
¿dónde están los pastores de este inmenso rebaño de ovejas?

¿Por qué estoy aquí? ¿porqué aquí y no allá?
allá donde el sol broncea el cuerpo de felinas mujeres
o más allá/ donde el hombre inventa distintas muertes cada día/
todos los días.

Estoy solo/
busco amor. Quiero ser el amado.
¿Me alcanzará?
¿Me alcanza esta soledad para escribir el poema total?/
ese aleph/ ese inalcanzable.
¿O el amor y el deseo de una dulce obrera del mercado
es el fin de todas mis utopías?
naranjas papas y manzanas en sus manos sucias y sus jugos en mi cuerpo
y sus ojos admirando mi palabra/ mis sombras/ mis castillos de humo.

¿Para qué nacer amar desamar y morir?
¿para qué Dios de los vencidos?
dime Dios ¿para qué?

Quiero ser el amado/ el bienamado/ el más amado.
¿Y el paraíso terrenal/ la revolución/ la súper hembra/ el gran polvo?
y buscarte en lo alto/ más alto que los fatuos cielos

¿dónde estás padre?

¿Y los hombres/ la libertad/ los ideales supremos/ la loca utopía...?
¿Qué hago acá en este punto infinitesimal del cosmos
intentando trascender con palabras demasiado gastadas?

¿Y los hijos? ¿y esta sangre que me sucede como revolución ansiada?

Hombre que inventa religiones/ mecanismos/ discursos/ fantasmagorías
¿porqué y para qué el poema? ¿dónde la poesía?
¿ese arco tensado entre dos estrellas ilusorias?
¿dónde la flecha que atraviesa esta eternidad de instantes?
la poesía: esa oscuridad/ luz/ pensamiento/ genio encerrado en una botella/
todo y nada.

¿Detendrá mi palabra algún día la bala del suicida o el asesino?
¿es necesario el poema/ el poeta/ el inventado/ para detener esa bala?
¿justificará ese instante el poema? ¿la miseria del mundo/
el hambre/ la muerte sin sentido?

Estoy solo/ sin padres/ sin hijos/ sin amada en medio de la noche cósmica.

Estoy temblando.
Voy a morir.

¡Pero antes voy a salvarme!
¡Antes escribiré el poema que frenará la bala
de la infinita tristeza del hombre!

Aldo Luis Novelli



Estou só.

Quero escrever as páginas todas do mundo
ler a cifra secreta oculta na água primordial
cantar o canto novo da nova humanidade/
cantar sem tempo um canto de chuva e empapar a cara
e o sangue de água fresca/ da água clara que desce do cume.

E pergunto-me: é por isso que estou aqui?
no meio do deserto rodeado de gente desconhecida.
Conheço esta gente? rodeiam-me e falam-me a mim? a quem falam?

Quero dizer estes poemas com a voz de um pássaro e o rasgão de um tigre.
O que são estes poemas? o que é isso a que chamam poesia?
Classificar o mundo e suas coisas e dar um número
a cada qual eis a religião do tempo.
Uma legião de fanáticos caminha atrás dos objectos.

A arte é o ópio do povo dizem os novos pastores
existe a arte? o povo?
onde é que estão os pastores deste imenso rebanho de ovelhas?

Porque é que estou aqui? porquê aqui e não ali?
ali onde o sol cresta o corpo de felinas mulheres
ou mais além/ onde o homem inventa diferentes mortes em cada dia/
todos os dias.

Estou só/
busco amor. Quero ser o amado.
Entender-me-á?
Entende-me esta solidão para escrever o poema total?/
esse aleph/ esse inentendível?
Ou o amor e desejo de uma terna operária
do mercado será o fim das minhas utopias?
batatas laranjas e maçãs em suas mãos sujas
e seu suco no meu corpo
e seus olhos admirando-me a palavra/ a sombra/ os castelos de fumo.

Para quê nascer amar desamar e morrer?
para quê o Deus dos vencidos?
diz-me Deus, para quê?

Quero ser o amado/ o bem-amado/ o mais amado.
E o paraíso terreal/ a revolução/ a super-fêmea/ o grande polvo?
e buscar-te no alto/ mais alto que os fátuos céus

onde é que estás pai?

E os homens/ a liberdade/ os ideais supremos/ a louca utopia?...
O que faço eu aqui neste ponto infinitesimal do cosmos
a tentar entender com palavras demasiado gastas?

E os filhos? e este sangue que me segue como revolução ansiada?

Homem inventor de religiões/ mecanismos/ discursos/ fantasmagorias
porquê e para quê o poema? onde a poesia?
esse arco esticado entre duas estrelas ilusórias?
onde a flecha que atravessa esta eternidade de um instante?
a poesia, essa escuridão/ luz/ pensamento/ génio preso numa garrafa/
tudo e nada.

Minha palavra deterá algum dia a bala do suicida ou do assassino?
é necessário o poema/ o poeta/ o inventado/ para deter essa bala?
justificará o poema esse instante?/ ou a miséria do mundo/
a fome/ a morte sem sentido?

Estou sozinho/ sem pais/ sem filhos/ sem amada no meio da noite cósmica.

Estou a tremer.
Vou morrer.

Mas antes vou-me salvar!
Antes escreverei o poema que travará a bala
da infinita tristeza do homem!


(Trad. A.M.)

.

16.8.14

A.M.Pires Cabral (Vinha morta)





VINHA MORTA



Aqui foi uma vinha.
Comi das suas uvas e bebi
do vinho que essas uvas deram
e temperei saladas
com o vinagre em que esse vinho
se tornou.

Por isso – ainda que hoje as cepas tortuosas,
privadas de todo o verde,
que esbracejam como tendo naufragado
no pérfido mar ocre pálido
do voraz capim do Outono,
lembrem mais que nunca ossadas negras
que o tempo profanou e retorceu –

de algum modo
a vinha está morta e não está:
perdura viva em mim.

Isto, bem entendido, enquanto eu próprio
for algo em que algo possa perdurar.

Depois disso, perdurará naquilo
em que eu mesmo perdure.

E a partir daqui perde-se a conta.


A.M.Pires Cabral


[Pátria Pequena]

.

15.8.14

Alberto Vega (Deus morreu)





Dios ha muerto, Marx ha muerto
(y yo últimamente no me encuentro
nada bien)


El caso es que me busco entre las cosas
vecinas, entre tanto
vino bastardo y tertulia de provincias,
jugándome los pasos a una carta
marcada en la baraja del destino
con orlas de colores y falsos paraísos,
desafiando al tiempo entre mitos y flautas.

Por lo demás, ningún problema. Gracias.

Alberto Vega



Deus morreu, Marx também
(e até eu ultimamente não me sinto
nada bem)

O caso é que me busco entre as coisas
próximas, entre tanto
vinho bastardo e tertúlias de província,
trocando as voltas a uma carta
marcada do baralho do destino
com orlas às cores e falsos paraísos,
o tempo desafiando entre mitos e flautas.

Quanto ao resto, tudo bem. Obrigado.

(Trad. A.M.)

.

14.8.14

Ver (143)







[Eduardo Teixeira Pinto]

.

Iñigo Linaje (O teu coração está batendo)





Tu corazón está latiendo en la oscuridad.
Y este silencio es la vida todavía.

Iñigo Linaje



O teu coração está batendo no escuro.
E este silêncio é ainda a vida.

(Trad. A.M.)

.

13.8.14

Valter Hugo Mãe (Mieloma, um)





MIELOMA, UM



os bichos já devem ter
comido o corpo do meu pai.
a casa já expirou a pulmões cheios
o seu odor. já todos vieram
ver, inclinaram as cabeças
para trás e cacarejaram. nós
somos outros, parecidos e
discretos, mas outros. por isso
agradecemos a visita mas
perante a morte ficamos
irremediavelmente sós

a morte do meu pai não
vos diz respeito. vão-se embora


VALTER HUGO MÃE
Contabilidade
Poesia 1996-2010
Alfaguara (2010)

.

12.8.14

Valeria Pariso (Por isso)




POR ISSO


Tínhamos tantas solidões.
A dos domingos
antes de anoitecer,
a solidão do comboio
com as solidões cingidas,
a dos pátios
a meio do Outono
quando já não se varre
nem folhas nem flores.
Tínhamos a solidão
do quarto de hospital
depois da hora de visita,
a solidão do amor
depois dos presentes,
a dos gatos esquecidos
nas varandas,
a do dono do gato
que esqueceu o gato
que foi atrás da gata
esquecida na varanda
por uma senhora velha
que sofria de Alzheimer.
Tínhamos as solidões
mais inoportunas, mais contraditórias
as solidões mais revolucionárias
e contra-revolucionárias.
Tínhamos solidões
as mais silenciosas.

Quem pode estranhar por isso
que nos fôssemos?

Valeria Pariso



(Trad. A.M.)

.



11.8.14

Raul Brandão (Ria de Aveiro-2)





É um sítio para contemplativos e poetas: qualquer fio de água lhes chega e os encanta.

É um sítio para sonhadores e para os que gostam de se aventurar sobre quatro tábuas, descobrindo motivos imprevistos.

É-o para os que se apaixonam pelo mar profundo, e para os medrosos que só se arriscam num palmo de água – porque a ria é lago e mar ao mesmo tempo.

Com meios muito simples, um saleiro e uma barraca, tem-se uma casa para todo o Verão.

Pesca-se.

Sonha-se.

Toma-se banho.

E esquece-se a vida prática e mesquinha.

Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou abica-se ao areal: um fogaréu, uma vara, a caldeirada...

Começam a luzir no céu e na ria ao mesmo tempo miríades de estrelas.

Vida livre dalguns dias, de que fica um resíduo de beleza que nunca mais se extingue.


- RAUL BRANDÃO, Os Pescadores.

.

Batania (Quero-te tanto)





Quero-te
tanto,
Natalia,
que até me
             ati
              ra
              va contigo pelas
                                     es
                                     ca
                                    das
                                    abaixo e dava-te
                                                          bei
                                                            ji
                                                           nhos um por um
                                                                                em
                                                                                  to
                                                                                  dos os degraus.


(Trad. A.M.)

.

10.8.14

Ricardo Silvestrin (O menos vendido)





O MENOS VENDIDO



Custa muito
pra se fazer um poeta.
Palavra por palavra,
fonema por fonema.
Às vezes passa um século
e nenhum fica pronto.
Enquanto isso,
quem paga as contas,
vai ao supermercado,
compra o sapato das crianças?
Ler seu poema não custa nada.
Um poeta se faz com sacrifício.
É uma afronta à relação custo-benefício.

Ricardo Silvestrin

.

9.8.14

Vicente Gallego (Geração espontânea)




GENERACIÓN ESPONTÁNEA


Este día nublado invita al odio,
predispone a estar triste sin motivo,
a insistir por capricho en el dolor.
Y sin embargo el viento, y esta lluvia,
suenan hoy en mi alma de una forma
que a mí mismo me asombra, y hallo paz
en las cosas que ayer me perturbaban,
y hasta el negro del cielo me parece
un hermoso color.

Cuando no soportamos la tristeza,
a menudo nos salva una alegría
que nace de sí misma sin motivo,
y esa dicha es tan rara, y es tan pura,
como la flor que crece sobre el agua:
sin raíz ni cuidados que atenúen
nuestro limpio estupor.

Vicente Gallego




Este dia de nuvens convida ao ódio,
predispõe a estar triste sem motivo,
a insistir na dor por capricho.
E contudo o vento, a chuva,
entram-me hoje na alma de um modo
que a mim mesmo me assombra,
e encontro paz em coisas que ontem
me perturbavam, e até o negro do céu
me parece uma linda cor.

Quando não suportamos a tristeza,
amiúde nos salva uma alegria
que nasce de si mesma sem motivo,
e essa ventura é tão estranha, e tão pura,
como a flor que cresce à tona de água,
sem raiz nem cuidados que atenuem
o nosso límpido assombro.


(Trad. A.M.)

.

8.8.14

Raul Brandão (Ria de Aveiro-1)





A ria é um enorme pólipo com os braços estendidos pelo interior desde Ovar até Mira.

Todas as águas do Vouga, do Águeda e dos veios que nestes sítios correm para o mar encharcam nas terras baixas, retidas pela duna de quarenta e tantos quilómetros de comprido, formando uma série de poças, de canais, de lagos e uma vasta bacia salgada.

De um lado o mar bate e levanta constantemente a duna, impedindo a água de escoar; do outro é o homem que junta a terra movediça e a regulariza.

Vem depois a raiz e ajuda-o a fixar o movimento incessante das areias, transformando o charco numa magnífica estrada, que lhe dá o estrume e o pão, o peixe e a água da rega.

Abre canais e valas.

Semeia o milho na ria.

Povoa a terra alagadiça, e à custa de esforços persistentes, obriga a areia inútil a renovar constantemente a vida.

Edifica sobre a água, conquistando-a, como na Gafanha, onde alastra pela ria. Aduba-a com o fundo que lhe dá o junco, a alga e o escasso – detritos de pequenos peixes.

Exploram a ria os mercantéis, que fazem o tráfego da sardinha, os barqueiros que fazem os fretes marítimos, os rendeiros das praias que lhe aproveitam os juncais, os marnotos, que se empregam no fabrico do sal, os moliceiros, que apanham as algas, e finalmente os pescadores da Murtosa, que são os únicos a quem se pode aplicar este nome, e que entre outras redes usam a solheira, a rede de salto, a murgeira e a branqueira.


- RAUL BRANDÃO, Os Pescadores.

.

Rosario Castellanos (O outro)




EL OTRO


 ¿Por qué decir nombres de dioses, astros
espumas de un océano invisible,
polen de los jardines más remotos?
Si nos duele la vida, si cada día llega
desgarrando la entraña, si cada noche cae
convulsa, asesinada.
Si nos duele el dolor en alguien, en un hombre
al que no conocemos, pero está
presente a todas horas y es la víctima
y el enemigo y el amor y todo
lo que nos falta para ser enteros.
Nunca digas que es tuya la tiniebla,
no te bebas de un sorbo la alegría.
Mira a tu alrededor: hay otro, siempre hay otro.
Lo que él respira es lo que a ti te asfixia,
lo que come es tu hambre.
Muere con la mitad más pura de tu muerte.
  
Rosario Castellanos



Porquê dizer nomes de deuses, astros
espumas de um oceano invisível,
pólen dos mais remotos jardins?
Se a vida nos dói, se cada dia chega
rasgando as entranhas, se cada noite cai
convulsa, assassinada.
Se nos dói a dor de alguém, de um homem
que não conhecemos, mas está
presente a todas as horas e é a vítima
e o inimigo e o amor e tudo
o que nos falta para sermos inteiros.
Não chames tua à nuvem
e a alegria não a bebas dum trago.
Olha em volta, há outro, há sempre outro.
O que ele respira é o que a ti te abafa,
o que ele come é a tua fome.
Morre com a metade mais pura da tua morte.

(Trad. A.M.)


> Outra versão: Raposas a sul (António Cabrita)

.



7.8.14

Leonard Cohen (Amor é fogo)





Love is a fire.
It burns everyone.
It disfigures everyone.
It is the world's excuse
for being ugly.

Leonard Cohen




Amor é fogo,
a todos queima,
a todos desfigura.
É a desculpa de todos
de serem horríveis.

(Trad. A.M.)




>>  LC-Homepage / Leonard Cohen Files (sítio/tudo+algo)

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6.8.14

Roque Dalton (Sobre a moral poética)





SOBRE NUESTRA MORAL POÉTICA



No confundir, somos poetas que escribimos
desde la clandestinidad en que vivimos.

No somos, pues, cómodos e impunes anonimistas:
de cara estamos contra el enemigo
y cabalgamos muy cerca de él, en la misma pista.

Y al sistema y a los hombres
que atacamos desde nuestra poesía
con nuestra vida les damos la oportunidad de que se cobren,
día tras día.

Roque Dalton




Não confundir, somos poetas e escrevemos
da clandestinidade em que vivemos.

Não somos, portanto, impunes e cómodos anónimos,
estamos contra o inimigo, de frente,
e cavalgamos perto dele, na mesma pista.

E ao sistema e aos homens
que atacamos da nossa poesia
damos-lhes com nossa vida a ocasião de se pagarem,
dia após dia.


(Trad. A.M.)

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5.8.14

Raul Brandão (Manhãs-2)





Há manhãs em que a poeira do mar se mistura à poeira azul do céu.

Um hálito fresco e húmido, uma exalação viva e salgada, vem do largo e das profundas – de toda essa constante agitação, que nos dá um sentimento de vida ilimitada.

Sai dos farrapos da névoa, dos laivos onde bóiam espumas, dos redemoinhos lívidos de cólera.

A esta hora o dia está de chumbo.

No horizonte a claridade debate-se para irromper, e só ilumina uma parte do mar em fusão.

Não se vê ainda a costa.

A névoa flutua em farrapos, e de repente, lá do fundo uma espessa fumarada cresce sobre a terra.

Só muito longe uma nódoa azul esparralhada flutua à superfície das águas...

Os barcos formam circulo para além da baía, entre as Berlengas e a costa: sete, oito, dez, de vela triangular, que se preparam para erguer a armação da sardinha – uma grande rede com um saco – o copo.

A sardinha, ao encontrar no seu caminho a rede, deriva para o saco, tirando-a os pescadores com a xalavara para dentro dos barcos.

É uma onda de prata que sai da tinta azul.

Cheira a algas e a mar vivo.

Impregna-me e trespassa-me.

Deixa-me sal nos beiços.


- RAUL BRANDÃO, Os Pescadores.

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Roger Wolfe (Noches de blanco papel)





NOCHES DE BLANCO PAPEL



Tú contra el mundo
y el mundo contra ti.
Y en esta guerra sólo hay una
cosa que es segura:
aquí va a haber
un muerto.


Roger Wolfe

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4.8.14

Sophia de Mello Breyner Andresen (Instante)





INSTANTE

               

Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio


Sophia de Mello Breyner Andresen

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3.8.14

Roberto Juarroz (Há poucas mortes inteiras)





(25)

Hay pocas muertes enteras.
Los cementerios están llenos de fraudes.
Las calles están llenas de fantasmas.

Hay pocas muertes enteras.
Pero el pájaro sabe en qué rama última se posa
y el árbol sabe dónde termina el pájaro.

Hay pocas muertes enteras.
La muerte es cada vez más insegura.
La muertes es una experiencia de la vida.
Y a veces se necesitan dos vidas
para poder completar una muerte.

Hay pocas muertes enteras.
Las campanas doblan siempre lo mismo.
Pero la realidad ya no ofrece garantías
y no basta vivir para morir.

Roberto Juarroz




Há poucas mortes inteiras.
Os cemitérios estão cheios de fraudes.
E as ruas de fantasmas.

Há poucas mortes inteiras.
Mas o pássaro sabe em que último ramo pousa
e a árvore sabe onde o pássaro termina.

Há poucas mortes inteiras.
A morte é cada vez mais insegura.
A morte é uma experiência da vida.
E às vezes duas vidas são precisas
para se completar uma morte.

Há poucas mortes inteiras.
Os sinos dobram sempre igual.
Mas a realidade já não dá garantias
e para morrer já nem basta viver.

(Trad. A.M.)



> Outra versão:  Luz & sombra (Arnaldo Saraiva)

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2.8.14

Raul Brandão (Manhãs-1)





Há manhãs à beira-mar em que tudo parece um pouco de tinta muito leve e mais nada.

Um pouco de tinta e frescura.

A própria luz molhada estremece.

O doirado tem muita água e desbota.

Uma gota de azul basta para o mar e o céu.

E a manhã, trespassada e a escorrer, nascida e hesitando, faz medo que se desvaneça como fantasmas de manhã.


- RAUL BRANDÃO, Os Pescadores.

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Batania (A morte)




LA MUERTE



Por tanto,
la locura sabe mi nombre
y los féretros fueron calumniados:
la muerte es un retiro,
la muerte es una gárgola,
la muerte es la alfombra y turba necesaria,
pero yo
entonces
pregunto
por qué al primer disparo me saltaron los dientes
de leche,
por qué mi padre está muerto
y a salvo
y siento míos sus gusanos,
por qué me siguen comiendo,
día a día,
cada minuto,
por qué esta noche
los trenes huyen como leopardos,
no os entiendo,
la gente se muere
y no os atrevéis a cortar las calles,
no quemáis los contenedores,
no lanzáis piedras contra ellos,
no escapáis de los antidisturbios,
os odio, me dais asco,
quisiera meteros un cactus en la boca
o que ardierais en una pira
con vuestras biblias de cobardes,
queréis acostumbrarme a la muerte
pero la muerte
no es ninguna maestra,
no es ningún telescopio,
la muerte no es un atlas,
no da sabiduría,
la muerte no da nada
más que miedo,
silencio,
soledad
y rabia.


BATANIA / NEORRABIOSO
La poesía ha vuelto y yo no tengo la culpa
Madrid (2014)

[Neorrabioso]



Portanto,
a morte sabe o meu nome
e os féretros foram caluniados:
a morte é um retiro,
uma gárgula
é o tapete e turfa necessária
mas então
eu pergunto
porque é que me saltaram
os dentes de leite
ao primeiro tiro,
porque é que está meu pai morto
e a salvo
e. eu sinto em mim seus bichos,
porque me comem,
dia a dia
em cada minuto,
por que raio esta noite
fogem os comboios como leopardos,
não entendo,
as pessoas morrem
e vós não cortais as ruas,
não queimais contentores,
não lhes atirais pedras,
não fugis da polícia,
odeio-vos, meteis-me nojo,
só queria meter-vos um cacto na boca
ou então queimar-vos na fogueira
com vossa bíblias de cobardes,
quereis acostumar-me à morte,
mas a morte
não é mestra nenhuma,
não é nenhum telescópio,
a morte não é um atlas,
a morte não dá nada,
só medo,
solidão,
silêncio
e raiva.

(Trad. A.M.)



>>  Neorrabioso (blogue-1) / Batania (blogue-2) / Baldosas Rojas (nota) / Tarantula (recensão)

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1.8.14

António Franco Alexandre (Primeiras moradas-14)





PRIMEIRAS MORADAS (14)



a arte do retrato, a natureza das palavras
o corpo, que as ficções habitam
como um recinto mal iluminado, aberto
sobre a noite de luzes rectilíneas, longe,
descrevendo o silêncio e, dentro do silêncio,
a sem memória súbita de nunca;

o sentimento penetrável, embrulhado
em algumas imagens, receio, sempre as mesmas,
uma estrada, uma estrela, as arestas do frio,
a vulgar aventura de uma esquina, quando
o infinito pudor os descobre, despidos
de qualquer comoção ou despedida,

minuciosos são os mapas, terras
onde jamais viajas, entregue a essas
razões inúteis que te deste,
a gelatina branca das palavras, o retrato
mal concebido de um ser extraterrestre,
a brandura de nada ter sentido.


António Franco Alexandre

[Luz & sombra]


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