3.9.14

Amadeu Baptista (Dois mil e quatro)




DOIS MIL E QUATRO


Ainda bem que sou um homem do norte.

Ainda bem que tenho um horror suculento
a parasitas pardos e viúvas negras.

Ainda bem que resisto como um pré-esforçado
e registo em cadernos as incandescências do mar.

Ainda bem que evoluo na travessia das nuvens,
e acredito
e aceito, ainda.

Ainda bem que num momento particular
estou em presença de um torso
e um cavalo a arder,
em sinal de vida, sobre o campo visual.

Ainda bem que não mastigo bem,
não digiro bem,
não dirijo bem,
e choro, como uma criança.

Ainda bem que as formas circuncêntricas
se explanam como processos escultóricos
e a manhã deste outono anunciado
é primaveril.

Ainda bem que nas paisagens reais
não há seres indefesos
– não há seres indefensáveis
nesta rede de hipóteses cruéis e sanguinárias.

Ainda bem que a irregularidade é a única lei
dos fora-da-lei
e no outro lado da duna,
no outro lado da rua,
há uma curva,
depois um bosque,
depois uma depressão no terreno
que denominamos com contracções musculares,
sobreposições de imagens,
Deus, na aula de trabalho manuais.

Ainda bem que, após a fuga,
há uma casa na árvore para retemperar as forças.

Ainda bem que sou um homem de sorte.


Amadeu Baptista

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