31.1.14

Max Aub (Questão bizantina)





CUESTIÓN BIZANTINA



La playa ¿es orilla
de la mar o de la tierra?
Conseja bizantina.
La orilla del bosque
¿es su límite o del llano borde?
¿Qué frontera separa
lo tuyo de lo mío?
¿Quién acota la vida?
¿Vives hoy o mañana?
Raíz, tallo, flor y fruto
¿dónde empiezan y acaban?
El mantillo
¿es orillo
del ramaje muerto,
del renuevo
o del retorcido
helecho nuevo?
Cuestión bizantina.
Importa la orilla,
dormir limpio en ella.
(No somos tú y yo,
sino el hilo impalpable
que va de tu presencia
a la mía.)
Límites y fronteras
se agostarán un día.
Sin orillo ni orilla
¿qué más da de quién sean
los cachones, la arena?
La playa es orilla
de la mar y de la tierra,
nunca frontera.
Nada separa,
nada se para.
Palabra.

Max Aub



A praia é beira
do mar ou da terra?
Fantasia bizantina.
A orla do bosque
é seu limite ou borda do plaino?
Que fronteira separa
o teu e o meu?
Quem delimita a vida?
Vives hoje ou amanhã?
Raiz, talo, flor e fruto
onde começam e acabam?
O húmus
é franja
da morta ramagem,
do renovo
ou do retorcido
feto novo?
Questão bizantina.
Importa é a beira,
dormir limpo sobre ela.
(Não somos tu e eu,
senão o fio impalpável
que liga a tua presença
à minha).
Limites e fronteiras
hão-de murchar um dia.
Sem franja nem beira,
que mais dá de quem sejam
as ondas e a areia?
A praia é beira
do mar e da terra,
nunca fronteira.
Nada separa,
nada se pára.
Palavra.

(Trad. A.M.)



>>  Fundação M.A. (tudo+algo, menos versos) / A media voz (20p) / Cervantes (bio) / U.Valência (Centenário) / Wikipedia

.

30.1.14

Um verso (129)





Um verso de Herberto
(e porque não?):




Quem anel a anel há-de pôr-me a nu os dedos



Herberto Helder

.

Luis González Ansorena (Chia a noite)





(POETAS POR CIUDAD JUAREZ)



Chilla la noche
desgarrada desde el vientre.
Lloran los pechos
cortados de la tierra.
Se ahoga en sangre
la arena del desierto.

Hasta los cuchillos
protestan su destino
y agotada está la tierra
rezumando dolor.

Cabellos revueltos en sangre.
Carne muerta tajada.
Esos brazos,
hechos para amar,
ahora retorcidos
por sangrientos cordeles.
Esas bocas,
hechas para besar,
ahora semiabiertas
en gesto de muerte.

Y los ojos. Esos ojos
que miraban el mundo
respirando vida,
que lo último que vieron
fueron monstruos.

Esos ojos ahora
ya fijos para siempre
en nuestros ojos,
clamando justicia.

Luis Ansorena



Chia a noite
rasgada no ventre.
Choram os peitos
cortados da terra.
Afoga-se em sangue
a areia do deserto.

Até os punhais
protestam seu destino
e esgotada está a terra
ressumando só dor.

Cabelos revoltos em sangue.
Carne morta retalhada.
Esses braços,
feitos para amar,
retorcidos agora
por sangrentas cordas.
Essas bocas,
feitas para beijar,
semi-abertas agora
em ricto de morte.

E os olhos. Esses olhos
que olhavam o mundo
respirando vida,
que monstros foi
a última coisa que viram.

Esses olhos agora
em nossos olhos
fitos para sempre,
clamando por justiça.

(Trad. A.M.)

.

29.1.14

Mário Dionísio (Estamos agora em paz)





(XXV)


Estamos agora em paz
sabendo simular o esquecimento

sentados

com os olhos no vento
lá de fora atirado para antes
de nós as mãos caídas
nos joelhos mas nada suplicantes
só esvaídas

conformados
com não nos conformarmos

resignados
a esperando não esperarmos

como se tudo fosse um imenso tanto faz


Mário Dionísio


[Luz & sombra]

.

28.1.14

Jesús Lizano (Preciso carinho)





NECESITO CARIÑO



Fui al médico del cerebro,
del alma,
los médicos
con su uniforme blanco,
los curas
con su uniforme negro,
los militares
con su uniforme verde,
el papa
con su uniforme blanco.
Ya vemos
lo que les pasa a los dominantes
cuando prescinden de sus uniformes.
Qué ha sido, por ejemplo,
de los reyes
sin su uniforme...

Por no hablar del uniforme
de los bomberos, de los policías,
de los conserjes,
de los mayordomos,
de las monjitas, de los presos,
de los jueces,
vaya uniforme el de los jueces...

¿Y los burgueses?
¿Y su uniforme de señores?
¿Y el de los cocineros?
Pobres cocineros:
hasta los cocineros
revestidos... Y las novias
vestidas de blanco
cuando se dirigen
a firmar con los novios
el contrato...
¡plaga de contratos!

Y qué seria este mundo sin uniformes:
sería
el mundo real poético...

El caso es que fui al médico
del alma, del cerebro...
¡qué pretensión salvar el alma
con la teología,
o la química
y otros derivados
de la Razón! Y cómo
va a curar con su locura
la Razón al alma
si liberarse de su dominio
es lo único
que puede salvarla.

El caso es que fui al médico,
con su uniforme blanco,
llamado bata,
como los farmacéuticos,
como los fantasmas...
hundido por aquél
desamor que había
herido gravemente y, cómo no,
mi alma
y me dio una medicina
como si el alma
fuera un intestino
o una garganta.

Y yo le dije: no necesito
medicina, necesito
cariño...

Y pensé:
lo que yo necesito,
lo que todos necesitamos,
es que se acaben todos los uniformes,
que todo cambie de sentido.

Y las órdenes,
que se acaben las órdenes,
las recetas, los específicos,
los sermones, sobre todo
los sermones.

Recuerdo que cuando yo
era un niño
-un niño niño-
íbamos a la escuela
con uniforme.
¡Venga! ¡Todos uniformados!
Qué educativo...

Y qué son las ideas
sino uniformes malditos
si lo que necesitamos
es cariño, mucho cariño...
Y al cabo de cierto tiempo
volví al médico y me preguntó
si me había tomado la medicina.
Y le dije que no
Y él, indignado, me dijo:
¡No sé
ni cómo le recibo!

Jesús Lizano




Fui ao médico da cabeça,
da alma,
os médicos
na sua farda branca,
os padres
na sua farda negra,
os militares
na sua farda verde,
o papa
na sua farda branca.
Estamos a ver
o que acontece aos poderosos
quando prescindem das fardas.
O que foi, por exemplo,
dos reis
sem a sua farda...

Para já não falar da farda
dos bombeiros, dos polícias,
dos porteiros,
dos mordomos,
das freirinhas, dos presos,
dos juízes,
farda vá lá a dos juízes...

E os burgueses?
E a sua farda de senhoritos?
É a dos cozinheiros?
Pobres cozinheiros,
até os cozinheiros,
revestidos... E as noivas
vestidas de branco
quando se deslocam
para assinar o contrato
com os noivos...
praga de contratos!

E o que seria deste mundo sem fardas,
seria
o mundo real poético...

O caso é que fui ao médico
da alma, da cabeça...
que pretensão salvar a alma
com a teologia,
ou a química
ou outros derivados
da Razão. E como
haveria a Razão
de salvar a alma
com a sua loucura
se escapar ao seu domínio
é a única coisa que pode salvá-la?

O caso é que fui ao médico,
com sua farda branca,
que se chama bata,
como os farmacêuticos,
como os fantasmas...
abatido por aquele
desamor que tinha ferido
gravemente, e como não,
a minha alma,
e então ele deu-me um remédio,
como se a alma
fosse um intestino
ou uma garganta.

E eu disse-lhe, não preciso
de remédio, preciso
de carinho...

E pensei,
o que eu preciso,
o que todos precisamos
é acabar com todas as fardas,
é mudar tudo de sentido.

E as ordens,
acabar as ordens,
as receitas, os remédios específicos,
os sermões, acima de tudo
os sermões.

Recordo que era eu criança
- uma criança criança -
íamos para a escola
de farda.
Chiça! Todos fardados!
Que educativo...

E o que são as ideias
senão fardas malditas,
quando o que precisamos
é de carinho, muito carinho...
E então ao cabo de algum tempo
voltei ao médico e ele perguntou-me
se tinha tomado o remédio.
E eu disse que não.
Vai ele então, indignado:
Nem sei
como é que eu o atendo!

(Trad. A.M.)

.

27.1.14

Manuel Silva Ramos (Lume nas paredes)





Durante anos o fressureiro do meu avô causou o terror no Refúgio e arredores com as suas facas reluzentes de matar porcinos.

Quando tinha bebido em demasia, pegava nas suas principais facas e ia aguçá-las entre aspas pelas paredes.

Era um espectáculo único, salutar para ele, mas medonho para o resto da população.

Gritava ele a quem o quisesse ouvir: "Seus sacanas do Refúgio! O primeiro a sair de casa esfolo-o como um porco! Zé Luís Fernandes só há um"!

Metiam-se em casa os refugienses, com o medo dessas facas que levantavam faíscas voadoras nas paredes de granito.

Não queriam ser transformados em morcelas ou chouriças os refugienses, que pela primeira vez estavam certos na designação toponímica.



- MANUEL DA SILVA RAMOS, Pai, levanta-te, vem fazer-me um fato de canela!, 2013 (Lume nas paredes).

.

Luis Cernuda (Amo-te)





TE QUIERO



Te quiero.

Te lo he dicho con el viento
jugueteando tal un animalillo en la arena
o iracundo como órgano tempestuoso;

te lo he dicho con el sol,
que dora desnudos cuerpos juveniles
y sonríe en todas las cosas inocentes;

te lo he dicho con las nubes,
frentes melancólicas que sostienen el cielo,
tristezas fugitivas;

te lo he dicho con las plantas,
leves caricias transparentes
que se cubren de rubor repentino;

te lo he dicho con el agua,
vida luminosa que vela un fondo de sombra;
te lo he dicho con el miedo,

te lo he dicho con la alegría,
con el hastío, con las terribles palabras.
Pero así no me basta;
más allá de la vida
quiero decírtelo con la muerte,
más allá del amor
quiero decírtelo con el olvido.


Luis Cernuda



Amo-te.

Disse-to com o vento
a brincar como um bichito na areia
ou iracundo como um furacão;

disse-to com o sol,
a dourar juvenis corpos nus
e a sorrir nas coisas inocentes;

disse-to com as nuvens,
frentes melancólicas a suster o céu,
fugitivas tristezas;

disse-to com as plantas,
carícias leves e transparentes
vestindo um súbito rubor;

disse-to com a água,
vida luminosa velando um fundo de sombra;
com o medo to disse,

disse-to com a alegria,
com o fastio, com terríveis palavras.
Mas não me basta assim;
para além da vida
quero dizer-to com a morte,
para além do amor,
dizer-to com o esquecimento.


(Trad. A.M.)

.

26.1.14

Luís Filipe Parrado (Comer uma laranja)





COMER UMA LARANJA



Comer uma laranja
é como ingerir o próprio sol,
com a boca cheia de luz
não há portanto
espaço
para palavras
sobre mim.


Luís Filipe Parrado


[As folhas ardem]

.

25.1.14

Mariano Crespo (Dilema)





DILEMA



Hay una edad imprecisa
en que tienes que elegir
entre regocijarte en tu madurez
o beber amargura
por las señales del ocaso.

La elección no es fácil
pero si sencilla.

Como se dice en las películas de intriga:
sincronicemos nuestros relojes.

Mariano Crespo

[Faro sin mar]



Há uma idade imprecisa
em que temos de escolher
entre o regozijo da maturidade
e a amargura face
aos sinais do ocaso.

A escolha não é fácil,
mas é simples.

Como se diz nos filmes de enredo,
vamos sincronizar os relógios.

(Trad. A.M.)



>>  Faro sin mar (blogue) / La vida desde el lago (info+entrevista)

.

24.1.14

Um verso (128)





Um verso de Herberto
(pensando em silêncio):





Somente o meu silêncio pensa



Herberto Helder

.

Alfonso Brezmes (O pacto)





EL PACTO



Si me incendias, no esperes
de mí un lenguaje al uso,
los desgastados ritos del amor,
las consabidas normas,
los burdos reglamentos
que matemáticamente predicen
cómo todo se teje y se desteje.

Si me enciendes, no dejes
nada de tu leña para un día
que acaso nunca ha de llegar
y arriésgate al juego prohibido
que ignora la aritmética y el cálculo.

No te cubras, no conserves.
Organiza tu vida para el fuego.

Este es el pacto:
si me amas, arde conmigo.

Alfonso Brezmes



Se me incendeias, não esperes
de mim uma fala em uso,
os desgastados ritos do amor,
as consabidas normas,
os toscos regulamentos
que matematicamente predizem
como tudo se tece e destece.

Se me acendes, não deixes
nada da tua lenha para um dia
que porventura jamais há-de vir
e arrisca a brincadeira proibida
que ignora a aritmética e o cálculo.

Não te cubras, não conserves.
Organiza a tua vida para o fogo.

Este é o pacto:
se me amas, arde comigo.

(Trad. A.M.)




>>  Alfonso Brezmes (sítio) / Boek visual (arte+9p) / Poetas sigloXXI (9p) / Multimagen (arte)


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23.1.14

Luís de Camões (Sôbolos rios)





Sôbolos rios que vão
por Babilónia, me achei,
onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e, tudo bem comparado,
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Ali, lembranças contentes
n'alma se representaram,
e minhas cousas ausentes
se fizeram tão presentes
como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
co rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa.

E vi que todos os danos
se causavam das mudanças
e as mudanças dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.

Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura,
o mal quão depressa vem,
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val,
que então se entende milhor
quanto mais perdido for;
vi o bem suceder o mal,
e o mal, muito pior,
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
vi nenhum contentamento,
e vejo-me a mim, que espalho
tristes palavras ao vento.
   (…)


Luís de Camões

.

22.1.14

Luis Alberto de Cuenca (A noite branca)




LA NOCHE BLANCA



Cuando la sombra cae, se dilatan tus ojos,
se hincha tu pecho joven y tiemblan las aletas
de tu nariz, mordidas por el dulce veneno,
y, terrible y alegre, tu alma se despereza.

Qué blanca está la noche del placer. Cómo invita
a cambiar estas manos por garras de pantera
y dibhjar con ellas en tu cuerpo desnudo
corazones partidos por delicadas flechas.

Nieva sobre el espejo de las celebraciones
y la nieve eterniza el festín de tus labios.
Todo es furia y sonido de amor en esta hora
que beatifica besos y canoniza abrazos.

Para ti, pecadora, escribo cuando el alba
me baña en su luz pálida y tú ya te has marchado.
Por ti, cuando el rocío bautiza las ciudades,
tomo la pluma, lleno de tu recuerdo, y ardo.

Luis Alberto de Cuenca



Quando cai a sombra, dilatam-se os olhos
e o teu peito jovem e tremem-te as asas
do nariz, mordidas do doce veneno,
e, alegre e terrível, tua alma espreguiça-se.

Que branca a noite do prazer. Como convida
a trocar estas mãos por garras de pantera
e desenhar com elas em teu corpo desnudo
corações feridos por delicadas flechas.

Neva no espelho das celebrações
e a neve eterniza o festim dos teus lábios.
Tudo é fúria e ruído de amor nesta hora
que beatifica beijos e canoniza abraços.

Para ti escrevo, pecadora, quando a aurora
me banha de luz pálida e tu já foste embora.
Por ti, quando o orvalho baptiza a cidade,
tomo a pena, e ardo, cheio da tua lembrança.

(Trad. A.M.)



> Outra versão: Luz & sombra (J.E.Simões)

.

21.1.14

Manuel Silva Ramos (Um instante)





Temos que ser retóricos, diante dos pequenos alzheimeres que a vida nos dá.

Assim, falar de outra matéria, e forte, e bem, impõe-se como os tremoços diante da imperial.

Vou agora contar como não esqueci nunca um certo casamento no Louriçal do Campo e do pingo de chuva que, caindo sobre a minha testa, me manteve acordado durante toda uma longa noite.

Preparem os vossos penicos, os vossos cântaros, os vossos alguidares, abram os vossos guarda-chuvas, porque choverá muito!



- MANUEL DA SILVA RAMOS, Pai, levanta-te, vem fazer-me um fato de canela!, 2013 (Um instante).

.

Karmelo C. Iribarren (Viver é isto)





VIVER É ISTO



Estamos tão perto
um do outro
que me vejo reflectido nas suas pupilas.
Mas dura pouco.
Está já sentada no autocarro.
E já se afasta.
A vida faz estas coisas
curtas
de propósito.
Para que nos levantemos
cada manhã
em busca de mais.


Karmelo C. Iribarren

(Trad. A.M.)

.

20.1.14

José Miguel Silva (Suicida)





SUICIDA 

 

Quando me lancei fi-lo na convicção
de que o meu sofrimento mudaria de dono,
ficaria para ela, merecido legado
para quem sempre gostou de nutrir o ciúme,
essa carnívora planta a cujo habitat
chamamos coração. Eu pensava desfrutar
da vingança por toda a eternidade.
Mas o facto é que à medida que o meu corpo
descia em direcção ao rio um calafrio
fez-me pôr em dúvida a eficácia do castigo:
e se ela recusar a expiação, se for mentira
este consolo que me ofereço, derradeiro?
Ao passar, amigos, pelo tabuleiro de baixo
já ia arrependido. O pânico safou do meu rosto
o beatífico sorriso. Que estúpido sou,
que mesquinho, bem mereço... e não tive tempo
para pensar mais nada. Tu que passas
por esta lápide, escuta: ninguém morre de amor.
De orgulho sim, de despeito, de pura idiotice
ou desejo insaciado. E o sermos amados
quase sempre só depende de nós.
 

José Miguel Silva
 

 .

19.1.14

Andrés Trapiello (Testamento)





TESTAMENTO



He muerto ya, paisaje que yo he amado
tantas veces aquí, rincón del alma.
Una vez más vengo por verte. A un lado,
encinares y olivos, y la calma

de ver, al otro, olivos y encinares.
Algunos caserones con jardines
llenos de ortigas ya, viejos lagares
con aspecto de viejos polvorines.

Un camino con olmos en hilera,
una majada, una almazara en ruinas,
musical, perezosa, la palmera,
y un Gredos azulado entre neblinas.

Nada de cuanto miro está en mis ojos
ni el olor del jazmín lo lleva el viento.
He muerto ya. Contempla mis despojos:
te dejo este paisaje en testamento.

ANDRÉS TRAPIELLO
Acaso una verdad
(1993)



Morri já, paisagem que amei
tantas vezes aqui, recanto da alma.
Uma vez mais venho ver-te. De um lado,
azinheiras e oliveiras, e a calma

de ver, do outro, oliveiras e azinheiras.
Alguns casarões com jardins
cheios de ortigas já, velhos lagares
com ar de paióis antigos.

Um caminho ladeado de ulmeiros,
um palheiro, uma azenha em ruína,
musical, preguiçosa, a palmeira,
e a serra de Gredos azulada na neblina.

Nada do que vejo está nos meus olhos
nem o vento leva o cheiro do jasmim.
Estou morto, olha os meus despojos:
esta paisagem, deixo-ta em testamento.

(Trad. A.M.)




>>  Andrés Trapiello (sítio) / Hemeroflexia (blogue) / A media voz (38p) / Abel Martín (31p) / Lecturalia (biblio) / Wikipedia

.

18.1.14

Coitado do Jorge (82)





SUBTILEZA





Subtil, como só ela:

- “Queres-me saltar?”...


.

Gloria Fuertes (Mesmo que não morrêssemos)





Aunque no nos muriéramos al morirnos,
le va bien a ese trance la palabra: Muerte.

Muerte es que no nos miren los que amamos,
muerte es quedarse solo, mudo y quieto
y no poder gritar que sigues vivo.

Gloria Fuertes




Mesmo que não morrêssemos ao morrer,
estaria bem a palavra 'morte'.

Morte é não nos olharem aqueles que amamos,
morte é ficar só, mudo e quedo
e não poder gritar que continuas vivo.

(Trad. A.M.)

.

16.1.14

José María Parreño (Hei-de enterrar-te num verso)





Te enterraré en un verso
que no he encontrado aún,
maniatada con tinta
en una zanja escrita a tu medida,
en un renglón de abismo
cavado para ti.
Te haré pedazos, letras.
Desmembrada. Y así
todos podrán leerte
y nadie, escúchame,
nadie
descubrirá tu cuerpo.

José María Parreño

[Huelva sur]



Hei-de enterrar-te num verso
que até agora não achei,
maniatada com tinta
numa vala escrita à tua medida,
numa carreira de abismo
cavada para ti.
Hei-de fazer-te em pedaços, letras.
Desmembrada. E assim
todos poderão ler-te
e ninguém, ouve,
ninguém
descobrirá o teu corpo.

(Trad. A.M.)

.

15.1.14

Um verso (127)





Um verso do Assis
(com outro de bónus):




Os amantes amam: são coisas
da primavera.
Os poetas consertam-se: são coisas
da sua mecânica misteriosa.


Fernando Assis Pacheco

.

Jesús Lizano (À noite, ao dar uma volta)





ANOCHE, CUANDO PASEABA
(desmitificación)


Anoche, cuando paseaba,
-no sé si podré olvidarme-
sorprendí ¡al universo!
haciendo pipí en la calle.

Jesús Lizano



À noite, ao dar uma volta
– nunca me há-de esquecer –
surpreendi o Universo
a fazer pipi numa esquina.

(Trad. A.M.)



>>  Lizania (sítio-tudo+algo) / CésarAbraham (13p) / Wikipedia

.

14.1.14

Jorge de Sena (Fidelidade)





FIDELIDADE



Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como outra solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?
Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.


Jorge de Sena

.

13.1.14

José Luis García Martín (Uma ilusão de vida)





UNA ILUSIÓN DE VIDA



Silba suave, déjalas que vengan
a comer en tu mano las palabras.
Primero llega la más desvergonzada,
la cara sucia de saliva y lodo,
harta de revolcarse con cualquiera.
No quieres devolverle la sonrisa: aún
no estás tan desesperado.
Llegan luego niñas y en tropel
las voces del verano,
qué transparente el aire,
cuánta arena,
una nube muy blanca en el azul,
una ola mansa en la mañana clara.
Alimañas
que bajan con la nieve
dispersan el rebaño borreguil.
No comen en tu mano:
si te descuidas, la devoran.
Palabras
que afilan sus cuchillos en la sombra.
Como altivos reyes destronados,
señeros vienen los esdrújulos.
Cuánto polvo en los rostros
y cuánta majestad.
El mundo un avispero
de palabras:
todas zumban ahora en torno tuyo.
¿De qué pozo tan negro
vienen esas que traen
alquitrán en las alas,
en el pico piadoso veneno?
Como pesadas moscas
en torno de un cadáver las palabras.
Tú las espantas y ellas siempre vuelven.
Sabes de qué están hechas,
conoces bien sus triquiñuelas,
pero es en vano que trates
de librarte de ellas,
de abrazarte al desnudo silencio.
Sonríe a la más desvergonzada,
deja que anide en ti,
que llene de larvas tu corazón,
que dé a tu vida
una ilusión de vida.

José Luis García Martín

[Andres Vara]



Assobia baixinho, deixa-as vir
comer-te à mão, as palavras.
Primeiro a mais sem-vergonha,
com a cara suja de saliva e de lama
de se rebolar com qualquer.
Não lhe respondes ao sorriso, não estás
assim tão desesperado ainda.
Chegam depois meninas e em tropel
as vozes do Verão,
como o ar é transparente,
quanta areia,
uma nuvem muito branca no azul,
uma onda mansa na manhã clara.
Bichos daninhos
descendo com a neve
dispersam o rebanho de ovelhas.
Não te comem da mão, devoram-ta
se te descuidas.
Palavras
afiando na sombra seus punhais.
Como altivos reis destronados,
solitários chegam os esdrúxulos.
Quanta poeira nos rostos,
quanta majestade.
O mundo um vespeiro
de palavras,
todas zumbem agora à tua volta.
De que poço negro
vêm essas que trazem
alcatrão nas asas
e veneno no bico piedoso?
Pesadas moscas em cima de
um cadáver, as palavras.
Espanta-las e elas voltam sempre.
Sabes de que são feitas,
conheces-lhes bem as artimanhas,
mas não te adianta enxotá-las,
abraçar-te ao silêncio nu.
Sorri à mais sem-vergonha,
deixa-a fazer ninho dentro de ti,
encher-te de larvas o coração,
plantar na tua vida
uma ilusão de vida.

(Trad. A.M.)


> Espelho: Octavio Paz / As palavras

.

12.1.14

Manuel Silva Ramos (O teatro da morte)





Quando alguém morria, forravam a casa de panos pretos.

O local onde estava a pessoa morta.

Nesse tempo inclemente, os mortos ficavam em casa.

Era impressionante.

Para a criança receosa e ponderada que eu era, ver essas casas exíguas tapeçadas de negro, as carpideiras também de negro, com caras engelhadas como batatas velhas, gritando desarrazoadamente como suínas gordas diante de facalhão, o morto que cheirava mal, a viúva caída num buraco de tristeza, os familiares pegados ao luto como moscas coladas à fita adesiva, a tétrica carreta brilhantemente vencedora diante da porta estreita, tudo isto constituía um espectáculo gratuito que me causava uma impressão duradoira.


- MANUEL DA SILVA RAMOS, Pai, levanta-te, vem fazer-me um fato de canela!, 2013 (O teatro da morte).

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Jorge Riechmann (Leito vazio)





LECHO VACÍO


1
Hablo de un tiempo rabioso
en que todos los rostros se habían tornado piedra
pulida impenetrable, y cuervos ávidos de fuego
hostigaban al sol.

Te busqué detrás de todas las puertas condenadas,
en muladares, en torrenteras secas, en mataderos cerrados,
en estaciones vacías. Había perdido
la fuerza de la memoria y del futuro.
Te buscaba con palos aguzados, con dientes
y costillas de cadáveres, con rabia y
con exaltación y con herrumbre.
Hablo de un tiempo en que te había perdido,

y no quedaba nada...

2
Desde que te he perdido
he perdido mi cuerpo.

Azotacalles de un tiempo
sin dimensiones.

Sólo me trato con árboles invictos.

Amontono
las mañanas segadas junto a tu lecho
vacío.


Jorge Riechmann

[Neorrabioso]



1.
Falo de um tempo de raiva
em que todos os rostos se fizeram pedra
polida impenetrável, com corvos ávidos de fogo
a fustigarem o sol.

Busquei-te detrás de todas as portas condenadas,
em lixeiras, em barrancos secos, em matadouros fechados,
em estações vazias. Tinha perdido
a força da memória e do futuro.
Buscava-te com paus aguçados, com dentes
e costelas de cadáveres, com raiva e
com exaltação e ferrugem.
Falo de um tempo em que te havia perdido
e não restava nada...


2.
Desde que te perdi
perdi meu corpo.

Viajeiro de um tempo
sem dimensão.

Sozinho me trato com árvores invictas.

Amontoo
as manhãs ceifadas ao pé do teu leito
vazio.


(Trad. A.M.)

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11.1.14

Jaime Salazar Sampaio (Seja este minuto)





seja este minuto
o minuto da paz

esta palavra a palavra amiga
e a mão sem versos
poise na tua fronte

seja este minuto
o minuto de silêncio que pediste

e a vida não deu não tinha


Jaime Salazar Sampaio

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10.1.14

Jorge M. Molinero (Sou um romântico)





SOY UN ROMÁNTICO



Unas me piden
otras me reclaman
todas me exigen
cena romántica y tango
puesta de sol y paseo de la mano
excursiones de fin de semana
regalo -no hace falta que sea caro- por sorpresa
cruasán y café recién hechos para desayunar
sexo con al menos dos orgasmos
y después hablar, que esa es otra

tanto cine y tanta hostia si yo
soy un romántico empedernido que
cree que el amor es para toda la vida

por eso ofrezco: pizza y peli los viernes
(sin atún ni meg ryan)
pipas, cerveza y fútbol los sábados
los domingos, a comer a casa de mamá y
en los anuncios del estudio estadio, un polvo,
a ver si hay suerte y te preño para tener
algo de qué hablar

que el amor
si sólo conoce la rutina
no se torna después
tan doloroso

Jorge M. Molinero



Umas me pedem
outras reclamam
e todas me exigem
tango e jantar com velas
pôr-do-sol e passeio a dois
excursões de fim-de-semana
presente surpresa – não tem de ser caro –
croassã e café fresco de manhã
sexo com dois orgasmos no mínimo
e depois falar, que essa é outra

tanto filme e tanta chatice
quando eu sou um romântico empedernido
que crê no amor para sempre

por isso ofereço: pizza e filme à sexta-feira
(sem atum nem meg ryan)
borga, cerveja e bola aos sábados
ao domingo, comer em casa da mamã e
nos anúncios do estúdio estádio, uma queca,
a ver se com sorte te engravido para ter
algo de que falar

que o amor
não passando da rotina
não se torna depois
tão doloroso


(Trad. A.M.)

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9.1.14

Manuel Silva Ramos (Calças remendadas)





Nesse tempo de fome, de medo e de subserviência, as pessoas que não tinham dinheiro, depois de rompidas as calças, metiam quadras no cu.

Chegavam-se com modos lentos perto do meu pai e, depois de terem escolhido um remendo, faziam-lhe confiança.

Passados oito dias já as podiam vestir.

Havia por vezes pessoas que sobrepunham remendos e eram calças que podiam durar dez anos.

Nessa altura era fácil conservar as mesmas medidas durante anos, pois as pessoas não tinham meios para se alargarem na comida, muitas chupavam um caroço de azeitona desde os cueiros até à morte, era uma fatalidade como ser-se pegador de fios numa fábrica de lanifícios da Covilhã de pai para filho.



- MANUEL DA SILVA RAMOS, Pai, levanta-te, vem fazer-me um fato de canela!, 2013 (Tirar os alinhavos).

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Jorge Espina (Regresso)





REGRESO


A los amigos que poco a poco me van olvidando.
A los profesores
que ya me han olvidado.
A mis compañeros de primaria.

¿Qué estaréis haciendo ahora?

Yo arrastro el peso de mi conciencia,
intento caminar hacia atrás,
remontar el río hasta la fuente,
regresar
al patio de la infancia.

Jorge Espina

[Hasta los gatos acaban por suicidarse]


Aos amigos que me vão esquecendo pouco a pouco.
Aos professores
que já me esqueceram.
Aos companheiros da primária.

Que estareis fazendo agora?

Eu cá arrasto o peso da consciência,
tento caminhar para trás,
subir o rio até à nascente,
regressar
ao pátio da infância.

(Trad. A.M.)

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8.1.14

Marcos Siscar (Jardim à francesa)





JARDIM À FRANCESA



eu com minha idade sentado num banco de praça
meu coração era do tamanho do mundo
feito do seu elemento de água rumor e ornamento
duas alamedas duas fontes se escorrendo
meu coração era do tamanho deste mundo
ora assim igual a si mesmo ora se
desconhecendo
mas meu coração é menos perfeito do que esta praça
às vezes se lembra e dificilmente
da hora exata do retorno do tempo
meu coração às vezes tropeça projeta uma perna
sobre a outra
se interrompe mudo parece
que pensa

Marcos Siscar



>>  Marcos Siscar (blogue) / Facebook / Jornal de Poesia (10p) / Antonio Miranda (10p) / Modo de usar (5p)

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7.1.14

Joan Margarit (Helena)





HELENA



El ayer es tu infierno, es cada instante
en el que, sin saberlo, te has perdido
y cada instante en el que te has salvado.
Cuando el joven que fuiste está muy lejos,
amar es la venganza del pasado.
Viene desde una guerra donde fuiste vencido,
de armas y campamentos que un día abandonaste
en la Troya que llevas en ti mismo.
Te buscarán de noche los aqueos
y estrecharán el cerco. Volverás,
por alguna mujer, a perder la ciudad.
Helena es estos sueños
de los cuales la vida fue apropiándose.
Defiéndela otra vez: será la última.
Y hazlo con valentía, desarmado.

Joan Margarit



Teu inferno é ontem, é cada instante
em que, sem saber, te perdeste
e cada instante em que te salvaste.
Quando o jovem que foste está já longe,
amar é a vingança do passado.
Vem de uma guerra onde foste vencido,
de acampamentos e armas que um dia abandonaste
na Tróia que tens dentro de ti mesmo.
Hão-de buscar-te de noite os aqueus
e apertar o cerco. Voltarás,
por uma mulher, a perder a cidade.
Helena é estes sonhos
que a vida foi apropriando.
Defende-a outra vez, a última.
E fá-lo com valentia, desarmado.

(Trad. A.M.)

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6.1.14

Um verso (126)





Um verso de Fernando Pessoa / R. Reis
(quase nada):




Somos contos contando contos, nada



Ricardo Reis

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Javier Salvago (Poética)





POÉTICA



Amar por el placer de amar,
pero no sólo.
Zambullirse en la vida
no sólo por el gusto de gozarla.
Probar todos los frutos
para saber qué ocultan y a qué saben.
Comer para rumiar.
Vivir para contarlo.

Javier Salvago



Amar pelo prazer de amar,
mas não só.
Mergulhar na vida
não só pelo gosto de gozá-la.
Experimentar todos os frutos
para saber o que ocultam e a que sabem.
Comer para remoer.
Viver para o contar.

(Trad. A.M.)

5.1.14

Inês Dias (Os conjurados)




OS CONJURADOS



Estamos do lado errado. Outra vez.

Fomos esquecendo as senhas
que nos abriam a solidão e o espanto.
Crescemos baços, cansados, estrelas
frias mas longe da onda que virá
lavar o sangue do sacrifício.
E mais facilmente cruzávamos
espelhos, muros, desamores
do que atravessávamos esta rua
ou restaurávamos agora
a independência das nossas almas.

Talvez se consiga ainda exumar,
na nossa arqueologia de sobrevivência,
uma dessas palavras latentes
para oferecer a um poeta -
apenas significante, já tão pouca flor.
Esperaríamos depois,
ao redor da cama de um de nós,
que esse gesto perturbasse destinos,
acordasse motins serenos, fosse o grão
de pólen no mecanismo sensível do mundo.

Inês Dias


[Luz & sombra]

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4.1.14

Gloria Fuertes (Tudo no mundo tem grades)





Todo el mundo tiene rejas.
Esta vida es una cárcel,
una jaula, una cisterna
y te ahogas cuando sales.

Gloria Fuertes



Tudo no mundo tem grades.
Esta vida é um cárcere,
uma jaula, uma cisterna
e tu, quando sais, afogas-te.

(Trad. A.M.)



>>  Fundação G.F. / A media voz (34p) / Poesi.as (16p) / Atlas de poesia (16p) / Wikipedia

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3.1.14

Manuel Silva Ramos (Um hospital)





Situado já na encosta da serra, este hospital mais parecia uma sucursal do mercado municipal onde as pessoas se abasteciam de víveres.

Alcofas cheias de laranjas, ou com grandes tachos cheios de comida embrulhada em jornais, malotes com cachos de bananas e com feijoadas escondidas, ou então com formidáveis sopas espessas que levantavam um morto, tudo transportado por gente jovial, que acreditava no poder da manducação sobre a saúde geral.


- MANUEL DA SILVA RAMOS, Pai, levanta-te, vem fazer-me um fato de canela!, 2013 (Umbigofonia).

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Gioconda Belli (Como cântaro)





COMO TINAJA



En los días buenos,
de lluvia,
los días en que nos quisimos
totalmente,
en que nos fuimos abriendo
el uno al otro
como cuevas secretas;
en esos días, amor,
mi cuerpo como tinaja
recogió toda el agua tierna
que derramaste sobre mí
y ahora,
en estos días secos
en que tu ausencia duele
y agrieta la piel,
el agua sale de mis ojos
llena de tu recuerdo
a refrescar la aridez de mi cuerpo
tan vacío y tan lleno de vos.

Gioconda Belli

[Laia Noguera]



Nos dias bons,
de chuva,
os dias em que nos quisemos
totalmente,
em que nos fomos abrindo
um ao outro
como grutas secretas;
nesses dias, amor,
meu corpo como cântaro
colheu toda a água mole
que derramaste sobre mim
e agora,
nestes dias secos
em que me dói a tua ausência
e me greta a pele,
a água cai-me dos olhos
cheia da tua lembrança
a refrescar a aridez do meu corpo,
tão vazio e tão cheio de ti.

(Trad. A.M.)

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2.1.14

João Guimarães Rosa (Todo caminho da gente)





Todo caminho da gente é resvaloso.
Mas também, cair não prejudica demais
A gente levanta, a gente sobe, a gente volta!...
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim:
Esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,
Sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.
Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria,
E ainda mais alegre no meio da tristeza...


João Guimarães Rosa



>>  Sopoesia (23p) / Mensagens com amor (14p) / Antonio Miranda (13p)

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1.1.14

Felipe Benítez Reyes (O símbolo da nossa vida)





EL SÍMBOLO DE TODA NUESTRA VIDA



Hay noches que debieran ser la vida.
Intensas largas noches irreales
con el sabor amargo de lo efímero
y el sabor venenoso del pecado
- como si fuésemos más jóvenes
y aún nos fuese dado malgastar
virtud, dinero y tiempo impunemente.

Debieran ser la vida,
el símbolo de toda nuestra vida,
la memoria dorada de la juventud.
Y, como el despertar repentino de una vieja pasión,
que volviesen de nuevo aquellas noches
para herirnos de envidia
de todo cuanto fuimos y vivimos
y aún a veces nos tienta
con su procacidad.
Porque debieron ser la vida.

Y lo fueron tal vez, ya que el recuerdo
las salva y les concede el privilegio de fundirse
en una sola noche triunfal,
inolvidable, en la que el mundo
pareciera haber puesto
sus llamativas galas tentadoras
a los pies de nuestra altiva adolescencia.

Larga noche gentil, noche de nieve,
que la memoria te conserve como una gema cálida,
con brillo de bengalas de verbena,
en el cielo apagado en el que flotan
los ángeles muertos, los deseos adolescentes.


FELIPE BENITEZ REYES
Los Vanos Mundos
(1985)



Noites há que deviam ser a vida.
Intensas, longas noites irreais,
com o sabor amargo do efémero
e o gosto de veneno do pecado
– como se fôssemos mais jovens
e pudéssemos ainda malgastar,
impunemente, virtude, dinheiro e tempo.

Deviam ser a vida,
o símbolo da nossa vida inteira,
a dourada memória da mocidade.
E, qual súbito despertar de antiga paixão,
que voltassem de novo essas noites
ferindo-nos de inveja
de tudo quanto fomos e vivemos
e ainda por vezes nos tenta
com sua procacidade.
Porque eram para ser a vida.

E foram-no talvez, já que a lembrança
as poupa e lhes dá o privilégio de se fundirem
numa só noite triunfal,
inolvidável, em que se diria
ter o mundo posto
suas galas tentadoras
aos pés da nossa altiva adolescência.

Longa noite gentil, noite de neve,
que a memória te guarde como gema cálida,
com o brilho do fogo do arraial,
no céu apagado em que vogam
os anjos mortos, os desejos adolescentes.


(Trad. A.M.)

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