28.2.13

Maria do Rosário Pedreira (Ofereço-te palavras)





OFEREÇO-TE PALAVRAS



Se terminar este poema, partirás. Depois da
mordedura vã do meu silêncio e das pedras
que te atirei ao coração, a poesia é a última
coincidência que nos une. Enquanto escrevo
este poema, a mesma neblina que impede a
memória límpida dos sonhos e confunde os
navios ao retalharem um mar desconhecido

está dentro dos meus olhos – porque é difícil
olhar para ti neste preciso instante sabendo que
não estarias aqui se eu não escrevesse. E eu, que

continuo a amar-te em surdina com essa inércia
sóbria das montanhas, ofereço-te palavras, e não
beijos, porque o poema é o único refúgio onde
podemos repetir o lume dos antigos encontros.

Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,
que apenas escreva até ao fim mais esta página
(que, como as outras, será somente tua – esse

beijo que já não desejas dos meus lábios). E eu, que
aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade
nos faz adultos para sempre, sei que te perderei

em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;
e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á
a última coincidência que nos une.


Maria do Rosário Pedreira

.

27.2.13

Alejandro Céspedes (Empenhas-te em chegar até final)





(VIII)

Te empeñas en llegar hasta el final,
en exhumar ausencias, noches rotas,
mientras te va emergiendo
de yo no sé qué abismo de la mente
un iceberg de dudas que intentas derretir.
Y al amarnos, pues insistes en eso,
todas nuestras caricias se deforman.
El cuerpo es una jungla
tan poderosamente enmarañada
que nada hay más difícil que encontrarnos.
Nunca estamos tan solos como ahora.
Pero el dolor, que es sabio, nos engaña.


Alejandro Céspedes



Empenhas-te em chegar até final,
exumar ausências, noites perdidas,
enquanto te vai emergindo
de não sei que abismo da mente
um iceberg de dúvidas que tentas derreter.
E ao amar-nos, pois insistes nisso,
deformam-se nossas carícias.
O corpo é uma selva
tão poderosamente emaranhada
que nada há mais difícil que encontrar-nos.
Nunca estamos tão sós como agora.
Mas a dor, que é sábia, nos engana.


(Trad. A.M.)

.





26.2.13

Paulo Moreiras (O Ouro dos Corcundas - Vocabulário - A-F)





aboiz (armadilha / o... estava preparado e não poderiam escapar)
abronho* (disse o padre, já esquecido do empachado...)
acachada (de pernas abertas, com a saia.../ oculta, agachada, abrigada)
acanaviado* (vinha... e bastante enfermiço dos surtos de cólera)
acascarrilhado (jogos... de cartas/ que utiliza a cascarrilha, cartas por distribuir, voltarete)
aganar (grazinou o corregedor... um pouco aganado/ entanguido, exausto, fatigado)
alfombra (alcatifa)
algibebe (ao modo dos... tinha artes e engenhos para virar casacas/ vendedor de roupa)
alicantina (v. engazupar/ ardil, astúcia, manha, treta)
almocreve (...das petas=peteiro, mentiroso)
alporcar (v. esturrinho/ fazer alporca ou mergulhia, plantação por estaca)
alqueive (anda como sapo por... / terra lavrada, para pousio)
alumbrar (acender, iluminar / o padre se alumbrou com a ideia do goraz quisado)
andarengo (... e meditabundo / de andar, a andar)
ape (apre? ai, instante, repente / num ape rebentaram várias opiniões)
apodadura (apodo)
arrebolada (faces arreboladas pelo sol e pelo esforço/avermelhada, rosada)
assalharopado (... com tais notícias / assarapantado)
atassalhar (um gato pronto a... a desorientada rataria/morder, abocanhar)
avantesma (fantasma, espectro, aparição)
avelado (avelhado, velho, seco)
azabumbado (para deixar o capitão-mor assim tão abespinhado e.../ perturbado, surpreso)
azevieiro (v. gomarreiro/ esperto, ladino/ libertino, devasso/ adj.+subst.)
babujar (falar / babujou o Trombeta)
bagalhudo (rico, de muito bago / bagalhudos e pataqueiros burgueses)
bandarrice (qualidade ou característica de bandarra, mandrião, vadio, preguiçoso)
bandurrilha (tanto poltrão, ... e petimetre que lhe entravam pela porta/ vadio, malandro)
barbaçanas (barbas, barbaças / sorriso de orelha a orelha, por baixo das tesas...)
bargante (maroto, malandro / v. caterva)
beberrónia (bebida, copofonia / v. pingarola)
bigorrilha(s)(indivíduo vil, reles, zé-ninguém)
bilhostre (biltre, pulha)
bisbórrias (chusma de biltres e.../ indivíduo reles, sem valor)
bisnau (que ou quem não é de fiar, velhaco, espertalhão)
bispar (ver, reparar)
boleta (bolota / valeram-nos as castanhas e as boletas)
boneja (eram as suas bonejas, proficientes na arte da galanteria marota/ amásia)
bródio (banquete, farra, pândega)
bugio (onde o... escondia o rabo / sempre me saíram uma cambada de bugios/ macaco)
busilhão (v. matrafona /tesouro, riqueza, muito dinheiro, roupa suja, monte de lixo)
cacaburrada (tudo lhe saíra uma... / asneira, trabalho malfeito/ler ‘cacaborrada’)
cachinada (dizia para si... soltando umas cachinadas/ risada, gargalhada, de escárnio)
cachonda (que tem cio / perigo de espevitar os ânimos da malta...)
caleiro (o que faz cal)
calhandro (depois de vaziado o.../ vaso de dejectos, para despejo)
canguinhas (o avental do taberneiro.../ind.pequeno e franzino, ou sovina)
caperotada (aquela... de cains e abéis/ refogado de bocados de ave já assados)
caraminholas (petas, mentiras / depois daquele cortejo de caraminholas e trampolinas)
carnaz (quando a roda da fortuna está de.../ lado interno do couro, o avesso)
cascabulhar (outros cascabulhando sortes e azares em cima das mesas / dados/ procurar)
cascabulho (era o... e frascário Custódio/casca, coisa sem importância, pess. traiçoeira)
casquilho (grande figurão de terreiro e... de praça / muitos peraltas, ... e trapaceiros/ janota)
caterva (andava à solta grande... de parvajolas, matutos e bargantes de alto coturno)
catrapilhar (agarrar, pilhar, catrafilar / muito sevandija que a pode... à má fila)
catrefada (caterva, grande número ou quantidade)
chamborgas (s.m. fanfarrão, presumido valentão / eis o... do Rossio)
charro (com tamanho sarapatel de pecos e charros fugidos/ grupo de bandidos, bando)
chelpa (dinheiro)
chibante (janota, bem-posto / homem bem trajado, ...)
chorume (grande quantidade / um... de chelpa que só visto)
colareja (colarejas e saloias a mercarem as suas frutas / de Colares)
cômoro (arreto, socalco, muro / por trás de um... um grupo de bigorrilhas embuçados)
conanas (sujeito, badameco / aí estacionavam três ou quatro..., cheios de mesuras)
confeitos (não tanto para folares e.../ guloseima de açúcar, rebuçado)
confita (à certa... / com certeza, no tempo previsto, inesperadamente)
conventículo (de con-vento, reunião, assembleia / o corregedor enalteceu o aprumo do...)
cordovão (alpergatas de... esfiapado e roto/ de Córdoba, couro de cabra curtido)
corrilho (sala de estar, própria para os femeeiros corrilhos/ conjura, mexerico, intriga)
cortinhal (conjunto de cortinhas, campos de cultivo)
corvejar (com a cabeça a... ideias/ de corvo, gritar, repisar, remoer)
cotilhão (como se dançassem o... ou o lundum/ dança de pares em passe de polca ou valsa)
coturno (categoria / v. caterva)
crespina (v. redenho/ barrete)
cróia (mulher devassa, puta)
doesto (começou a estrebuchar doestos a torto e a direito / afronta, injúria)
embiocado (tão... se achava pela puta Tomásia / tapado, embuçado, coberto)
empachado (v. abronho / muito cheio, entalado, impedido)
engalispada (rataria que se quedou... sem saber para onde se escapulir/ encrespar, < galispo)
engazupar (no fim de alicantinas tão bem engazupadas/ enganar, iludir, pôr em prisão)
engolideiras (tossicando as intumescidas engolideiras/ goelas, gorgomilos)
ensancha (deitando mais ensanchas à conversa/ azo, ensejo, ocasião, acrescento)
escamugir-se (escapar, escapulir)
escandecer (que ali escandeceu em todo o seu esplendor/ aquecer, inflamar, corar)
escorchar ( de tirar a corcha, cortiça, rolha, abrir / há que lhe... os segredos)
espicho (pau afiado / como se o seu coração tivesse sido trespassado por vários...)
esturrinho (rapé, tabaco de cheirar / para alporcar as ventas com cibos de...)
farelório (de farelo, falatório, coisa sem valor / tudo não passava de... de bêbados e rameiras)
farronca (pimpão e cheio de.../ bravata, vaidade, voz grossa)
ferra* (adj. / v. mandinga)
fragalhoteiro (irado e cheio de raiva daquele.../ femeeiro)
fraldiqueira (guardou o precioso tesourinho na... / bolsa que se mete na fralda)
frascário (que ou quem é devasso, leviano, libertino)


(*) N/ encontrado nos dicionários.
Consultada a fonte mais autorizada, eis o esclarecimento:
abronho - admoestação, reprimenda (=abre-olhos)
acanaviado - magro, esgalgado (como uma cana)
ferra - forte, dura (como ferro)

.

Alejandra Pizarnik (Infância)





INFANCIA



Horas en que la yerba crece
en la memoria del caballo.
El viento pronuncia discursos ingenuos
en honor de las lilas,
y alguien entra en la muerte
con los ojos abiertos
como Alicia en el país de las maravillas.

Alejandra Pizarnik

[Cómo cantaba mayo]



Horas em que a erva cresce
na memória do cavalo.
O vento pronuncia discursos ingénuos
em honra dos lilases;
e alguém entra na morte
de olhos abertos
como Alice no país das maravilhas.

(Trad. A.M.)

.

25.2.13

Jorge de Sena (Hei-de ser tudo o que eles querem)






Hei-de ser tudo o que eles querem:
a raiva é toda de eu não ser um espelho
em que mirem com gosto os próprios cornos,
as caudas com lacinhos, e os bigodes
de chibos capripédicos.
Não sou sequer imagem.
Mas voz eu sou
que como agulha ou lança ou faca ou espada
mesmo que não dissesse da miséria
de lodo e trampa em que se espojam vis
só porque existe é como uma denúncia.


Hei-de ser tudo, não o sendo. Um dia
— podres na terra ou nos caixões de chumbo
estes zelosos treponemas lusos —
uma outra gente, e limpa, julgará
desta vergonha inominável que é
ter de existir num tempo de canalhas
de umbigo preso à podridão de impérios
e à lei de mendigar favor dos grandes.


Jorge de Sena

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24.2.13

América Martínez Ferrer (Anuncia-me)





(IV)

Anúnciame
Espanta las sombras que ladran a mi paso
y los ojos curiosos que desde los resquicios
me ven andar a tientas
desandando

Alláname el camino
que tropiezo
porque no estaba escrito que volviera

(el polvo sacudido de mi cuerpo
se levanta de nuevo y se me pega)

Anticípame
Nada quiero dejarle a la sorpresa
Salí de mí huyendo de este grito
pero el grito me alcanzaba adonde fuera


América Martínez Ferrer



Anuncia-me
Espanta as sombras que me ladram à passagem
e os olhos curiosos que nas gretas
me vêem retroceder
às apalpadelas

Achana-me o caminho
que eu tropeço
por não estar escrito que voltasse

(o pó que sacudo do corpo
levanta de novo e cola-se a mim)

Antecipa-me
Não deixarei nada à surpresa
Saí de mim mesmo fugindo a este grito
mas o grito apanha-me onde quer que eu vá

(Trad. A.M.)



>> Gente emergente (7p)


.

23.2.13

Um verso (116)





Um verso de Ramos Rosa
(da luz e da sombra):




Escrever é abrir na sombra uma sombra
e respirar na sombra
um corpo de sombra



António Ramos Rosa

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Alberto Vega ( Boa noite, amigos)





BUENAS NOCHES, AMIGOS



Te aguardaba en estos versos.

Entre la niebla cotidiana y unos granos de opio
elegí este horizonte de noches y fonemas
para mirar tus ojos frontalmente.

Ahora soy un príncipe encantado
bajo este aspecto de sapo un tanto lírico
que deberás besar
si quieres que este cuento acabe bien
para nosotros.
                   Créeme:
no hay orgullo ni bajeza en mis palabras.

Yo te aguardaba en estos versos desde siempre.


Alberto Vega




Aguardava-te nestes versos.

Entre a névoa quotidiana e alguns grãos de ópio
escolhi este horizonte de noites e fonemas
para te olhar de frente nos olhos.

Agora sou um príncipe encantado
sob este aspecto de sapo um tanto lírico
que terás de beijar
se quiseres que este conto acabe bem
para nós ambos.
Acredita,
não há orgulho nem baixeza nestas palavras.

Eu aguardava-te nestes versos desde sempre.


(Trad. A.M.)

.

22.2.13

Manuel de Freitas (Haiku do Beco São Miguel)





HAIKU DO BECO SÃO MIGUEL



As palavras são para as ocasiões,
o luto é quotidiano.

Não passou por aqui o amor.


Manuel de Freitas



[Donne-moi ma chance]

.

21.2.13

Rogelio Ramos Signes (O olhar comprometido)





LA MIRADA CÓMPLICE



Párate frente al espejo
sin miedo, sin ropa, sin complejos.
Acomoda el orden vanidoso de tu pelo
con algún ademán copiado de tu padre.
Como si fueses tu hermano,
ensaya un gesto de vigor.
Aspira profundo. Mira de soslayo.
Perfúmate las axilas y no sufras.
Es tu madre quien te mira desde el espejo.
Todo está en orden.


Rogelio Ramos Signes



Põe-te diante do espelho,
sem medo, sem roupa, sem complexos.
Ajeita o penteado vaidoso
com um trejeito copiado do pai.
Como se fosses o teu irmão,
ensaia um gesto de vigor.
Respira fundo. Olha de soslaio.
Perfuma as axilas e não sofras.
É a tua mãe quem te olha do espelho.
Está tudo em ordem.


(Trad. A.M.)

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20.2.13

Paulo Moreiras (Custódio Henriques)





Custódio Henriques Brás regressou a Chão de Couce, depois de vazado o calhandro, estrelando ares de pintalegrete, com o coração a estrepitar de alegria por ter caído nas boas graças do corregedor, depois daquele cortejo de caraminholas e trampolinas sobre Vicente Maria.

A caixa do peito parecia pequena para conter o tamanho contentamento que palpitava dentro; um pouco mais e rebentava como as fartas morcelas na sertã, quando picadas com a ponta de uma faca.

“Agora aquele peralta vai ver com quantos nós se faz uma corda”, dizia para si o Trombeta, soltando de quando em vez umas cachinadas, antevendo os imbróglios em que o corregedor colocaria Vicente da Bufarda.

Tais pensamentos e maquinações sabiam-lhe pela vida.


PAULO MOREIRAS
O Ouro dos Corcundas
Casa das Letras
(2011)

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Claudio Rodríguez (O que não é sonho)





LO QUE NO ES SUEÑO



Déjame que te hable en esta hora
de dolor, con alegres
palabras. Ya se sabe
que el escorpión, la sanguijuela, el piojo,
curan a veces. Pero tú oye, déjame
decirte que, a pesar
de tanta vida deplorable, sí,
a pesar y aun ahora
que estamos en derrota, nunca en doma,
el dolor es la nube,
la alegría, el espacio;
el dolor es el huésped,
la alegría, la casa.
Que el dolor es la miel,
símbolo de la muerte, y la alegría
es agria, seca, nueva,
lo único que tiene
verdadero sentido.
Déjame que, con vieja
sabiduría, diga:
a pesar, a pesar
de todos los pesares
y aunque sea muy dolorosa, y aunque
sea a veces inmunda, siempre, siempre
la más honda verdad es la alegría.
La que de un río turbio
hace aguas limpias,
la que hace que te diga
estas palabras tan indignas ahora,
la que nos llega como
llega la noche y llega la mañana,
como llega a la orilla
la ola:
irremediablemente.

Claudio Rodríguez

[O melhor amigo]




Deixa-me falar-te nesta hora
de dor, com alegres
palavras. Sabemos
que o escorpião, o piolho, a sanguessuga,
curam por vezes. Mas ouve, deixa
que te diga que,
apesar de tanta vida desgraçada,
apesar, sim, mesmo agora
que estamos vencidos, mas não dominados,
a dor é a nuvem, a alegria o espaço;
a dor é o hóspede,
a alegria a casa.
Que a dor é mel, símbolo da morte,
e a alegria é amarga, seca, nova,
a só coisa que tem
verdadeiro sentido.
Deixa-me dizer-te,
com antigo saber:
apesar, apesar
de todos os pesares,
por muito dolorosa que seja,
e mesmo por vezes imunda,
sempre, sempre
a verdade mais funda é a alegria.
Aquela que o rio turvo
transforma em água limpa,
a que me obriga a dizer-te
estas indignas palavras agora,
a que nos chega como
chegam a noite e o dia,
assim como chegam as ondas à praia:
irremediavelmente.


(Trad. A.M.)*



(*) Dei conta a tempo da inserção repetida: O que sonho não é.
Mas, cotejando as duas versões, saltam à vista as suas diferenças (até no título, é curioso).
Ficam as duas por isso mesmo.


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19.2.13

René Char (Estrangulei meu irmão)





J'AI ÉTRANGLÉ MON FRÈRE



J'ai étranglé
Mon frère
Parce qu'il n'aimait pas dormir
La fenêtre ouverte

Ma soeur
A-t-il dit avant de mourir
J'ai passé des nuits pleines
A te regarder dormir
Penché sur ton éclat dans la vitre.


René Char


[Arquivo de cabeceira]



Estrangulei
meu irmão
porque não gostava de dormir
de janela aberta

Minha irmã
diz-me ele ao morrer
passei grandes noites
a ver-te dormir
debruçado sobre a tua imagem no vidro.


(Trad. A.M.)

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18.2.13

Juan Antonio González Iglesias (Este é o meu corpo)





ESTO ES MI CUERPO



Esto es mi cuerpo. Aquí
coinciden el lenguaje y el amor.
La suma de las líneas
que he escrito ha dibujado
no mi rostro, sino algo más humilde:
mi cuerpo. Esto que tocas es mi cuerpo.
Otro lo dijo
mejor. Esto que tocas
no es un libro. Es un hombre.
Yo añado que esto que te toca ahora
es un hombre.
Soy yo, porque no hay
ni una sola sílaba que esté libre de amor,
no hay ni una sola sílaba
que no sea un centímetro
cuadrado de mi piel.
En el poema soy acariciable
no menos que en la noche, cuando tiendo
mi sueño paralelo al sueño que amo.
No mosaico, ni número, ni suma.
No solo eso.
Esto es una entrega. Soy pequeño
y grande entre tus manos.
Esta es mi salvación. Este soy yo.

Este rumor del mundo es el amor.


Juan Antonio González Iglesias


[Un poema cada día]




Este é o meu corpo, onde
coincidem amor e linguagem.
A soma das linhas que escrevi
não esboçou meu rosto,
mas algo mais humilde, meu corpo.
Isto que tocas é meu corpo.
Como outro o disse melhor, isto
que tocas não é um livro, é um homem.
Sou eu, porque não há
uma sílaba que seja que esteja livre de amor,
não há uma só sílaba que não seja
um centímetro da minha pele.
No poema eu sou afagável
não menos que na noite, quando estendo
meu sonho a par do sonho que amo.
Não mosaico, nem número, nem soma.
Não apenas isso.
Isto é uma entrega. Sou pequeno
e grande nas tuas mãos.
Esta a minha salvação. Este sou eu.

Este rumor do mundo é o amor.


(Trad. A.M.)

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17.2.13

Olhar (123)







Ançã>Cantanhede


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Roque Dalton (A verdade é concreta)





LA VERDAD ES CONCRETA


(I)

Tú le diste un corazón de carne y sangre a la verdad
pero nos advertiste que funcionaba
como una bomba de tiempo
o como una manzana.

Que podría servir para volar la maquinaria del odio
pero que también se podría podrir.

(II)

¡Ay de los que creen que porque la verdad es concreta
ella es sólo como una piedra, como un bloque de hormigón
o un ladrillo!

Una bicicleta,
un jet,
una astronave,
son cosas concretas como la verdad.

Lo mismo que un rompecabezas.
Y un combate cuerpo a cuerpo.


Roque Dalton


[Baile del sol]



(I)

Tu deste à verdade um coração de carne e sangue
mas avisaste que funcionava
como bomba-relógio
ou como maçã.
Que podia servir para voar a maquinaria do ódio
mas podia também apodrecer.


(II)

Ai de quem crê que sendo a verdade concreta
não é mais do que uma pedra, um bloco de betão,
um tijolo!
Uma bicicleta,
um jacto,
uma nave astral,
são coisas concretas como a verdade.
Tal como um quebra-cabeças.
E uma luta corpo a corpo.


(Trad. A.M.)

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16.2.13

Manuel Bandeira (Belo belo - II)





BELO BELO-II


Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.


Manuel Bandeira

.

15.2.13

Francisco Brines (Alocução pagã)





ALOCUCIÓN PAGANA


¿Es que, acaso, estimáis que por creer
en la inmortalidad,
os tendrá que ser dada?
Es obra de la fe, del egoísmo
o la desolación.
Y si existe, no importa no haber creído en ella:
respuestas ignorantes son todas las humanas
si a la muerte interroga.

Seguid con vuestros ritos fastuosos, ofrendas a los dioses,
o grandes monumentos funerarios,
las cálidas plegarias, vuestra esperanza ciega.
O aceptad el vacío que vendrá,
en donde ni siquiera soplará un viento estéril.
Lo que habrá de venir será de todos,
pues no hay merecimiento en el nacer
y nada justifica nuestra muerte.

Francisco Brines

[O melhor amigo]



Pensais, por acaso, que por crer
na imortalidade,
ela vos será dada?
Ela é obra da fé, do egoísmo,
da desolação.
Se existe, não importa que falte a crença:
respostas ignorantes são as humanas
se a morte interroga.

Andai lá com vossos ritos, oferendas aos deuses,
ou grandes monumentos funerários,
inflamadas preces, cega esperança.
Ou então aceitai o vazio que virá,
onde não há-de soprar sequer um vento estéril.
Aquilo que há-de vir será de todos,
pois não há mérito no nascimento,
nem nada que justifique a morte.


(Trad. A.M.)

.

14.2.13

Um verso (115)





Um verso de Forte
(um verso forte?):




Dente por dente: a boca no coração do sangue: escolher a tempo a nossa morte e amá-la.




António José Forte

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Marcelo Daniel Díaz (Newton e eu)





NEWTON Y YO



La manzana que cayó durante la siesta de Newton
descansa en mis manos
como un agujero negro hambriento de sentidos.
La muerte de los cometas cabe en su núcleo.
Escribo el poema
con lo que tarda un rayo de luz
en aparecer en el mundo.
Newton sabía que los árboles
trabajan a la inversa de la gravedad,
lo leyó debajo de sus píes:
en cada hombre, comprimida,
hay una descarga universal
del tamaño de un planeta.


Marcelo Daniel Díaz


[Marcelo Leites]




A maçã que caiu durante a sesta de Newton
repousa nas minhas mãos
como um buraco negro faminto de sentidos.
A morte dos cometas cabe no núcleo.
Escrevo o poema
com o que demora um raio de luz
a aparecer no mundo.
Newton sabia que as árvores
trabalham ao invés da gravidade,
leu-o debaixo dos pés:
comprimida, em cada homem,
há uma descarga universal
do tamanho de um planeta.


(Trad. A.M.)

.

13.2.13

Manuel António Pina (Todas as palavras)





TODAS AS PALAVRAS



As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.


Manuel António Pina


[Ainda que os amantes se percam]


.

12.2.13

Agustín García Calvo (Não tentar a má sorte)





NO TENTAR LA MALA SUERTE



Ser un mal poeta,
fatal si es necesario,
y por la mañana levantarte muy tarde,
alargar los versos
como quien acumula piedrecitas
y después las lanza a la marea,
y por la noche levantarte aún más tarde,
y después las lanza a la resaca,
escoger una palabra al azar
y dar vueltas y más vueltas
por la ciudad, junto a ella,
cogiditos de la mano,
escoger una palabra gigante,
como, por ejemplo, hermafrodita,
y pasearla junto a ti
por en medio de las multitudes desacostumbradas,
y después levantarte muy tarde
en la mañana, y que ella ya no esté,
lavarte los dientes y las manos,
sentarte a escribir y esperar,
esperar, cansarte de esperar,
limpiar el polvo y hacer la cama,
descubrir bajo la mesa
cientos
de objeciones muertas
y un despertador enajenado
que gira y gira, impasible
ante tus horas de sueño o de insomnio.


Agustín García Calvo



Ser um mau poeta,
fatal se for preciso,
e de manhã levantar muito tarde,
esticar os versos
como quem junta pedrinhas
e depois as joga à corrente,
e à noite levantar mais tarde ainda,
e depois as joga à ressaca,
tirar uma palavra à sorte
e dar voltas e mais voltas
pela cidade, junto com ela,
agarradinhos pela mão,
escolher uma palavra gigante,
hermafrodita, por exemplo,
e passeá-la contigo
pelo meio da multidão desacostumada,
e depois levantar muito tarde
pela manhã, com ela já ausente,
lavar as mãos e os dentes,
sentar a escrever e esperar,
esperar, até cansar de esperar,
limpar o pó e fazer a cama,
descobrir debaixo da mesa
centenas
de objecções mortas
e um despertador alienado
que gira e volta a girar, impassível
frente às tuas horas de sono ou de insónia.


(Trad. A.M.)

.

11.2.13

João Araújo Correia (Sem Método - Vocabulário)




almadraque (um anjo gordo, reclinado num... de nuvens/ coxim, almofada. colchão)
almuinha (quintal, horta) =almunha<ár.
alor (modo de andar, excitação, entusiasmo)
andaina (vestimenta – vestido com... leves)
apresigar (comer com presigo=conduto=o que se come com pão, ex. toucinho, presunto / apresigo a leitura dos contos de Fialho com a contemplação das terras ardidas)
aulido (uivo, grito plangente)
arrelampada (vejo-a... depois que deu uma queda/ assombrada, estonteada)
bouça (terreno vedado, inculto, de mato)
broslado (um saco de viagem... de flores murchas/ bordado)
camarinhas (...da testa e do nariz/ gotas de suor)
capela (enrugou as capelas dos olhos vítreos para soletrar/ ‘capela do olho’>pálpebra)
cardenho (casoto rústico)
chamadoiro (ninguém lhe acerta com o... oficial/ nome, designação)
cômoro (arreto, socalco, muro de suporte)
corta (era preciso acabar a corta naquele dia/ corte, acção ou tarefa de cortar)
derrancar (corromper, alterar, perverter)
escaleira (escada, pode ser o todo ou a parte, degrau)
escamugia-se (escapulia-se)
escanchas (duas... que a separavam da escola/ passos=canchas)
escoteiro (levanto-me tão... como beata de ofício/ lesto, leve, ligeiro)
esmoirear (mourejar, labutar)
espaldas (entre... de granito/ costas, encostas)
*esterlinto (os outros brincavam, mais esterlintos que o demo/ inquieto, remexido)
esterroado (até aflorar o chão.../ de terra solta, desfeita, esboroada)
filaucioso (atrevido, convencido, jactante)
gabelas (rosas, vêm-me de longe às.../ braçados)
graeiro (o beirão sopesa o valor do graeiro que sementa/ grão)
landreirada (... landreiro=cacete, varapau)
*larpeiro (avia-te, larpeiro/ homem lento, molengão)
leiva (sulco de lavrar a terra, terrão, porção de terra entre sulcos)
loquela (são menos bruscas de gesto e de.../ fala, expressão)
lumieira (archote)
macanjo (palerma)
meiote (peúgos)
mísulas (bonecagens que tenho sobre.../ ornato saliente em que pousa arco, busto, vaso)
molhelha (peça do apeiro, colocada na cabeça da vaca)
nimbos (nuvens)
nitrir (rinchar, relinchar)
pâmpano (ramo novo da videira)
*patum (entre anjos patuns)
pavia (casta de pêssego, duro e com bico)
pecar (as rosas, neste desterro, pecam/ tornar-se peco, definhar, doença dos vegetais)
pevidosa (fala defeituosa)
poder (era uma grande mata, o poder do mundo de carrascos e medronheiros(=ror, muitos)
rebolir (rebolar-se, andar muito depressa)
rás>rases (brilham os rases no museu) panos de Arrás=tapeçarias
ror (há um ror de anos/ muitos, grande quantidade)
saibo (outras de igual... campesino/ sabor)
sementar (semear)
soalheiro (subst. – as florescências más dos soalheiros / sítios de má-língua)
tredo/a (nem todas as sereias são tredas/ traiçoeiras)
tredamente (à traição)
trouxa (...estribeira)
vergueiro (vara)
víridos (... renovos/ verdes
 
(*) N/ encontrado nos dicionários. 
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Vicente Gallego (Uma tarde qualquer)





UNA TARDE CUALQUIERA



No hay grandeza en la tarde, ni en el ocio
que la tarde me entrega y que he gastado
en buscar algo grande en el entorno
que ahora envuelve mi tiempo. Y después de la música,
y de mucho tabaco, y de dar muchas vueltas
por mi vieja memoria y por la casa,
he encontrado en un libro algunas fotos
de una tarde tranquila como ésta
en las que estoy fumando en la terraza.
Y al mirar esas fotos todavía recientes
de un momento trivial como este mismo,
una extraña emoción adorna los objetos
que desde allí me observan, y que voy comparando
con lo que son ahora: las macetas
han cambiado de sitio, ya se han muerto las flores
que crecían entonces, y entre otros detalles
sin ninguna importancia que mi mano mudó
al correr de los días, descubro ahora que es la mano
que sostiene el cigarro y parece la misma
lo que más ha cambiado, pues pertenece a un hombre
que soñaba un futuro diferente
para el que hoy lo mira, y se sonríe,
y alimenta otros sueños, y comprende
que también pasarán los de este día,
y aún contempla la tarde que se escapa,
y en ella al fin percibe, durante un solo instante,
esa extraña grandeza
que al pasar pone el tiempo en las cosas pequeñas.


VICENTE GALLEGO
La plata de los días
(1996)




Não há grandeza na tarde, nem no ócio
que a tarde me empresta e que eu gastei
à procura de algo grande no espaço
que envolve o meu tempo. E depois da música,
e de muito tabaco, e de dar voltas e voltas
por dentro da casa e da memória,
topei num livro algumas fotos
de uma tarde tranquila como esta
em que apareço a fumar no terraço.
E ao olhar para essas fotos ainda recentes
de um momento trivial como este,
uma estranha emoção adorna os objectos
que dali me observam, e que eu vou comparando
com o que são agora: os vasos
mudaram de sítio, morreram já as flores
que então cresciam, e além doutros detalhes
sem importância que a minha mão mudou
ao correr do tempo, descubro agora que a mão
que segura o cigarro e parece a mesma
foi o que mais mudou, pois pertence a um homem
que sonhava um futuro diferente
para aquele que hoje o observa, e sorri,
e alimenta outros sonhos, e compreende
que os de hoje também passarão,
e contempla ainda a tarde que foge,
percebendo enfim, por um só instante,
essa estranha grandeza
que o tempo ao passar põe nas coisas pequenas.


(Trad. A.M.)

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10.2.13

Manoel de Barros (A tartaruga)





A TARTARUGA



Desde a tartaruga nada não era veloz.
Depois é que veio o forde 22
E o asa dura (máquina avoadora que imita
os pássaros, e tem por alcunha avião).
Não atinei até agora por que é preciso andar
tão depressa.
Até há quem tenha cisma com a lesma porque
ela anda muito depressa.
Eu tenho.
A gente só chega ao fim quando o fim chega!
Então pra que atropelar?



MANOEL DE BARROS
Compêndio para uso dos pássaros
(Poesia reunida 1937-2004)
Quasi Edições, 2007

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9.2.13

Jorge M. Molinero (Liberdade)





LIBERTAD



La libertad, a mis treinta y tantos, se empolva
en viejas camisetas del Che. Es, como dijo
Benedetti, una palabra aguda nada más.


Se escapa en teléfonos móviles, entre
las piernas de una mujer. Huye por trabajos
mal pagados, desaparece cuando todos los días
tenemos que comer.
Un amigo, una hermana. Hipotecas para casas de muñecas.
Libertad es un pájaro de alas rotas.
Dime, niña con naranjas por pechos, dime,
¿qué es la libertad?, dímelo tú, sabes que no existe.
Tú mejor que nadie, tú que eres mujer.


Aparece fugaz cuando ya no hay nada que perder.


Jorge M. Molinero




A liberdade, nos meus trinta e tal, cobre-se de pó
em velhas camisetas do Che. Como disse
Benedetti, é uma palavra aguda nada mais.


Evade-se em telemóveis, entre
as pernas de uma mulher. Foge por trabalhos
mal pagos, desaparece quando todos os dias
temos de comer.
Um amigo, uma irmã. Hipotecas para casas de bonecas.
Liberdade é um pássaro de asas partidas.
Diz-me, nina com laranjas por seios, diz-me lá,
o que é a liberdade? diz-mo tu, que sabes que não existe.
Tu melhor que ninguém, tu que és mulher.


Fugaz aparece quando já nada há que perder.


(Trad. A.M.)

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8.2.13

Olhar (122)








Ançã>Cantanhede



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Victor Botas (Com indecisa pena)





Con indecisa pluma voy poniendo
indecisas palabras. (Quiero darte
un poco de mi espíritu). Es difícil
llenar tanto papel con unas líneas
capaces de emoción. A cada paso
se bifurca el camino y aparecen
otros nunca pensados; sólo uno,
que no sabré encontrar, es el preciso.
Escribo, pues, errando las ideas
y sus vanas palabras. (Se parece
bastante este oficio a esa otra busca
más rica, que es la vida. La ventaja
de la ficción consiste en que, si quiero,
rompo la hoja. Puedo repetirme).


Víctor Botas




Com pena indecisa vou compondo
indecisas palavras. (Quero dar-te
um pouco do meu espírito). Difícil
encher tanto papel com algumas linhas
capazes de emoção. A cada passo
se bifurca o caminho e outros
aparecem jamais pensados; um só,
que não saberei achar, é o preciso.
Escrevo, pois, errando as ideias
e as palavras. (Ofício este assaz
parecido a essoutra busca
mais rica, que é a vida. Vantagem
da ficção, rasgar a folha, se eu quiser.
Posso assim repetir-me).


(Trad. A.M.)

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7.2.13

Luís Filipe Parrado (Com unhas e dentes)





COM UNHAS E DENTES



Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
o sabor amargo da casca
de tão doce,
não o esqueces.


Luís Filipe Parrado


[As folhas ardem]


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6.2.13

Roger Wolfe (Relatividade)





RELATIVIDAD



La vida es como
despertarse
a media noche
aturdido
y confuso, absolutamente
estúpido,
forzando
ojos arruinados
para ver el reloj:
nunca sabes
demasiado bien
si son las 3 y 1/2
o las 6 y 1/4.
Y lo que es más,
a quién
coño
le
importa.


Roger Wolfe




A vida é como
acordar
a meio da noite
aturdido
e confuso, absolutamente
estúpido,
a forçar
a vista estragada
para ver o relógio:
nunca se sabe
muito bem
se são 3 e 1/2
ou 6 e 1/4.
E mais ainda,
a quem, conho,
isso importa.


(Trad. A.M.)

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5.2.13

Paulo Moreiras (Entrada em Lisboa)





O figurão devia ser homem de grandes negócios, pois tinha o saquitel atulhado de moedas de todos os valores e de grande maquia: era um chorume de chelpa que só visto.

Aquela dilatada melgueira não só lhe garantiria uma refeição quente como também lhe poderia assegurar um sítio para pernoitar durante algum tempo, o suficiente para orientar a sua vida naqueles primeiros dias.

Sem mais detenças e feliz como uma alvorada de passarinhos, guardou o precioso tesourinho na fraldiqueira e enfiou pelo labirinto das betesgas e vielas do Bairro Alto à procura de um quarto para alugar.

A sua aventura começara com bons augúrios, ou assim ele pensava, que aquele dédalo de casario era domicílio de muitos peraltas, casquilhos e trapaceiros, verdadeiro agulheiro de larápios, onde se exercitavam as calejadas artes da ladroeira e da putaria.


PAULO MOREIRAS
O Ouro dos Corcundas
Casa das Letras
(2011)

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Roberto Juarroz (Estou desperto)





Estou desperto.
Durmo.
Sonho que estou desperto.
Sonho que durmo.
Sonho que sonho.


Sonho que sonho
que estou desperto.
Sonho que sonho
que durmo.
Sonho que sonho
que sonho.


Estou desperto.



ROBERTO JUARROZ
Poesia Vertical (Antologia)
Trad. Arnaldo Saraiva
Campo das Letras (1998)

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4.2.13

Luís de Camões (Perdigão perdeu a pena)





Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha.


Perdigão que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.


Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha.



Luís de Camões

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3.2.13

Piedad Bonnett (Revelação)




REVELACION


De niña me fue dado mirar por un instante
los ojos implacables de la bestia.
El resto de la vida se me ha ido
tratando inútilmente de olvidarlos.


Piedad Bonnett



Em criança me foi dado olhar um instante
os olhos implacáveis da besta.
O resto da vida foi-se-me
tratando inutilmente de esquecê-los.


(Trad. A.M.)

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2.2.13

João Araújo Correia (Teotónio Francisco)





Teotónio Francisco Sabugueiro – estou a vê-lo – entrou para o colégio um tamanhão, vestido de burel do melhor, sim, senhores; mas as calças, demasiado curtas, atraiçoavam-lhe os meiotes azuis e os canos folgados das botas novas.

Trazia uma gravata – ele dizia manta – estofada que nem o assento duma poltrona antiga.

Olhava muito desconfiado e rancoroso para os companheiros – rancor apenas velado pela sombra de um boné de aduelas, molhelha que o fazia dobrar o pescoço, como a corola duma flor pesada.



- JOÃO DE ARAÚJO CORREIA, Sem Método, XI.

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Pedro A. González Moreno (Apenas deriva)





APENAS DERIVA



Saltar de um barco, às vezes,
torna-se muito mais heróico
do que viver o naufrágio diário
das coisas simples. Nem sempre
o importante é navegar, mas saber
com precisão a onda exacta
em que deve acabar a travessia.
Para além dessa onda
não há já viagem, só horizonte
sem outro destino nem direcção
senão a água.
Por isso é necessário
traçar com precisão as coordenadas,
calcular quanto olvido
será preciso no impulso
e deixar a sombra pendurada, como um fato,
numa ponte qualquer. E depois saltar,
com um sonho de sal no olhar.
Quando já se percebeu que errado
não era o rumo, mas o barco,
é melhor atirar-se á água,
saltar como quem sabe
que para lá da beira dessa última onda
não há já navegação,
apenas deriva.


PEDRO A. GONZÁLEZ MORENO
Anaqueles sin dueño
Hiperión (2010)

(Trad. A.M.)

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1.2.13

José Miguel Silva (Preocupações naturais)





PREOCUPAÇÕES NATURAIS



Eu não tinha muita coisa e hoje tenho
a soma dos teus passos quando desces
a correr os nossos treze degraus e
me prometes: até logo. Mas se
nada (ou só o nada) está escrito,
quem mais ama é quem mais tem
a recear. Com isso, passo horas
num rebate de dramáticos motivos:
engano-me na roda dos temperos,
ponho sal na cafeteira, maionese
no saleiro, vejo o mel mudar de cor
e se me chama o telefone empalideço
como o rosto do relógio da cozinha.
Só sossego quando as gatas me garantem
que chegaste e posso então, aliviado,
unir-me ao coro de miaus que te recebe,
para mais uma noite roubada ao escuro.


José Miguel Silva


[Hospedaria Camões]


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