30.4.14

Inês Dias (Lei sálica)





LEI SÁLICA



As mulheres da família sempre
tiveram um jeito quase póstumo
de existir: guardar o lume
em silêncio, comer depois de
servir os outros, morrer primeiro.


Saíam à hora de ponta do destino
para lerem os caminhos perdidos
e coleccionavam a abdicação
em caixinhas de folha, entre bilhetes
caducados ou dentes de infâncias alheias.


Esperavam a vida toda por uma vida
próxima, de alma presa a alfinetes
no vestido preferido para o enterro,
os passos medidos nas suas varandas
a dar para o fim do mundo.


Retomo-lhes às vezes os gestos
neste meu exílio inventado,
mas acaba aqui: vou encher de corpo
a sombra, mesmo que nem tempo
me reste já para a pesar.


Inês Dias


[Fel de cão]


.

29.4.14

Raúl Ferruz (Piscar)





PARPADEAR



Quizá los humanos estemos llegando tarde
a la propia redención de los humanos.

Recluidos en nuestra atmósfera de languidez.
E inmovilidad.

Quizá hayamos decidido que ya es tarde.

Aconsejados por una inteligencia
que nos ha hecho ver que el esfuerzo
no compensaría en ningún caso el resultado.

Que, a todas luces, sería malo.
O, cuando menos, insuficiente.

Quizá los humanos nos estemos equivocando enormemente.
No podemos dejar que el cursor deje de parpadear.

Raúl Ferruz



Talvez nós humanos estejamos atrasados
para a redenção dos humanos.

Reclusos no nosso ambiente de languidez.
E imobilidade.

Decidimos talvez que é já tarde.

Aconselhados pela inteligência
que nos faz ver que o esforço
não compensaria nunca o resultado.

Que seria sempre mau
Ou, quando menos, insuficiente.

Talvez nós humanos estejamos
redondamente enganados.
Não podemos deixar o cursor parar de piscar.

(Trad. A.M.)

.

28.4.14

Gonçalo M. Tavares (A ironia ensina)





A ironia ensina a sabotar uma frase
como se faz a um motor de automóvel:
Se retirares uma peça a máquina não anda, se mexeres
no verbo ou numa letra do substantivo,
a frase trágica torna-se divertida,
e a divertida, trágica.
Este quase instinto de rasteirar as frases protegeu-me,
desde novo, daquilo que ainda hoje receio: transformar
a linguagem num Deus que salve, e cada frase num anjo
portador da verdade. Tirar seriedade ao acto da escrita
aprendi-o na infância, tirar seriedade aos actos da vida
comecei a aprender apenas depois de sair dela, e espero
envelhecer aperfeiçoando esta desilusão.

Gonçalo M. Tavares

[Miss Marble]


.

27.4.14

Piedad Bonnett (Canções de ausência-1)





CANCIONES DE AUSENCIA

(1)

Aquí díjiste:
“son hermosos
los ojos húmedos de los caballos”.
Y aquí: “me encanta el viento”.
Desando yo tus pasos, revivo tus palabras.
Y te amo en la baldosa que pisaste,
en la mesa de pino
que aún guarda la caricia de tu mano,
en el estropeado cigarrillo
olvidado en el fondo de mi bolso.
Recorro cada calle que anduviste
y sé
que amaste este abedul y esta ventana. Aquí dijiste:
“así soy yo,
como esa música
triste y alegre a un mismo tiempo”.
Y te amo
en el olor que tiene mi cuerpo de tu cuerpo,
en la feliz canción
que vuelve y vuelve y vuelve a mi tristeza.
En el día aterido
que tú estás respirando no sé dónde.
En el polvo, en el aire,
en esa nube
que tú no mirarás,
en mi mirada
que te calcó y fijó en mi más triste fondo,
en tus besos sellados en mis labios,
y en mis manos vacías,
pues eres hoy vacío
y en el vacío te amo.

Piedad Bonnett

[Emma Gunst]



Aqui disseste:
"são belos
os olhos húmidos dos cavalos".
E aqui: "adoro o vento".
Percorro eu teus passos, revivo-te as palavras.
E amo-te no chão que pisaste,
na mesa de pinho
que guarda ainda a carícia da tua mão,
o cigarro desfeito
esquecido no fundo do bolso.
Percorro cada rua onde andaste
e sei
que amaste a bétula e esta janela.
Aqui disseste: "assim eu sou,
como essa música,
alegre e triste a um tempo".
E amo-te
no cheiro que tem meu corpo do teu corpo,
na canção feliz
que volta e torna a voltar à tristeza minha.
No dia gelado
em que respiras sei lá onde.
Na poeira, no vento,
nessa nuvem que não olharás,
no meu olhar que te calcou
e prendeu no fundo mais triste,
em teus beijos selados em meus lábios,
e nas minhas mãos vazias,
pois és hoje vazio
e no vazio te amo.

(Trad. A.M.)

.

26.4.14

Francisco Alvim (Quase aposentado)





QUASE APOSENTADO



Da janela de meu trabalho
vejo três palmeiras
Entre elas e eu uma rua estreita
uma lâmina de vidro
um parapeito baixo sobre o qual se amontoam fichas
catálogos
embrulhos
As palmeiras talvez tenham a minha idade
Posso dizer-lhes
(como se a mim algum dia houvesse dito)
— Somos moços
vamos ver o que a vida ainda nos reserva
A tarde é uma velha doente, ressentida com o mundo
em cujas veias o sangue tornou-se espesso e difícil
de cujas folhagens escorre uma brisa macilenta


Francisco Alvim

.


25.4.14

Pepe Ramos (Ausência de ti n.º 26)





AUSENCIA DE TI N.º 26



Conservar la amistad tras la ruptura es
disponer un cerebro en forma de corazón
y sentarse a esperar un latido,

tratar de colgar en la puerta del frigo
fotos de París con imanes de madera

y obstinarse en acariciar un gato
que lleva meses muerto

según tú.

Pepe Ramos



Conservar a amizade após a ruptura é
assim como arranjar um cérebro em forma de coração
e sentar-se à espera que bata,

ou pregar na porta do frigo
postais de Paris com íman de madeira,

ou então teimar em fazer festas a um gato
que está morto há muitos meses

segundo tu.

(Trad. A.M.)

.

24.4.14

Ferreira Gullar (Fica o não dito por dito)





FICA O NÃO DITO POR DITO



o poema
antes de escrito
não é em mim
mais que um aflito
silêncio
ante a página em branco

ou melhor
um rumor
branco
ou um grito
que estanco
já que
o poeta
que grita
erra
e como se sabe
bom poeta (ou cabrito)
não berra

o poema
antes de escrito
antes de ser
é a possibilidade
do que não foi dito
do que está
por dizer
e que
por não ter sido dito
não tem ser
não é
senão
possibilidade de dizer

mas
dizer o quê?
dizer
olor de fruta
cheiro de jasmim?

mas
como dizê-lo
se a fala não tem cheiro?
por isso é que
dizê-lo
é não dizê-lo
embora o diga de algum modo
pois não calo

por isso que
embora sem dizê-lo
falo:
falo do cheiro
da fruta
do cheiro
do cabelo
do andar
do galo
no quintal

e os digo
sem dizê-los
bem ou mal

se a fruta
não cheira
no poema
nem do galo
nele
o cantar se ouve
pode o leitor
ouvir
(e ouve)
outro galo cantar
noutro quintal
que houve

(e que
se eu não dissesse
não ouviria
já que o poeta diz
o que o leitor
– se delirasse –
diria)

mas é que
antes de dizê-lo
não se sabe
uma vez que o que é dito
não existia
e o que diz
pode ser que não diria

e
se dito não fosse
jamais se saberia

por isso
é correto dizer
que o poeta
não revela
o oculto:
inventa
cria
o que é dito
(o poema
que por um triz
não nasceria)

mas
porque o que ele disse
não existia
antes de dizê-lo
não o sabia

então ele disse
o que disse
sem saber o que dizia?
então ele o sabia sem sabê-lo?
então só soube ao dizê-lo?
ou porque se já o soubesse
não o diria?

é que só o que não se sabe é poesia

assim
o poeta inventa
o que dizer
e que só
ao dizê-lo
vai saber
o que
precisava dizer
ou poderia
pelo que o acaso dite
e a vida
provisoriamente
permite


Ferreira Gullar


[Bibliotecário de Babel]

.

23.4.14

Kutxi Romero (Amor?)





AMOR?



Qué sabrán los poetas y sus
míseras bocas de amor.
Qué doctrina habrá en acariciar pieles
desde sus versos de mierda,
sus falsas vidas,
sus supuestos afligidos semblantes,
de sus torturadas vidas me río yo,
porque yo he visto poesía en las caras
y los días de los míos,
en callos y sudores,
en enfrentadizas miradas a un mundo
que no vereis ni en el más abyecto de
vuestros sonrosados sueños,
en pieles tatuadas por soles navajeros
y vientos del sur,
yo he visto poesía en madrugadas en vela,
en las paredes de mi casa,
he visto poesía huir de papeles, dogmas y
métricas, poesías sin lágrimas,
sin malditismos ni presunción alguna,
una poesía de pan y agua,
de te quiero porque sí,
la que me trajo vida y se la llevará,
la que te ofrezco, mundo de mierda,
mientras viva.

Kutxi Romero

[No supiste, o no quisiste]



O que saberão de amor os poetas
e suas bocas de miséria?
Que doutrina haverá no afago de peles
dos seus versos de merda,
suas falsas vidas,
seus pretensos aflitos semblantes?
De suas vidas torturadas me rio eu,
porque a poesia vi-a
nas caras e nos dias dos meus,
em calos e suores,
em olhares de desafio para um mundo
que jamais vereis nem no mais abjecto
dos vossos sonhos cor de rosa,
em peles tatuadas por sóis cortantes
e ventos do sul,
eu vi a poesia em madrugadas sem sono,
nas paredes de casa,
vi-a a fugir de papéis, dogmas
e métricas, poesia sem prantos,
sem malditismos nem qualquer presunção,
uma poesia de pão e água,
de quero-te porque sim,
essa que me deu vida e que há-de levá-la,
essa que eu te ofereço, mundo de merda,
enquanto viver.

(Trad. A.M.)

.



22.4.14

Fernando Pessoa (Não: não digas nada)





Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já.

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada; sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.


Fernando Pessoa

.

21.4.14

Jorge Luis Borges (Os meus livros)





MIS LIBROS



Mis libros (que no saben que yo existo)
son tan parte de mí como este rostro
de sienes grises y de grises ojos
que vanamente busco en los cristales
y que recorro con la mano cóncava.
No sin alguna lógica amargura
pienso que las palabras esenciales
que me expresan están en esas hojas
que no saben quién soy, no en las que he escrito.
Mejor así. Las voces de los muertos
me dirán para siempre.

Jorge Luis Borges

[Autores editores]



Meus livros (que não sabem que eu existo)
são tão parte de mim como este rosto
de têmporas e olhos cinzentos
que em vão procuro nos espelhos
e que percorro com a mão em concha.
Não sem certa amargura
penso que as palavras essenciais,
que me expressam, estão nessas folhas
que não sabem quem eu sou, não naquelas que escrevi.
Melhor assim. As vozes dos mortos
dir-me-ão para sempre.

(Trad. A.M.)

.

19.4.14

Pedro Andreu (Letra por letra)




LETRA A LETRA


Perdona si mi voz no es la que era,
si en mi cuarto hay ese olor
a plácida violencia tras el llanto, si tengo canas
y por fin me asalta la resaca tras la fiesta
con su cuchillo hiriente y melancólico,
si aún llega fin de mes a noche trece,
si la ducha sigue estropeada,
si no he ganado nunca el Jaime Gil de Biedma
ni aprendí a bailar tangos ni manejo
automóviles caros como la madrugada...
Perdóname también si no me corto un pelo
ni trabajo ni duermo ni dejo de llamarte
ni sé pedir perdón como dios manda
sin reírme en la madre que parió a este planeta.

Perdona —conejito de miel, hembra de otros,
bichito de la luz en mi pasado,
memoria ardida en cueros, perfume
de corazón burdel— tantas palabras putas
que te dije.
Perdóname... si me voy olvidando de tu cara,
si dibujé tu nombre en nuestro patio
con un palo y oriné sobre él
hasta borrarte el alma, letra a letra.

Pedro Andreu

[Las afinidades electivas]

[YouTube]



Perdoa se minha voz não é a que era,
se o meu quarto tem esse odor
a plácida violência depois do pranto,
se tenho cãs e me assalta a ressaca após a festa
com seu punhal agressivo e melancólico,
se o fim do mês chega logo na noite treze,
se o chuveiro continua avariado,
se nunca ganhei o Jaime Gil de Biedma,
nem aprendi a dançar tango nem conduzo
carros caros como a madrugada...
Perdoa-me também se não corto um cabelo
nem trabalho nem durmo nem deixo de chamar-te
nem sei pedir perdão como deus manda
sem me rir da mãe que pariu este mundo...
Perdoa – coelhinho de mel, fêmea de outrem,
bichinho da luz do meu passado,
ardida memória, perfume de coração bordel –
tantas palavras feias que te disse.
Perdoa-me... se a tua cara me vai esquecendo,
se com um pau escrevi teu nome no pátio
e urinei sobre ele
até te apagar a alma, letra por letra.

(Trad. A.M.)

.


18.4.14

Bertolt Brecht (Contra os objectivos)





CONTRA OS OBJECTIVOS


1

Quando os que combateram a injustiça
Mostram as faces feridas
A impaciência dos que estiveram em segurança é
Grande.

2

Porque vos queixais? - perguntam eles
Combatestes a injustiça! Agora
Foi ela que vos venceu: calai-vos pois.

3

Quem combate, dizem eles, tem de saber perder
Quem busca a luta corre perigo
Quem age com violência
Não se deve queixar da violência.

4

Ai, amigos que estais em segurança,
Por quê tão inimigos? Somos nós
Vossos inimigos, nós que somos inimigos da injustiça?
Se os combatentes contra a injustiça estão vencidos
Nem por isso a injustiça se faz justa!!

5

Pois as nossas derrotas
Nada provam senão
Que somos poucos
Os que combatemos contra a vilania.
E dos espectadores nós esperamos
Que ao menos tenham vergonha!


Bertolt Brecht

(Trad. Paulo Quintela)


[Luz & sombra]

.

17.4.14

Blanca Varela (Suposições)





SUPUESTOS



el deseo es un lugar que se abandona
la verdad desaparece con la luz
corre-ve-y-dile

es tan aguda la voz del deseo
que es imposible oírla
es tan callada la voz de la verdad
que es imposible oírla

calor de fuego ido
seno de estuco
vientre de piedra
ojos de agua estancada
eso eres

me arrodillo y en tu nombre
cuento los dedos de mi mano derecha
que te escribe

me aferro a ti
me desgarra tu garfio carnicero
de arriba abajo me abre como a una res
y estos dedos recién contados
te atraviesan en el aire y te tocan

y suenas suenas suenas
gran badajo
en el sagrado vacío de mi cráneo.

Blanca Varela

[Life vest under your seat]




o desejo é um lugar que se abandona
a verdade desaparece com a luz
corre-vê-e-diz-lhe

é tão aguda a voz do desejo
que é impossível ouvi-la
é tão calada a voz da verdade
que é impossível ouvi-la

calor de fogo passado
seio de estuque
ventre de pedra
olhos de água entancada
eis o que és

ajoelho-me e em teu nome
conto os dedos da mão direita
que te escreve

agarro-me a ti
o teu gancho rasga-me
abre-me de cima abaixo como uma rês
e estes dedos contados há pouco
trespassam-te no ar e tocam-te

e tu soas soas soas
badalo imenso
no vazio sagrado da minha mente

(Trad. A.M.)

.

16.4.14

Daniel Faria (Explicação do poeta)





EXPLICAÇÃO DO POETA



Pousa devagar a enxada sobre o ombro
Já cavou muito silêncio

Como punhal brilha em suas costas
A lâmina contra o cansaço


Daniel Faria

.

15.4.14

Pedro A. González Moreno (Prólogo)





PRÓLOGO



No meio dos meus livros,
nesse frio reino da desordem
que são os livros de minha casa – onde
é que já se viu, ordem no reino da dor? – há
uma estante onde mal
chega a luz. Às vezes ouve-se um ruído
de passos nela, e a madeira range
com um estalido surdo como de osso.
Tal como um organismo monstruoso,
cresce a estante como se pretendesse
escorar o ar e as paredes
ou o sonho da minha casa;
mas dessas prateleiras vivas
uma há, abaulada, que range
com som de carne e ressuma
não sei se tinta fresca, resina ou sangue
ou só gotas de raiva e desconsolo.
Uma prateleira onde não cabe
nem mais uma folha,
que racharia
se lhe pusessem em cima só mais
um grama de dor.
E range,
range sempre, todas as noites,
como pele a ponto de rasgar,
como terra maldita cujos mortos
não aprendessem ainda
a morrer definitivamente.


PEDRO A. GONZÁLEZ MORENO
Anaqueles sin dueño
Hiperión (2010)

(Trad. A.M.)


.

14.4.14

Dana Gioia (Insónia)





INSOMNIA



Now you hear what the house has to say.
Pipes clanking, water running in the dark,
the mortgaged walls shifting in discomfort,
and voices mounting in an endless drone
of small complaints like the sounds of a family
that year by year you've learned how to ignore.
But now you must listen to the things you own,
all that you've worked for these past years,
the murmur of property, of things in disrepair,
the moving parts about to come undone,
and twisting in the sheets remember all
the faces you could not bring yourself to love.
How many voices have escaped you until now,
the venting furnace, the floorboards underfoot,
the steady accusations of the clock
numbering the minutes no one will mark.
The terrible clarity this moment brings,
the useless insight, the unbroken dark.

DANA GIOIA
Daily Horoscope
(1986)



Escutas agora o que a casa tem para dizer.
Canos barulhentos, água a correr no escuro,
os muros hipotecados a tornar-se desconfortáveis
e vozes erguendo-se num murmúrio
de pequenas queixas como os sons de família
que tu aprendeste a ignorar ano a ano.
Mas agora tens de ouvir as coisas que te pertencem,
tudo isso por que trabalhaste nos últimos anos,
o murmúrio dos bens, de coisas estragadas,
partes quase a cair e a desfazer-se;
e lembrar, revirando-te na cama, todas
as caras que não te foi dado amar.
Quantas vozes te escaparam até agora,
o forno eléctrico, o soalho por baixo dos pés,
as acusações constantes do relógio,
contando os minutos que ninguém regista.
A claridade terrível deste momento,
a inútil revelação, a escuridão intacta.

(Trad. A.M.)

.

13.4.14

Patricio Rascón (O silêncio)





SILENCIO



Inseparable del silencio
Siempre
El sonido de tu voz

Patricio Rascón

[Ocurre mientras dormimos]




Inseparável do silêncio
Sempre
O som da tua voz

(Trad. A.M.)


.

12.4.14

Charles Bukowski (Hoje)





TONIGHT



“your poems about the girls will still be around
50 years from now when the girls are gone,”
my editor phones me.
dear editor:
the girls appear to be gone
already.
I know what you mean
but give me one truly alive woman
tonight
walking across the floor toward me
and you can have all the poems
the good ones
the bad ones
or any that I might write
after this one.
I know what you mean.
do you know what I mean?

Charles Bukowski



“os teus poemas de mulheres ainda existirão
daqui a 50 anos quando elas já tiverem desaparecido”,
diz-me ao telefone o meu editor
meu caro editor:
ao que parece as mulheres já desapareceram mesmo.
sei o que queres dizer
mas dá-me para hoje uma mulher realmente vivinha da silva
pisando na sala a dirigir-se para mim
e podes ficar com todos os poemas
os bons
os ruins
ou outros que eu possa escrever
depois deste.
sei o que queres dizer.
sabes tu o que eu quero dizer?

(Trad. A.M.)

.

11.4.14

Paz Hernández (Algumas palavras para meu pai)





UNAS PALABRAS A MI PADRE



En el fuego, con las botas puestas
sobre el fuego
el casco bajo el fuego
y el coraje llama para
proteger la vida
por encima de todo.

En pijama, subiendo
unas escaleras de madera que
esta noche crujen
deshaciendo la horca
por encima de todo
haciendo la vida.

En el jardín, con las manos llenas
de tierra y una mujer tan rubia
tan contenta
plantando juntos
la vida
amamantándola.

Siendo incendio,
bajo los escombros, de vida,
que se asoma a la luz.

Velando las noches de fiebre
de las crías.

Curando las alas rotas de los pájaros
aprendiendo a volar
escuchando a Bach.

Manifestándote
en las calles,
sonriendo en la cocina.

Así eres, como la vida
y como el fuego te quiero
hija del fuego.

Paz Hernández




À fogueira, com as botas
sobre o lume
o capacete por baixo
e a coragem chama de
proteger a vida
acima de tudo.

De pijama, subindo
as escadas de madeira que
rangem à noite
desfazendo a forca
acima de tudo
fazendo a vida.

No jardim, as mãos cheias
de terra e uma mulher tão loira
tão contente
plantando juntos
a vida
amamentando-a.

Sendo incêndio,
sob os escombros, de vida,
assomando à luz.

Velando as noites de febre
dos filhos.

Curando as asas quebradas das aves
aprendendo a voar
a ouvir Bach.

Manifestando-te nas ruas,
sorrindo na cozinha.

Assim és, tal como a vida,
e como ao fogo te quero,
filha do fogo.

(Trad. A.M.)

.

10.4.14

Cassiano Ricardo (Poética)





POÉTICA



1

Que é a Poesia?

uma ilha
cercada
de palavras
por todos
os lados.

2

Que é o Poeta?

um homem
que trabalha o poema
com o suor do seu rosto.
Um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem.


Cassiano Ricardo



>>  Fundação-1 (tudo+algo) / Fundação-2 (poemas/10 livros) / Jornal de Poesia (18p+bio-biblio) / Antonio Miranda (24p)

.

9.4.14

Irene Sánchez Carrón (Não falemos de poesia)





NO HABLEMOS DE POESÍA


No hablemos de poesía.
La tarde está perfecta,
llueve y la gente corre a sus refugios.
Pensemos adónde irá la mujer
de hermosas piernas salpicadas de barro
o el hombre sin paraguas
que cruza sin permiso la avenida.
Pronto se quedará desierta nuestra calle
y tendremos que hablar de cualquier cosa,
de poesía quizá,
de cualquier cosa.


Irene Sánchez Carrón

[Emma Gunst]



Não falemos de poesia.
A tarde está óptima,
chove e as pessoas correm para suas casas.
Pensemos aonde irá a mulher
de belas pernas salpicadas de lama
ou o homem sem guarda-chuva
que atravessa sem licença a avenida.
Depressa ficará deserta a rua
e vamos ter de falar de qualquer coisa,
de poesia talvez,
de qualquer coisa.

(Trad. A.M.)

.

8.4.14

Carlos Drummond de Andrade (Para sempre)





PARA SEMPRE



Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
– mistério profundo –
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.


Carlos Drummond de Andrade


[Bula revista]

.



7.4.14

Um verso (137)





Um verso de Rui Pires Cabral
(feito, afeito ou desafeito):




eu sempre estranhei um pouco a cama da vida


.

José Bento (Nenhum dos meus caminhos)





Nenhum dos meus caminhos guarda a tua sombra:
só as minhas mãos ficaram maiores com a tua ausência
e andam perdidas,
não sabendo escontrar-se uma com a outra.

O ventre de cada dia é um espelho a recordar-te
- um espelho onde o meu rosto não cabe -
e eu avanço, petrificado de silêncio,
como se me chamasses,
tendo-te cada momento mais distante
nas asas cansadas dos olhos sonolentos.

Se descendo minhas pálpebras prendesse a tua imagem,
jamais amanheceria para mim.
Se as minhas mãos decepadas pudessem encontrar-te,
dar-te-ia minha mãos como espada para o teu regresso.

Assim, gasto-me nos longos túneis desta ânsia,
certo de que jamais
estarei presente para ti
em cada estrela que descobrires na noite.


José Bento



>>  Antonio Miranda (2p) / Infopedia (perfil) / Wikipedia

.

6.4.14

Carlos Marzal (Omnia secundum litem fiunt)





OMNIA SECUNDUM LITEM FIUNT



Contra nosotros mismos, y contra la idea
que de nuestro demonio hemos formado,
para que de él se sirvan los demás,
para que nos sirvamos. Contra la vieja sangre
que quiere destruirte. A contratiempo,
contra el tiempo, que ya se ha terminado
aun antes de empezar. Y contra las inútiles
lecciones del dolor. Contra el azar ya escrito,
inapelable. Y contra la ciudad de las ciudades,
que es la ciudad del alma. Contra lo que ahora olvido,
contra lo que podría recordar y contra
el fracasado propósito de esta enumeración,
que es encerrar el mundo.
                        Todo es contienda,
todo nos duele y ya nos abandona,
y todo permanece y es lo mismo.

Salvar la piel un día es un milagro.


Carlos Marzal

[Life vest under your seat]



Contra nós mesmos, contra a ideia
que temos do nosso demónio,
para que os outros dele se sirvam,
e nós. Contra o velho sangue
que nos quer destruir. A contratempo,
contra o tempo, que terminou
antes mesmo de começar. E contra as inúteis
lições da dor. Contra o acaso já escrito,
sem apelo. E a cidade das cidades,
contra a cidade da alma. Contra aquilo
que agora não lembro,
contra o que podia recordar e contra
o fracassado propósito desta enumeração,
que é encerrar o mundo.
                          Tudo é disputa,
tudo nos dói e nos abandona,
e tudo permanece e é o mesmo.

Salvar a pele um dia é um milagre.

(Trad. A.M.)

.

5.4.14

António José Forte (O poeta em Lisboa)





O POETA EM LISBOA



Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha – numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.


António José Forte

[Arquivo de cabeceira]

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4.4.14

Um verso (136)





Um verso de António Franco Alexandre
(um alexandrino, por assim dizer):



Olho-te agora e já não estremeço



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António Gregório (A traição do Celso)





A TRAIÇÃO DO CELSO



Jogava comigo na defesa reduto
dos inábeis dos impopulares (abaixo
de nós só o guarda-redes): o Celso e eu
vendo a glória avançada e esperando os embates
entre o medo de sempre e o desejo da acção
heróica redentora. Mas como no amor
cabia-nos menos defender antes ser
repositório de culpas pelos falhanços
colectivos e como um amante traiu-me
quando atrás de não sei que instinto (parecia
doido) subiu à baliza dos outros e
marcou o melhor golo da terceira classe.

António Gregório


[Antologia]


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3.4.14

Paco Moral (Sem impressão, sem marca)





SIN IMPRESIÓN, SIN HUELLA



Nada más que la ausencia de tu dolor me habita.

Y esas marcas oscuras que buscas en mis ojos
delatan la vigilia de las horas sin verte,
la ausencia de tu llama,
los siglos que se pasan sin saber de tu vida.
Sin huella, sin impresión, sin nada corpóreo
a lo que asirme,
te extraño hasta la angustia.

Bastaría una caricia
y el sol que anuncia abril tendría sentido.

Paco Moral



Habita-me a dor da tua ausência, nada mais.

E as manchas escuras que buscas em meus olhos
acusam a vigília das horas sem te ver,
a ausência da tua chama,
os séculos que passam sem nada saber de ti.
Sem marca, sem impressão, sem nada corpóreo
a que agarrar-me,
que falta que me fazes até à angústia.

Uma carícia bastava
e o sol de Abril já teria sentido.

(Trad. A.M.)

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2.4.14

Anne Sexton (De elevador para o céu)





RIDING THE ELEVATOR INTO THE SKY



As the fireman said:
Don't book a room over the fifth floor
in any hotel in New York.
They have ladders that will reach further
but no one will climb them.
As the New York Times said:
The elevator always seeks out
the floor of the fire
and automatically opens
and won't shut.
These are the warnings
that you must forget
if you're climbing out of yourself.
If you're going to smash into the sky.

Many times I've gone past
the fifth floor,
cranking upward,
but only once
have I gone all the way up.
Sixtieth floor:
small plants and swans bending
into their grave.
Floor two hundred:
mountains with the patience of a cat,
silence wearing its sneakers.
Floor five hundred:
messages and letters centuries old,
birds to drink,
a kitchen of clouds.
Floor six thousand:
the stars,
skeletons on fire,
their arms singing.
And a key,
a very large key,
that opens something
- some useful door
- somewhere
up there.

Anne Sexton

[Hasta donde llega la voz]



Como disse o bombeiro,
não queiras um quarto acima do quinto
andar em qualquer hotel em Nova Iorque.
Têm escadas, mas ninguém as subirá.
Como disse o New York Times,
o elevador acerta sempre
com o piso do incêndio,
abre-se automaticamente
e não se fecha.
Estes os avisos
que tu terás de esquecer
se a ideia for sair de ti mesmo
e ir-te esmagar de encontro ao céu.

Muitas vezes passei eu
do quinto andar,
por ali acima,
mas só uma vez cheguei ao topo.
Piso sessenta,
plantas pequenas e cisnes
curvados sobre a campa.
Piso duzentos,
montes com a paciência de um gato
e silêncio calçado com sapatilhas.
Piso quinhentos,
cartas e mensagens com séculos,
aves de beber,
uma cozinha feita de nuvens.
Piso seis mil,
estrelas,
esqueletos em chama,
com os braços cantando.
E uma chave,
uma chave enorme
que alguma coisa há-de abrir
- alguma porta útil
- em algum lado
- lá em cima.

(Trad. A.M.)

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1.4.14

Pablo Neruda (Ode ao livro-II)





ODA AL LIBRO (II)


Libro
hermoso,
libro,
mínimo bosque,
hoja
tras hoja,
huele
tu papel
a elemento,
eres
matutino y nocturno,
cereal,
oceánico,
en tus antiguas páginas
cazadores de osos,
fogatas
cerca del Mississippi,
canoas
en las islas,
más tarde
caminos
y caminos,
revelaciones,
pueblos
insurgentes,
Rimbaud como un herido
pez sangriento
palpitando en el lodo,
y la hermosura
de la fraternidad,
piedra por piedra
sube el castillo humano,
dolores que entretejen
la firmeza,
acciones solidarias,
libro
oculto
de bolsillo
en bolsillo,
lámpara
clandestina,
estrella roja.

Nosotros
los poetas
caminantes
exploramos
el mundo,
en cada puerta
nos recibió la vida,
participamos
en la lucha terrestre.
Cuál fue nuestra victoria?
Un libro,
un libro lleno
de contactos humanos,
de camisas,
un libro
sin soledad, con hombres
y herramientas,
un libro
es la victoria.
Vive y cae
como todos los frutos,
no sólo tiene luz,
no sólo tiene
sombra,
se apaga,
se deshoja,
se pierde
entre las calles,
se desploma en la tierra.
Libro de poesía
de mañana,
otra vez
vuelve
a tener nieve o musgo
en tus páginas
para que las pisadas
o los ojos
vayan grabando
huellas:
de nuevo
descríbenos el mundo
los manantiales
entre la espesura,
las altas arboledas,
los planetas
polares,
y el hombre
en los caminos,
en los nuevos caminos,
avanzando
en la selva,
en el agua,
en el cielo,
en la desnuda soledad marina,
el hombre
descubriendo
los últimos secretos,
el hombre
regresando
con un libro,
el cazador de vuelta
con un libro,
el campesino arando
con un libro.

Pablo Neruda



Livro
belo,
livro,
mínimo bosque,
folha
após folha,
cheira
aos elementos
teu papel,
és matinal
e nocturno,
cereal,
oceânico,
nessas páginas antigas
caçadores de ossos
fogueiras do Mississipi,
canoas das ilhas,
mais tarde
caminhos
e caminhos,
revelações,
povos
levantados,
Rimbaud como um peixe
ferido a sangrar
palpitante no lodo,
e a beleza
da fraternidade,
pedra a pedra
sobe o castelo humano
dores entretecendo
a firmeza,
acções solidárias,
livro
oculto
de bolso
em bolso,
lâmpada
clandestina,
estrela vermelha.

Nós, poetas
caminhantes
exploramos
o mundo,
a vida nos recebendo
em cada porta,
participamos
na luta terrestre.
Qual a vitória nossa?
Um livro,
um livro cheio
de humanos contactos,
de camisas,
um livro
sem solidão, com homens
e ferramentas,
um livro
é a vitória.
Vive e cai
como todo o fruto,
não só tem luz,
não só tem
sombra,
como se apaga
e desfolha,
perde-se
pelas ruas,
despenha-se na terra.
Livro de poesia
de manhã,
volta
de novo
a ter neve ou musgo
nessas páginas,
para que os passos
ou os olhos
aí vão deixando
marcas:
diz-nos de novo
o mundo
os veios
por entre a espessura,
os altos bosques,
os planetas
polares,
e o homem
nos caminhos,
nos novos caminhos,
avançando
na selva,
na água,
no céu,
na solidão nua do mar,
o homem
descobrindo
os últimos segredos,
o homem
regressando
com um livro,
o caçador de volta
com um livro,
o camponês lavrando
com um livro.


(Trad. A.M.)


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