31.7.14

Luis García Montero (A nossa noite)





NUESTRA NOCHE



Quisiera perseguir algún poema
que hablase de mis noches, nuestra noche,
la misma noche cálida de rostros conocidos,
en el mismo rincón, ya no hace falta
preguntar lo que bebe cada uno.

Escribir, por ejemplo, puedo cerrar los ojos
y todo sigue igual, abro despacio
la puerta fría de color madera,
intimidad con humo de luz almacenada,
y risas en el fondo,
y una voz que denuncia mi costumbre
de llegar siempre tarde.

Escribir, por ejemplo, son ahora
mucho menos frecuentes estas noches,
y recuerdan inviernos negociados
con renta de amistad,
y tienen algo
de temblor fugitivo.
Las caras han cambiado, saben cosas
y se parecen más a nuestras vidas.

Escribir, por ejemplo, que los ojos,
cuando pasa la noche y en la calle
duele la luz del alba,
tienen otra manera de mirarse,
un modo más avaro de pensar
en los años, los meses, las semanas,
los días y las horas.

Noche eterna, tal vez
será mejor llamarte reincidente.

Luis García Montero



Queria perseguir um poema
que falasse de minhas noites, da nossa noite,
a mesma noite cálida de caras conhecidas,
no mesmo canto, não é preciso já
perguntar o que bebe cada um.

Escrever, por exemplo, posso fechar os olhos
e tudo fica igual, abro devagar
a porta fria da cor da madeira,
intimidade com fumo e luzes
e risos lá ao fundo,
e uma voz que acusa o meu costume
de chegar sempre tarde.

Escrever, por exemplo, tais noites
são agora muito menos frequentes,
recordando invernos negociados
com renda de amizade,
além de terem algo
de tremura fugaz.
As caras mudaram, sabem coisas
e parecem-se mais com as nossas vidas.

Escrever, por exemplo, que os olhos,
quando a noite se vai e dói já
na rua a luz da aurora,
têm outro modo de se olhar,
um modo mais avaro de pensar
nos anos, nos meses, nas semanas,
nos dias e nas horas.

Noite eterna, será melhor
talvez chamar-lhe reincidente.

(Trad. A.M.)

.

30.7.14

Coitado do Jorge (91)





OPTIMISMO




Sem tecto, entre ruínas...
(Como Raul Brandão, retomado por Abelaira)


Tranquilo.
Não te cairá nada em cima...



.

Raúl Sánchez (Recheio)





RELLENO



No me sirven de nada, son susurros,
vacío formulario, paja, sílabas
contadas de manera rutinaria
igual que lo hace un triste tesorero

que no verá en sus arcas ni el reflejo
de todos los billetes y monedas
que pasan presurosos por sus dedos
directos al botín de quien le explota:

palabras que fracasan al juntarse
para intentar captar esa certeza
de estar hechos el uno para el otro

que nos embarga al poco del extático
- fugaz, inabarcable y persistente -
momento en que gemimos al unísono

y el mundo es una perla y tú su concha.

Raúl Sánchez

[Asideros del abismo]



Não me servem de nada, são sussurros,
vazio formulário, palha, sílabas
contadas de modo rotineiro
tal como faz um triste tesoureiro

que não verá na sua arca nem o reflexo
das notas e moedas que lhe passam
pressurosas pelos dedos
direitas ao cofre de quem o explora:

palavras que fracassam ao juntar-se
para tentar captar esta certeza
de sermos feitos um para o outro

que nos embarga do estático
- fugaz, intangível e persistente -
momento em que gememos em uníssono

e o mundo é uma pérola e tu a concha.


(Trad. A.M.)

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29.7.14

Rosa Alice Branco (Seu a seu dono)





SEU A SEU DONO



A pele espera nas coisas a carícia do uso
como o cão anseia pelo dono.
O bordo do corpo, os dentes do garfo.
Usurpar os lábios entreabertos
como a alma útil e desinteressada.
Um gole de. Faz-se tarde.
O vinho faz esquecer a pele do copo.
Porque tocar (pensa ela)
é uma confidência nocturna.
Lá fora as flores. As sebes.
O ressumar de amantes no cálice.
Toco-te com mãos alheias:
eis toda a confidência de que sou capaz.
Um vestido de seda a abrir na minha perna:
um osso para te fazer correr:
um ganido de amor à porta do prédio.


Rosa Alice Branco


[Luz & sombra]

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28.7.14

Piedad Bonnett (Contabilidade)






CONTABILIDAD



El debe y el haber
doble columna
que el tiempo va asentando
sobre el libro de cuentas de los días
con mano minuciosa
y rigor que no admite apelaciones.
Tarde ves el balance,
las deudas, los desfases,
las pérfidas movidas del contable
que hizo que aquel cruzara muy temprano
y este otro muy tarde por tu vida.
Y está lo que no ves,
lo consignado con miserables tintas invisibles:
la puerta que tocaste diez minutos después
de alguna despedida. La voz que nunca oíste,
la calle no cruzada, el paradero
en que tuviste miedo de bajarte.
Y en un rojo indeleble,
la cadena de tratos y pactos y traiciones,
la irreversible línea que te suma y te resta,
la que te multiplica y te divide.

Piedad Bonnett

[Piedad Bonnett]




O deve e o haver
dupla coluna
que o tempo vai assentando
no livro de contas dos dias
com mão minuciosa
e rigor sem apelo.
Tarde vês o balanço,
as dívidas, as diferenças
as pérfidas mexidas do contabilista
fazendo que este passasse mui cedo
e o outro mui tarde na tua vida.
E mais aquilo que tu não vês,
o inscrito com tinta invisível,
a porta a que bateste dez minutos após
a despedida. A voz que nunca ouviste,
a rua não atravessada, a paragem
em que tiveste medo de descer.
E a vermelho indelével,
o rol de tratos e pactos e traições,
a linha irreversível que te soma e subtrai,
que te multiplica e divide.

(Trad. A.M.)

.

27.7.14

Raul Brandão (Caminha)





Caminha esta manhã é um sonho doirado que – tenho medo – se vai esvair na atmosfera.

O rio azul, o grande monte fronteiriço, a água, o céu, não têm existência real.

Sobre o esplêndido panorama diáfano e azul, sobre o cone imenso e compacto de Santa Tecla, sobre a povoação de Campozandos, sobre os pinheirais verdes e os campos verdes, sobre a água que não bole, passou agora mesmo um pincel molhado em tinta acabada de fazer.

A vila de ruas lajeadas e a igreja de pedra roída pelo ar salgado, com a Galiza em frente e o fio branco de espuma lá para a barra, parece adormecida e encantada.

Deviam-na deixar morrer intacta, sem lhe deitarem as muralhas abaixo, envolta no doirado que a traz entontecida.


- RAUL BRANDÃO, Os Pescadores.

.

Pedro Andreu (Vivalgia)





VIVALGIA



Vivir a medias o del todo,
de lado, del revés o bocabajo.
Vivir despacio, deprisa, sin aliento.
Vivir en falso o a pecho descubierto,
a las malas y en los días mejores.
Vivir los cumpleaños y también los entierros.
Agarrarse a vivir hasta en los hospitales
o en las clases de griego.
Hasta que duela el tuétano.
Vivir sin ganas aunque sea,
porque ya llegarán
las vivas ganas de estar vivo de nuevo.
Vivir en los amores y en su ausencia,
en la cola del paro y el trabajo.
En los libros, dentistas, vacaciones.
Pero vivir, joder, ¡vivir!,
a pesar de estar vivos o tan muertos
como a veces estamos.
Vivir a todo trapo y para siempre
como si no cerrase nunca por derribo
la existencia. Enfermos de vivalgia:
supervivientes.

Pedro Andreu




Viver a meio ou à toda,
de lado, do avesso ou de cabeça para baixo.
Viver devagar, depressa, sem descanso.
Viver em falso ou a peito descoberto,
às más e nos dias melhores.
Viver os aniversários , mas também os enterros.
Agarrar-se à vida até no hospital
ou nas aulas de grego.
Até doer o tutano.
Viver sem ganas, embora seja
por depois virem
as vivas ganas de estar vivo de novo.
Viver nos amores e na sua ausência,
na fila do desemprego e no trabalho.
Nos livros, no dentista, nas férias.
Mas viver, porra, viver!,
apesar de vivos ou de tão mortos
como estamos às vezes.
Viver à grande e para sempre
como se a vida não acabasse nunca.
Enfermos de vivalgia,
sobreviventes.

(Trad. A.M.)

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26.7.14

Ricardo Silvestrin (Nada garante)





Nada garante que esta noite
se apague no claro do dia
só porque um dia antes
era assim que acontecia.
Dorme teu sono, acorda dissonante,
sem saber se eras tu
ou tua sombra
que do sonho emergia.
Lava teus olhos, cospe na pia.
Enquanto dormias,
o espelho estava acordado.
Abre a janela, espia:
quem sabe o mundo
ainda está do outro lado.


Ricardo Silvestrin



>>  Ricardo Silvestrin (sítio) / Silvestrin (blogue) / Tanto (6p) / Facebook / Wikipedia

.

25.7.14

Pedro A. González Moreno (Chove sobre a noite)





(24)


Llueve sobre la noche y sobre el mundo,
pero no lava el agua los recuerdos.
Aúllan
erráticas metáforas que buscan encarnarse
sobre la sed de un verso
y se despeñan, turbios, los afluentes
del dolor.
Como perros
en la noche sin luna, las sombras olfatean
el olor de unas ropas que ya no son de nadie.

Con el aire sonámbulo de un animal sin dueño,
husmea la memoria
entre escombros de días y semanas que nunca
llegaron a vivirse por completo.
Olfatea
un rastro de perfume
que se quedó enquistado entre las sábanas
o enredado en la piel de las cortinas.
Va bebiéndose en tragos de alcohol la madrugada
y mientras llueve, busca
el vértigo de un puente
colgado entre dos cuerpos o entre dos precipicios
que parecen unidos por su propia distancia .
Y mientras llueve, aúllan
por las calles vacías, por la carne
vacía, los recuerdos.
Y en la helada intemperie
de las habitaciones
y por los descampados de todas las esquinas,
solamente se escucha
esta lluvia de azufre y cal que cae
sobre la sed del mundo.


PEDRO A. GONZÁLEZ MORENO
Calendario de sombras
(2005)


[Javier Díaz Gil]




Chove sobre a noite e o mundo,
mas a água não lava as lembranças.
Uivam
erráticas metáforas, tentando encarnar
na sede de um verso
e despenham-se, turbados, os afluentes
da dor.
Cachorros
na noite sem lua, as sombras farejam
algumas vestes que já não são de ninguém.

Com o ar sonâmbulo de um animal sem dono,
fusga a memória
entre escombros de dias e semanas
que não se viveram por inteiro.
Fareja um rasto de perfume
que ficou enquistado entre os lençóis
ou enredado na pele das cortinas.
Vai bebendo em tragos de álcool a madrugada
e enquanto chove, busca
a vertigem da ponte
suspensa entre dois corpos ou dois abismos
que parecem unidos por sua própria distância.
E enquanto chove, uivam
pelas ruas vazias, pela carne
vazia, as recordações.
E na tempestade gelada
das casas,
nas esquinas e nos descampados,
escuta-se apenas
esta chuva de cal e enxofre,
tombando sobre a sede do mundo.

(Trad. A.M.)

.

24.7.14

Raul Brandão (Momentos)





A vida passa e um momento da vida não passa mais – transforma-se.

E a aproximação da morte reveste-o de outra cor.

Por isso agora vejo tudo cada vez mais nítido...

Vejo os buracos nos muros e os reflexos ao lume de água que duram um momento e se renovam sempre.

É o sol que lhes dá vida e os ilumina.

São instantâneos.

Movem-se, somem-se e dão lugar a outros.

São agitados e doirados.

Uma aparência, um jogo de luz, como as existências efémeras que passam e o sonho que não deixa vestígios e só um instante se desenha à superfície da vida...


- RAUL BRANDÃO, Os Pescadores.

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Raquel Lanseros (Invocação)





INVOCACIÓN



Que no crezca jamás en mis entrañas
esa calma aparente llamada escepticismo.

Huya yo del resabio,
del cinismo,
de la imparcialidad de hombros encogidos.

Crea yo siempre en la vida,
crea yo siempre
en las mil infinitas posibilidades.

Engáñenme los cantos de sirenas,
tenga mi alma siempre un pellizco de ingenua.

Que nunca se parezca mi epidermis
a la piel de un paquidermo inconmovible,
helado.

Llore yo todavía
por sueños imposibles
por amores prohibidos
por fantasías de niña hechas añicos.

Huya yo del realismo encorsetado.

Consérvense en mis labios las canciones,
muchas y muy ruidosas y con muchos acordes.

Por si vinieran tiempos de silencio.

Raquel Lanseros

[Sureando]



Que não me cresça jamais nas entranhas
essa calma aparente chamada cepticismo.

Que eu escape do ressaibo,
do cinismo,
da imparcialidade de ombros encolhidos.

Que eu creia sempre na vida,
que sempre eu creia
nas mil infinitas possibilidades.

Enganem-me os cantos de sereias,
tenha sempre minha alma uma pitada de ingénua.

Que minha epiderme não lembre
a pele de um paquiderme indiferente,
gelado.

Que eu chore ainda
por sonhos impossíveis
por amores proibidos
por fantasias de menina feitas em tiras

Que eu fuja do realismo encoletado

E guardem meus lábios as canções,
muitas e muito ruidosas e com muitos acordes.

Para o caso de virem aí tempos de silêncio.

(Trad. A.M.)

.

23.7.14

Pedro da Silveira (Quatro motivos da Fajã Grande-1)





QUATRO MOTIVOS DA FAJÃ GRANDE (I)



Em frente,
mar.
Para trás
rochas a pique
vedam todos os caminhos.

Vem o Inverno
Vem o Verão.

Na loja vazia o dono boceja.
A grapuada joga ao pião.
Um carro de bois chia.

E é tudo tão igual,
Tão encharcado de solidão
Que a gente às vezes já nem sabe
se vive.

Pedro da Silveira


[Pico da vigia]


> Manuel da Fonseca (Aldeia)

.

22.7.14

Paco Moral (Constatações)





CONSTATACIONES


1
Es mentira que el tiempo
ponga a nadie en su sitio.
Como mucho otorga espacio y alma a quien no los merece.
Es implacable, es cierto,
pero yerra el disparo en cada ejecución.
Le tiembla el pulso.

2
La soledad no es buena,
lo diga el 'sursum corda' o el diablo.
Tan sólo te acompaña cuando te estás muriendo.
Eso sí, no te reprocha nada
porque es muda.

3
Casi nunca el amor es de ida y vuelta.
A lo que se aproxima
en su avaricia es al dolor recíproco.
Y a compartir migajas que son de otros.
Pero sin duda ayuda a transitar naufragios.
Como Dios, que aunque aprieta nunca ahoga.
O eso dicen.

Paco Moral



1
É mentira que o tempo
ponha alguém no seu lugar.
Quando muito outorga espaço e alma a quem não merece.
É implacável, é certo,
mas erra o tiro em cada disparo.
Treme-lhe o pulso.

2
Não é boa a solidão,
quer o diga o diabo ou 'sursum corda'.
Tão só te acompanha quando estás para morrer.
Isso sim, não te censura nada
porque é muda.

3
O amor quase nunca é de ir e voltar.
Do que está perto
na sua avareza é da dor recíproca.
E de partilhar migalhas que pertencem a outros.
Mas ajuda decerto a superar naufrágios.
Como Deus, que embora aperte nunca esmaga.
Ou assim dizem.

(Trad. A.M.)

.

21.7.14

Coitado do Jorge (90)





PÃO DE LÁGRIMAS




É pão com lágrimas
Tens o pão
Molhas com as lágrimas


.

Pablo Neruda (Se me esqueceres)





SI TU ME OLVIDAS



Quiero que sepas
una cosa.

Tú sabes cómo es esto:
si miro
la luna de cristal, la rama roja
del lento otoño en mi ventana,
si toco
junto al fuego
la impalpable ceniza
o el arrugado cuerpo de la leña,
todo me lleva a ti,
como si todo lo que existe,
aromas, luz, metales,
fueran pequeños barcos que navegan
hacia las islas tuyas que me aguardan.

Ahora bien,
si poco a poco dejas de quererme
dejaré de quererte poco a poco.

Si de pronto
me olvidas
no me busques,
que ya te habré olvidado.

Si consideras largo y loco
el viento de banderas
que pasa por mi vida
y te decides
a dejarme a la orilla
del corazón en que tengo raíces,
piensa
que en ese día,
a esa hora
levantaré los brazos
y saldrán mis raíces
a buscar otra tierra.

Pero
si cada día,
cada hora
sientes que a mí estás destinada
con dulzura implacable.
Si cada día sube
una flor a tus labios a buscarme,
ay amor mío, ay mía,
en mí todo ese fuego se repite,
en mí nada se apaga ni se olvida,
mi amor se nutre de tu amor, amada,
y mientras vivas estará en tus brazos
sin salir de los míos.

Pablo Neruda

[Yo soy de aqui]



Quero que saibas
uma coisa.

Tu sabes como é:
olhando
a lua de cristal, o ramo vermelho
do Outono lento na janela,
tocando
ao pé do lume
a impalpável cinza
ou o corpo enrugado da lenha,
tudo me leva a ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz, metais,
fossem pequenos barcos navegando
para as tuas ilhas à minha espera.

Ora bem,
se deixares pouco a pouco de me amar
eu deixarei também de te amar pouco a pouco.

Se de repente
me esqueceres
não me procures,
porque eu já te terei esquecido.

Se achares longo e louco
o vento de bandeiras
que me passa pela vida
e te resolveres
a deixar-me na margem
do coração em que tenho raízes,
pensa
que nesse dia,
a essa hora
eu levantarei os braços
e as minhas raízes sairão
em busca de outra terra.

Porém
se em cada dia,
a toda a hora,
te sentires feita para mim
com implacável doçura,
se cada dia puser
uma flor em teus lábios em busca de mim,
ai amor meu, ai minha,
todo esse fogo em mim se renova,
nada se apaga em mim nem se esquece,
meu amor alimenta-se do teu amor,
e enquanto viveres estará em teus braços
sem dos meus sair.


(Trad. A.M.)

.

20.7.14

Manuel Bandeira (Testamento)





TESTAMENTO



O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros – perdi-os...
Tive amores – esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra,
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me desde eu menino,
Para arquiteto, meu pai.
Foi-se um dia a saúde...
Fiz arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

Manuel Bandeira


[Poemas de Bandeira]

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19.7.14

Nicanor Parra (Mulheres)





MUJERES



La mujer imposible,
La mujer de dos metros de estatura,
La señora de mármol de Carrara
Que no fuma ni bebe,
La mujer que no quiere desnudarse
Por temor a quedar embarazada,
La vestal intocable
Que no quiere ser madre de familia,
La mujer que respira por la boca,
La mujer que camina
Virgen hacia la cámara nupcial
Pero que reacciona como hombre,
La que se desnudó por simpatía
(Porque le encanta la música clásica),
La pelirroja que se fue de bruces,
La que sólo se entrega por amor,
La doncella que mira con un ojo,
La que sólo se deja poseer
En el diván, al borde del abismo,
La que odia los órganos sexuales,
La que se une sólo con su perro,
La mujer que se hace la dormida
(El marido la alumbra con un fósforo),
La mujer que se entrega porque sí
Porque la soledad, porque el olvido…
La que llegó doncella a la vejez,
La profesora miope,
La secretaria de gafas oscuras,
La señorita pálida de lentes
(Ella no quiere nada con el falo),
Todas estas walkirias
Todas estas matronas respetables
Con sus labios mayores y menores
Terminarán sacándome de quicio.


Nicanor Parra

[Escomberoides]



A mulher impossível,
A mulher de dois metros de altura,
A senhora de mármore de Carrara
que não fuma nem bebe,
A mulher que não quer despir-se
com medo de engravidar,
A vestal intocável
que não quer ser mãe de família,
A mulher que respira pela boca,
A mulher que caminha
virgem até à câmara nupcial
mas que reage como um homem,
A que se despiu por simpatia
(porque adora música clássica),
A ruiva que se foi de borco,
A que se entrega só por amor,
A donzela que olha com um olho,
A que se deixa possuir só
no divã, à beira do abismo,
A que odeia os órgãos sexuais,
A que se une só com o cão,
A mulher que faz de adormecida
(o marido alumia-a com um fósforo),
A mulher que se entrega porque sim,
pois a solidão, pois o esquecimento...
A que chegou donzela à velhice,
A professora míope,
A secretária de óculos escuros,
A senhorita pálida com lentes
(ela não quer nada com o falo),
Todas estas valquírias
com seus lábios maiores e menores
acabarão por me tirar do sério.

(Trad. A.M.)

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18.7.14

Raul Brandão (Saudade, ternura)





O que revivo mais profundamente?

Revivo a expressão de uns olhos húmidos que me seguiam sempre, e compreendo que toda esta cor e este oiro que desapareceram e teimam em reluzir, correspondem a um momento único da vida em que se descobre o mundo que vai morrer e que se fixa por fim em saudade e ternura.

É o que tenho mais pena de deixar quando sinto que me levam não sei para onde e cada vez para mais longe.

Agita-se então em sonhos o mundo que não existe, e os mortos adquirem uma expressão que é a da minha própria alma.

Se isto é ternura, a ternura é o que há de melhor no mundo; se é saudade, a morte é o que há de melhor na vida.


- RAUL BRANDÃO, Os Pescadores.

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Sílvia Nieva (Os abutres)





LOS BUITRES



Esta es la primera página,
la espontánea,
la que no pensé.
No respondo por ella.

Es el muro blanco de la infancia.
Oculta el miedo a rasgarse,
al ruido de lo otro.

Ando despacio,
a veces corro.
Puedo mirar atrás,
perderlo todo
y construir el mar con la sal de las estatuas.

Recojo las piedras de otras casas,
por eso soy distinta de los que me hicieron,
tan distinta que parezco otra y no me reconocen.

No soy su proyecto.
Soy mucho más lenta, más volátil,
aunque llevo las marcas de su rostro,
y eso asusta,
y eso no puede matarse sin matarme.

Arrastro una madre,
arrastro una mujer inmóvil, asustadiza,
como un carro de caballos locos.
A veces chillan,
y tengo que girarme.

Ahora son delfines, y me hunden.
Los mismos gritos.
Ahora son hormigas,
y cavan túneles que sobrevuelo.

Ahora buitres esperando la caída,
el golpe de partir los huesos,
de romper cartílagos,
esparcir la carne.

Mientras,
inmóvil,
la madre observa.


SILVIA NIEVA
La fábrica de hielo
Canalla Ediciones (2014)


[Apología de la luz]




Esta é a primeira página,
a espontânea,
a que não pensei.
Não respondo por ela.

É o muro branco da infância.
Oculta o medo de rasgar,
ao ruído do outro.

Ando devagar,
às vezes corro.
Posso olhar para trás,
perder tudo
e fazer o mar com o sal das estátuas.

Apanho as pedras de outras casas,
por isso sou diferente dos que me fizeram,
tão distinta que pareço outra e não me reconhecem.

Não sou como queriam.
Sou muito mais lenta, mais volátil,
embora seja parecida de cara,
e isso assusta,
e não posso riscá-lo sem me riscar.

Arrasto uma mãe,
arrasto uma mulher parada, assustadiça,
como um carro de cavalos espantados.
Às vezes chiam
e tenho de me virar.

Depois são golfinhos, e afundam-me.
Os mesmos gritos.
Depois formigas,
e cavam túneis que eu sobrevoo.

Depois abutres esperando a queda,
a pancada de partir os ossos,
rasgar cartilagens,
esmagar a carne.

Enquanto isso,
parada,
a mãe observa.

(Trad. A.M.)

.

17.7.14

Paulo Leminski (O que passou, passou)





O QUE PASSOU, PASSOU?



Antigamente, se morria.
1907, digamos, aquilo sim
é que era morrer.
Morria gente todo dia,
e morria com muito prazer,
já que todo mundo sabia
que o Juízo, afinal, viria
e todo o mundo ia renascer.
Morria-se praticamente de tudo.
De doença, de parto, de tosse.
E ainda se morria de amor,
como se amar morte fosse.
Pra morrer, bastava um susto,
um lenço no vento, um suspiro e pronto,
lá se ia nosso defunto
para a terra dos pés juntos.
Dia de anos, casamento, batizado,
morrer era um tipo de festa,
uma das coisas da vida,
como ser ou não ser convidado.
O escândalo era de praxe.
Mas os danos eram pequenos.
Descansou. Partiu. Deus o tenha.
Sempre alguém tinha uma frase
que deixava aquilo mais ou menos.
Tinha coisas que matavam na certa.
Pepino com leite, vento encanado,
praga de velha e amor mal curado.
Tinha coisas que têm que morrer,
tinha coisas que têm que matar.
A honra, a terra e o sangue
mandou muita gente praquele lugar.
Que mais podia um velho fazer,
nos idos de 1916,
a não ser pegar pneumonia,
e virar fotografia?
Ningém vivia pra sempre.
Afinal, a vida é um upa.
Não deu pra ir mais além.
Quem mandou não ser devoto
de Santo Inácio de Acapulco,
Menino Jesus de Praga?
O diabo anda solto.
Aqui se faz, aqui se paga.
Almoçou e fez a barba,
tomou banho e foi no vento.
Agora, vamos ao testamento.
Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos, tem asilos, tem remédios.
Agora, a morte tem limites.
E, em caso de necessidade,
a ciência da eternidade
inventou a criônica.
Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.


Paulo Leminski

[Poemblog]

.


16.7.14

Miriam Reyes (Meu pai doente de sonhos)





Mi padre enfermo de sueños
en el asfalto incandescente
de cien mil mediodías caminados
bajo el sol en vertical
perdió sus pies
y apoyado en sus rodillas sigue buscando
el camino de vuelta a casa.

Mi padre sueña,
rendido por el cansancio,
que vuelve a su tierra y planta sus piernas
y le crecen pies jóvenes
y la savia de su tierra negra
le alivia el dolor de las arrugas
y resucita sus cabellos muertos.

Luego despierta en un piso alquilado
a la ciudad de los huracanes de la miseria
y blasfema y maldice y no tiene amigos.
Escondido en la noche
papá llora por las certezas que lo defraudaron.

Del otro lado de su piel
mamá llora por mamá
mamá llora por su casa que ya no habita
y por paz y reposo y risa.

Papá y mamá lloran
cada uno a espaldas del otro en la cama
en el más crudo estruendoso hermoso silencio
que modula en frecuencias infrahumanas
sonidos que se articulan como palabras:
«si aquí no están mis sueños
cómo puedo dormir aquí».
Y que sólo yo escucho
con la cabeza enterrada en la almohada.

Concebida de la nostalgia
nací con lágrimas en el sexo
con tierra en los ojos
con sangre en la cabeza.
No soy lo que soñaron
como tampoco lo son sus vidas.

Miriam Reyes



Meu pai doente de sonhos
no asfalto incandescente
de cem mil meios-dias andados
debaixo do sol a pique
perdeu os pés e de joelhos
continua em busca do caminho para casa.

Meu pai sonha,
vencido pelo cansaço,
que volta à terra e planta as pernas
e nascem-lhe pés novos
e a seiva da terra negra
alivia-lhe a dor das rugas
e ressuscita-lhe os mortos cabelos.

Depois acorda num andar arrendado
à cidade dos furacões da miséria
e blasfema e pragueja e amigos não tem.
Escondido na noite, chora
papá as certezas que o defraudaram.

Do outro lado da pele
mamã chora por mamã
pela casa que já não habita
e por paz e repouso e alegria.

Choram papá e mamã na cama
cada um nas costas do outro
no mais belo cru estrondoso silêncio
que modula em frequências infra-humanas
sons que se articulam como palavras:
“Não estando aqui meus sonhos,
como posso eu dormir aqui?”.
E que só eu escuto,
com a cabeça enterrada na almofada.

Concebida pela saudade
nasci com lágrimas no sexo
com terra nos olhos
com sangue na cabeça.
Não sou aquilo que sonharam
como não o são tão pouco as suas vidas.


(Trad. A.M.)

.

15.7.14

Raul Brandão (Até as coisas)





É que tudo, até as coisas, num dado momento, foram para mim seres de uma vida extraordinária; um ser esplêndido, o rio, a que me entrego dentro de quatro tábuas; o cabedelo cheio de mistério, onde ponho os pés com terror; o largo, o profundo mar, que me levou alguns dos meus, constante preocupação desta gente, e que de quando em quando os mata à minha vista.

As figuras em sonhos tornam-se a debruçar para mim, estendendo-me outra vez as mãos...

E é sonhando também que me recordo de certas coisas sem importância: do jeito que era preciso dar às portas manhosas, para as poder abrir, de uma expressão de que me separam léguas de esquecimento, de pequenos nadas que duram um segundo, um olhar ou um sorriso molhado de ternura.

Acontece que às vezes acordo tendo diante de mim intacto um rosto consumido pela terra...

Os meus mortos estão cada vez mais vivos.


- Raul Brandão, Os Pescadores.

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Luis García Montero (Dedicatória)






DEDICATORIA



Si alguna vez la vida te maltrata,
acuérdate de mí,
que no puede cansarse de esperar
aquel que no se cansa de mirarte.

Luis García Montero

[Crepusculario siglo XXI]




Se a vida te maltratar algum dia
lembra-te de mim,
que não pode cansar-se de esperar
quem nunca se cansou de te olhar.

(Trad. A.M.)




>>  L.G.Montero (sítio of./tudo+algo) / Cervantes (anto/38p/perfil/imagem) / Poetas Andaluces (57p) /  Wikipedia

.

14.7.14

Nuno Júdice (Estar contigo ao acordar)





Estar contigo ao acordar, ver como
se abrem as tuas pálpebras, cortinas
corridas sobre o sonho, sacudir dos
teus lábios o silêncio da noite para
que um primeiro riso me traga o dia:
assim, amor, reconheço a vida que
entra contigo pela casa, escancara
janelas e portas, deixa ouvir os pássaros
e o vento fresco da manhã, até que voltas
para junto de mim, e tudo recomeça.


Nuno Júdice

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13.7.14

Miguel d'Ors (Censura a Miguel d'Ors)





REPROCHE A MIGUEL D'ORS



Tu corazón navega en la «Kon-Tiki»,
se adentra con Amundsen por las grandes
soledades heladas,
sube al Nanga Parbat con Hermann Buhl, se abre
paso hacia el Amazonas, monta potros,
se hunde en ciénagas verdes con fiebres y mosquitos,
atraviesa desiertos, caza el oso.

Y tú aquí, traidor, en un escalafón y un horario.


Miguel d’Ors




Teu coração navega na “Kon-Tiki”,
adentra-se com Amundsen pelas grandes
solidões geladas,
sobe o Nanga Parbat com Hermann Buhl,
abre passagem para o Amazonas, monta potros,
afunda-se nos pântanos verdes de febres e mosquitos,
atravessa desertos e caça ursos.

E tu aqui, traidor, com horário e quadro de antiguidade.

(Trad. A.M.)

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12.7.14

Fialho de Almeida (No Tejo-2)





Circunscrevemos a ponta dos moinhos, e a enseada alarga-se, a toalha líquida desdobra-se - a água mal se enruga, uma placidez de espelho reflecte os mastros das barcaças - e ainda por alguns instantes a fragata nos leva empós de si o olhar artista, que lhe aprecia a mancha, como um memento da luz a escorrer de sensação.

Na ré, curvando-se a cada instante aos movimentos da corda que põe em riste a vela, a figura colossal do rapaz é linha de energia, e a lentidão da manobra, constante duma série de movimentos análogos de duração e de amplitude, parece feita de versos mimados, cujo magnífico ritmo enche duma ternura fisica a natureza.

Pouco a pouco, a luz transmuta-se, cambiam-se no ar tonalidades que a fugida das névoas renova e substitui com uma instantânea agilidade, e que mercê dela, tiram dessa mesma paisagem, centenas de clichés todos diferentes, qual mais vaporosamente irisado de estro trágico.

Já as margens do rio se afastam, verdadeiramente vencidas pela força de expansão do volume de água, que vai de rio a oceano, e abarca no Mar de Palha, uma distância intérmina e radiosa.

(30-Março-1891)
Os Gatos

.

Meira Delmar (Breve)





BREVE



Llegas cuando menos
te recuerdo, cuando
más lejano pareces
de mi vida.
Inesperado como
esas tormentas que se inventa
el viento
un día inmensamente azul.

Luego la lluvia
arrastra sus despojos
y me borra tus huellas.

Meira Delmar



Chegas quando menos
te recordo, quando
mais longe pareces
da minha vida.
Inesperado como
a tempestade que o vento
inventa
num dia imensamente azul.

A seguir
a chuva arrasta
os seus despojos
e apaga-me as tuas marcas.

(Trad. A.M.)

.

11.7.14

Rui Pires Cabral (Meu amigo)





MEU AMIGO



Depois de tudo, no vazio
da manhã inabitável,

ajuda-me a negar
este remorso:

eu só queria uma canção
que não morresse

e a hipótese de um poema
que não fosse

o lugar onde me encontro
uma vez mais,

sem desculpa, sem remédio,
diante de mim mesmo.


Rui Pires Cabral

[A casa que caminha]

.

10.7.14

Mario Benedetti (Devagar, mas vem)





LENTO PERO VIENE



Lento pero viene
el futuro se acerca
despacio
pero viene

hoy está más allá
de las nubes que elige
y más allá del trueno
y de la tierra firme

demorándose viene
cual flor desconfiada
que vigila al sol
sin preguntarle nada

iluminando viene
las últimas ventanas

lento pero viene
las últimas ventanas

lento pero viene
el futuro se acerca
despacio
pero viene

ya se va acercando
nunca tiene prisa
viene con proyectos
y bolsas de semillas
con ángeles maltrechos
y fieles golondrinas

despacio pero viene
sin hacer mucho ruido
cuidando sobre todo
los sueños prohibidos

los recuerdos yacentes
y los recién nacidos

lento pero viene
el futuro se acerca
despacio
pero viene

ya casi está llegando
con su mejor noticia
con puños con ojeras
con noches y con días

con una estrella pobre
sin nombre todavía

lento pero viene
el futuro real
el mismo que inventamos
nosotros y el azar

cada vez más nosotros y menos el azar

lento pero viene
el futuro se acerca
despacio
pero viene

lento pero viene
lento pero viene
lento pero viene


Mario Benedetti



Devagar mas vem
o futuro acerca-se
devagar
mas vem

hoje está para além
das nuvens que escolhe
para além do trovão
e da terra firme

demorando mas vem
qual flor desconfiada
que vigia o sol
sem nada lhe perguntar

iluminando vem
as últimas janelas

devagar mas vem
as últimas janelas

devagar mas vem
o futuro acerca-se
devagar
mas vem

vai-se acercando
nunca tem pressa
carrega projectos
e sacos de sementes
com anjos maltratados
e fiéis andorinhas

devagar mas vem
sem fazer barulho
cuidando sobretudo
os sonhos proibidos

as lembranças pendentes
e os recém-nascidos

devagar mas vem
o futuro acerca-se
devagar
mas vem

está quase a chegar
com sua melhor notícia
com punhos e olheiras
com noites e com dias

com uma estrela pobre
ainda sem nome

devagar mas vem
o futuro real
o mesmo que inventamos
nós e o acaso

nós cada vez mais e menos o acaso

devagar mas vem
o futuro acerca-se
devagar
mas vem

devagar mas vem
devagar mas vem
devagar mas vem


(Trad. A.M.)

.

9.7.14

Fialho de Almeida (No Tejo-1)





Enquanto o vapor não chega detenho-me a abranger amorosamente, dos terraços da estação do Barreiro, a marinha plácida que a meus olhos se desenrola, um quase nada perdida nas musselinas ondeantes da manhã.

O Sol não rompe, há vento, e como choveu de noite, um vago véu de lágrimas suspende-se no espaço, e irrita-me a respiração de frígidas picadas.

Daquela altura da riba, a expansão que faz o Tejo, dá-me uma sensação de taça cheia, tão fechado o circuito das suas margens. . .

No primeiro plano, à direita, uma língua de areia contém moinhos e casarelhos brancos, muros de quinta, oliveiras e eucaliptos tristes que se acurvam a saudar a lufada húmida da aurora, vinda da barra.

Pela esquerda é uma barreira brusca de terra vermelha, alteada, chanfrada, comida dos assaltos das cheias, rachada da água, com cabelugens de mato e pinheiros anões dum verde-bronze.

As casas parecem sucessivamente mais humildes, à medida que se distanciam pelos planos além da perspectiva - são quadradinhos de caliça, com pontos negros de portas e janelas, telhados negros, paliçadas de quintais e de arribanas; depois além, fazendo fundo, no ponto onde o cotovelo do rio põe em relevo os montes de Cacilhas, a casaria complica-se em povoaçõess miúdas, com chanfraduras de caminhos, mirantes, quintas, dedos de campanários e chaminés de fábricas. (...)

(30-Março-1891)
Os Gatos

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María Sanz (Pardais)





GORRIONES



Que la lluvia cayera en los Jardines
era sólo espejismo. Que mis ojos
acogiesen tristezas, contemplando
inmóviles gorriones ateridos,
no era más que el escorzo de otros tiempos
de humedad retorcida entre las manos,
de pálidos alberos que sentían
el peso de unas alas. Y la lluvia,
detenida en el aire,
remontaba el temblor de aquellos pájaros
clavados en la tierra. Que mis ojos
no supieran llorar, era presagio
de que iban a cerrarse en otros vuelos.

MARÍA SANZ
Jardines de Murillo
(1989)


[María Sanz]



Que a chuva caísse no jardim era
miragem só. Que meus olhos
acolhessem tristezas, contemplando
imóveis pardais transidos,
era apenas o escorço de outros tempos
de humidade retorcida nas mãos,
de pálidos recantos sentindo
o peso das asas. E a chuva,
suspensa no ar,
vencia o tremor desses pássaros
cravados na terra. Que meus olhos
não soubessem chorar, era um presságio
de que iriam fechar-se noutros voos.


(Trad. A.M.)

.

8.7.14

7.7.14

Raquel Lanseros (Em chegando os fins)





EN OCASIÓN DE TODOS LOS FINALES



Yo nunca resistí las despedidas
con su mezcla de muerte y precipicio
con el aroma amargo de la finitud
empalagando el ánimo
con esa luz de hielo matutino
que penetra debajo de los párpados.

Yo nunca resistí las despedidas
pero no sé por qué.
Me lo pregunto porque no ha supuesto
una sorpresa súbita casi ninguna de ellas.
He solido saber
con esa exactitud de los relojes
el lugar, el momento
la documentación y el escenario
en que sobrevinieron.

No hay engaño. El jueves diecinueve
era un jueves sin ti. Estaba escrito
mucho antes que las lágrimas
anunciasen el fin
y todo fin es único.

Las despedidas son como el otoño
inevitables pérdidas
vienen puntuales con aviso previo.
Nadie puede acusar de su tristeza
a la pequeña hoja tiritando dormida
en medio del camino.

De repente esa hoja me recuerda
los hoteles pintados de naranja.
Son dos cosas que llegan de otra época
igual que llega la bruma de noviembre.
Traen una carga de nostalgia limpia
sin traición ni sorpresa.
Y sin embargo el alma
no logra acostumbrarse en una vida.

Yo nunca resistí las despedidas
porque en cada una de ellas se marchita la voz
de todas las personas que yo he sido
y ya no puedo ser.

Raquel Lanseros



Eu nunca pude com despedidas
com seu misto de morte e precipício
com o cheiro amargo da finitude
a saturar o ânimo
com essa luz de gelo matinal
que entra sob as pálpebras.

Eu nunca pude com despedidas
nem sei bem porquê.
Interrogo-me porque nenhuma delas
quase implicou surpresa repentina.
Soube sempre com a exactidão do relógio
o lugar, o momento
a circunstância e a cena do evento.

Não há engano. Quinta dezanove
era uma quinta sem ti. Estava escrito
muito antes de as lágrimas
anunciarem o final
e todo o final é único.

As despedidas são como o Outono
perdas inevitáveis
chegam pontualmente com aviso prévio.
Ninguém pode culpar da sua tristeza
a folhita tiritando adormecida
no meio do caminho.

Essa folha de repente lembra-me
os hotéis pintados de laranja.
São coisas que vêm de outro tempo
tal como vem a bruma de Novembro.
E trazem uma carga de limpa saudade
sem traição nem surpresa.
E contudo a alma custa-lhe acostumar-se.

Eu nunca pude com despedidas
porque em cada uma murcha a voz
de todas as pessoas que eu já fui
e que não voltarei a ser.


(Trad. A.M.)



>>  Raquel Lanseros (sítio-9p-bio-biblio-blogue) / Facebook / Circulo de poesia (9p) / Mujeres poetas (4p) / Wikipedia

.


6.7.14

Um verso (138)







Um verso do Assis 
(um pirilampo, no céu):




Se chegássemos à alegria por uma escada de incêndio



Fernando Assis Pacheco

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Luis Cernuda (Aqui)





Aquí
en esta orilla blanca
del lecho donde duermes
estoy al borde mismo
de tu sueño. Si diera
un paso más, caería
en sus ondas, rompiéndolo
como un cristal. Me sube
el calor de tu sueño
hasta el rostro. Tu hálito
te mide la andadura
del soñar: va despacio.
Un soplo alterno, leve
me entrega ese tesoro
exactamente: el ritmo
de tu vivir soñando.
Miro. Veo la estofa
de que está hecho tu sueño.
La tienes sobre el cuerpo
como coraza ingrávida.
Te cerca de respeto.
A tu virgen te vuelves
toda entera, desnuda,
cuando te vas al sueño.
En la orilla se paran
las ansias y los besos:
esperan, ya sin prisa,
a que abriendo los ojos
renuncies a tu ser
invulnerable. Busco
tu sueño. Con mi alma
doblada sobre ti
las miradas recorren,
traslúcida, tu carne
y apartan dulcemente
las señas corporales,
por ver si hallan detrás
las formas de tu sueño.
No lo encuentran. Y entonces
pienso en tu sueño. Quiero
descifrarlo. Las cifras
no sirven, no es secreto.
Es sueño y no misterio.
Y de pronto, en el alto
silencio de la noche,
un soñar mío empieza
al borde de tu cuerpo;
en él el tuyo siento.
Tú dormida, yo en vela,
hacíamos lo mismo.
No había que buscar:
tu sueño era mi sueño.

Luis Cernuda


[Noctambulario]



Aqui
nesta margem branca
do leito onde dormes
estou à beira mesmo
do teu sonho. Um passo mais
que desse, cairia
nas suas ondas, partindo-o
como um vidro. Sobe-me
ao rosto o calor do teu sonho.
O teu hálito acompanha
o ritmo do sonhar, vai devagar.
Um sopro outro, ligeiro,
confia-me esse tesouro
exactamente, o ritmo
de teu viver sonhando.
Olho. Vejo o estofo
de que é feito teu sonho,
que usas como couraça subtil.
Envolve-te de respeito.
À tua virgem te entregas
desnuda, por inteiro,
quando abraças o sono.
Paradas na margem ficam
as ânsias, assim como os beijos.
Esperam, com vagar,
que ao abrir os olhos
renuncies a teu ser
invulnerável. Busco
teu sonho. Com a alma
inclinada sobre ti
meus olhos percorrem,
translúcida, tua carne
e apartam docemente
os sinais do corpo,
a ver se acham por trás
as formas de teu sonho.
Que não encontram. E então
penso no teu sonho, quero
decifrá-lo. Os números
não servem, não é segredo.
É sonho, não mistério.
E de repente, no alto
silêncio da noite,
um sonhar meu começa
à beira do teu corpo
e é o teu que nele sinto.
Tu dormindo, eu velando,
o mesmo fazíamos os dois.
Não havia que buscar,
teu sonho era meu sonho.


(Trad. A.M.)

.

5.7.14

Miguel Martins (Dizem)





Dizem que a vida me foi dada à borla.
Só eu sei quanto isso me custa.


Dizem que não penso nos outros.
Deus sabe o tempo que gasto a pensar nisso.


Dizem que tenho um ego agigantado.
É a única coisa que tenho.


Dizem que vou acabar sozinho.
Têm razão.


Miguel Martins

[Antologia]

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4.7.14

Sílvia Nieva (Ser formiga hoje)





SER HORMIGA HOY



¿Se comen las hormigas a sus hermanas muertas?
¿Les llevará la evolución a inventar armas?
¿Usarán la poesía para narrar hazañas épicas?

O seguirán en fila como nosotros,
acatando su lugar
aparentemente delante,
aparentemente detrás,
en un afán de búsqueda del mismo alimento?

Mover una migaja como un sofá
y mudarse una y otra vez
por miedo al exterminio.

Ser hormiga hoy.
Levantarse,
romper el trayecto,
encontrar el pie que pisa
y morderlo tantas veces
que el dolor lo paralice.

O quedarse.
Seguir la línea,
habitar el agujero.


SILVIA NIEVA
La fábrica de hielo
Canalla Ediciones (2014)


[Apología de la luz]




As formigas comem as irmãs já mortas?
A evolução levá-las-á a inventar armas?
Usarão a poesia para narrar façanhas épicas?

Ou andarão em fila como nós,
acatando seu lugar
aparentemente à frente,
aparentemente atrás,
num afã de busca do mesmo alimento?

Mover uma migalha
como um sofá
e mudar-se uma vez e outra
com medo do extermínio.

Ser formiga hoje.
Levantar,
quebrar o trajecto,
encontrar o pé que pisa
e mordê-lo tantas vezes
que a dor o paralise.

Ou parar.
Seguir a linha,
viver no buraco.

(Trad. A.M.)



>>  Sílvia Nieva (blogue)

.

3.7.14

Raul Brandão (São nadas)





São nadas que farão sorrir os outros.

São efectivamente nadas...

E no entanto reconheço que essa foi a melhor parte da minha existência, minuto único de saudade em que a luz se suspende e o universo se entranha para sempre na alma.

É a própria vida com um encanto que não torna, é o abrir dos olhos para uma manhã deliciosa, quando se salta pela primeira vez do ninho e se sente ainda o calor do ninho.

Tudo é novo e esplêndido.

Embriaga o ar que se respira e o primeiro sonho que sonhamos.

É novo e cheio de surpresas o Verão, quando os grandes barcos rabelos, a vela latina cheia de vento e o homem em ceroulas no alto da caranguejola, carregados de achas que cheiram a bravio, descem devagar as águas; é novo o Inverno quando a grande toalha líquida das cheias brilha e o sol reluz com mais gosto, ou quando aquela voz rude engrossa, começa a pregar e a lufada não cessa de bater nas vidraças.

– Está alguém fora da barra?

E as vigas do travejamento rangem como as quilhas dos navios, e a noite trágica, em que suponho ouvir gritos, nunca mais acaba.

A voz cresce...

Ouço-a agora perto, ouço-a melhor.


- RAUL BRANDÃO, Os Pescadores




Paula Ensenyat (Mãe)

 




Madre

La imagino
desperezándose
entre sus sábanas
de vainilla;

la miel se vuelve amarga,

y mi cama

aún más fría.

Paula Ensenyat



Mãe

Imagino-a
a espreguiçar-se
nos seus lençóis
de baunilha;

o mel torna-se amargo

e a minha cama

ainda mais fria.

(Trad. A.M.)

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2.7.14

Mark Strand (Alento)





BREATH



When you see them
tell them that I am still here,
that I stand on one leg while the other one dreams,
that this is the only way,

that the lies I tell them are different
from the lies I tell myself,
that by being both here and beyond
I am becoming a horizon,

that as the sun rises and sets I know my place,
that breath is what saves me,
that even the forced syllables of decline are breath,
that if the body is a coffin it is also a closet of breath,

that breath is a mirror clouded by words,
that breath is all that survives the cry for help
as it enters the stranger’s ear
and stays long after the word is gone,

that breath is the beginning again, that from it
all resistance falls away, as meaning falls
away from life, or darkness falls from light,
that breath is what I give them when I send my love.


Mark Strand



Quando os vires
diz-lhes que eu cá estou,
que uma perna me aguenta
enquanto a outra sonha,
que não há outro jeito,

que as mentiras que eu lhes digo a eles são
diferentes das que digo a mim mesmo,
que por estar quer aqui quer acolá
sou já quase horizonte,

que eu sei o meu lugar já que o sol nasce e se põe,
que o alento é o que me safa,
que mesmo as sílabas forçadas do ocaso são alento,
que o corpo sendo um caixão
é também um depósito de alento,

que o alento é um espelho embaciado pelas palavras,
que é aquilo que sobrevive ao grito de socorro
ao penetrar no ouvido dos outros
e perdurar muito depois de a palavra se ir,

que o alento é o começar de novo, que dele
se desprende a resistência, como o sentido
se desprende da vida, ou o escuro se desprende da luz,
que alento é o que eu lhes dou ao dar-lhes o meu amor.


(Trad. A.M.)

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1.7.14

Luis Alberto de Cuenca (Tempos difíceis)





TIEMPOS DIFÍCILES



Era todo tan triste y tan absurdo.
No vivías apenas. Te colgabas
de la pared de la melancolía
y veías pasar las lentas horas
que hacia nada conducen y hacia nunca.
Las mujeres te habían retirado
su protección, los dioses su asistencia
y la literatura su cobijo.
Fueron tiempos difíciles aquéllos.


LUIS ALBERTO DE CUENCA
El hacha y la rosa
(1993)

[Arquivo de cabeceira]




Era tudo tão triste e tão absurdo.
Quase nem vivias. Pendurado
da parede da melancolia,
vias passar as horas lentas
que ao nada levam e ao nunca.
As mulheres tinham-te tirado
a protecção, os deuses a ajuda
e a literatura o refúgio.
Tempos difíceis aqueles.

(Trad. A.M.)

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