30.6.12

Carlos Nejar (O universo)





O UNIVERSO




O universo é um carreiro.
Estamos
no fim de nós mesmos.
Nada nos basta.
Nada é um instante.
E os extremos se iluminam,
gastando.


CARLOS NEJAR
A Idade da Eternidade
- Poesia reunida
IN-CM (2001)

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Alberto Vega (Economia de meios)






ECONOMÍA DE MEDIOS (MEJOR: DE MIEDOS)




A veces suena el timbre del teléfono
y entra en casa el cartero, disfrazado de fax.


No le presto atención, mas algo en mi interior
me dice que una noche vendrá Dios
a cobrar la demora en la hipoteca de mi vida
simulando que me trae la cerveza y las pizzas
o un recibo impagado de la empresa del gas.


Entonces hará frío, será tarde
y en toda la ciudad no habrá un maldito
Banco de Horas abierto que me avale.



Alberto Vega




Às vezes toca o telefone
e entra em casa o carteiro, disfarçado de fax.


Não lhe dou atenção, mas algo me diz
no íntimo que uma noite virá Deus
cobrar o débito na hipoteca da minha vida
simulando que me traz a cerveja e as pizzas
ou o recibo não pago da empresa do gás.


Então fará frio, será tarde
e não haverá em toda a cidade um maldito
Banco de Horas aberto que me afiance.



(Trad. A.M.)



>>  Pandiella y ocio (perfil) / Pandiella y ocio (anto=linques)

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29.6.12

António Gregório (Suite número seis)






SUITE NÚMERO SEIS




É um grande incómodo não saber tocar
violoncelo que o pranto seria doutra
condição: ela gravíssima procurando
pela sala quieta de vez em vez sobre
o parapeito procurando procurando
na lida da luz entre as ramagens a nossa
sentença enquanto eu antecipado – a dor
em arco – ressumava contra as cordas o
adeus.


E a tristeza imensa ser-me-ia então como
tijolo de subir paredes ao invés
desta mais triste ainda – se nunca lhe achei
o préstimo – que por dentro vai corrompendo
corrompendo; podia dá-la já pensei
nisso: que talvez ma aceitasse o senhor
Rostropovitch.


António Gregório



[A casa que caminha]



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28.6.12

Jorge Boccanera (Envios)






ENVÍOS




Todo lo que se da llega a destiempo.
No existe otra manera.
Entre el ojo y la mano hay un abismo.
Entre el quiero y el puedo hay un ahogado.
Un país que asoma su cabeza deforme en una carta,
y va a darse a destiempo, nada es lo que esperabas.
Y lo que llega envuelto en papel de regalo se irá
sucio de odio.


Bailamos entre los escombros de una cita.
Dibujamos una taza de café en el desierto.
Vivimos de sumar y de restar:
lo que te da el amor, lo que te quita el miedo.
Al final nos entregan los huesos de un perfume.


Aún así persistimos.
En alguna montaña vive un pez resbaloso.
Entre números rotos se desliza una estrella.


Jorge Boccanera





Tudo o que é dado vem fora de tempo.
Não existe outro modo.
Entre o olho e a mão há um abismo,
entre o quero e o posso um afogado.
Um país que mostra sua cabeça disforme
e que se entrega a destempo,
nada é o que esperamos.
E o que chega embrulhado em papel de presente
há-de ir-se manchado de ódio.


Bailamos entre as ruínas dum encontro.
Desenhamos uma chícara de café no deserto.
Vivemos de somar e subtrair,
o que nos dá o amor, o que nos tira o medo.
Dão-nos no fim os ossos dum perfume.


Mesmo assim persistimos.
Em alguma montanha vive um peixe fugidio.
Entre números partidos desliza uma estrela.



(Trad. A.M.)

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27.6.12

Olhar (116)









Faial



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Jon Juaristi (Aliud et alibi)






ALIUD ET ALIBI




Como nada gloriosos combatientes
de una guerra perdida, regresáis,
imágenes de mi sesenta y ocho.


Praga pillaba lejos,
no muy cerca París.
La vida me arrastraba de la mano
hacia un verano gris.


Recuerdo un año cruel:
el despertar de un sueño de bonanza católica
y de jardín inglés.


Y, creo haberlo dicho, París ni lo pisé.
Nunca pude llevarme
por delante un adarme
de gendarme.



JON JUARISTI
Los paisajes domésticos
(1992)




Combatentes nada gloriosos
de uma guerra perdida, regressais,
imagens do meu sessenta e oito.


Praga ficava longe,
e não muito perto Paris.
A vida puxava-me pela mão
para um Verão cinzento.


Recordo um ano cruel,
o despertar dum sono de bonança católica
e de jardim inglês.


E, creio que já disse, em Paris nem pisei.
Nunca suportei
pela frente um dez réis
de gendarme.



(Trad. A.M.)

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26.6.12

António Barahona (Arte poética)





ARTE POÉTICA



Por cada verso feito quantas noites
desfeitas e mulheres transfiguradas,
madrugadas, cidades, auto-estradas,
montes de cartas, mortos e ausentes.


Por cada verso feito me despeço
deste mundo, em pedaços repartido,
pois só consigo reunir-me quando fundo
império de poema nunca escrito.


António Barahona


[Hospedaria Camões]

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25.6.12

Joan Margarit (Espaço e tempo)





ESPACIO Y TIEMPO




Y de pronto la casa es demasiado grande.
Tu madre y yo vaciamos tus armarios
y seguimos por mesas y anaqueles,
de retrato en retrato, tus sonrisas.
De noche los espejos, bajo la luz eléctrica,
muestran con más relieve tu vacío.
Los muebles son ahora más oscuros.
Por la escalera bajan la cálida baranda,
que aún recuerda tu pequeña mano,
y los peldaños que aún sienten
el roce de tus pasos. Y la casa,
grande y vacía ahora,
a su propio silencio mira y mira.


JOAN MARGARIT
Joana
(2008)



[Bibliotecário de Babel]





E de súbito a casa é demasiado grande.
Tua mãe e eu esvaziamos-te os armários
e seguimos por mesas e prateleiras,
de retrato em retrato, o teu sorriso.
De noite os espelhos, à luz eléctrica,
mostram com mais relevo o teu vazio.
Os móveis são agora mais escuros.
Descem pela escada o suave corrimão,
que ainda lembra tua mão pequena,
e os degraus que sentem ainda
o roçar de teus passos. E a casa,
grande agora e vazia,
olha e volta a olhar o seu próprio silêncio.


(Trad. A.M.)

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24.6.12

Ver (99)







(Henri Cartier Bresson)



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Joan Brossa (Fim do ciclo)





FIN DEL CICLO




Las hojas caídas obstruyen el camino.
Imagino que soy el que no soy.
Aquí me estoy muy quieto.
Procuro no moverme
y ocupar el mínimo espacio.
Como si ya no estuviese allí.
El silencio es el original,
las palabras son la copia.


Joan Brossa


(Versão Carlos Vitale)






As folhas caídas obstroem o caminho.
Imagino que sou aquilo que não sou.
Aqui estou muito quieto.
Procuro não me mexer
e ocupar o mínimo espaço.
Como se não estivesse já ali.
O silêncio é o original,
as palavras são a cópia.


(Trad. A.M.)

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23.6.12

Jean l'Anselme (O amor louco)





L’AMOUR FOU

                          (Avec un clin d’œil à André Breton)




Je suis à toi comme la sardine est à l’huile,
le maquereau au vin blanc, le loup au
fenouil, le brochet au beurre blanc.
Je suis à toi comme la glace est à la pistache,
le poulet aux hormones, la soupe à la
grimace, mon père avec la bonne.
Je suis à toi comme le vinaigre est à l’estragon,
la pêche à l’espadon, la salade aux lardons,
les gaîtés à l’escadron.
Je suis à toi comme le moutard à sa nourrice,
le motard à la police, les aristos à la lanterne,
les peupliers à la poterne.
Je suis à toi comme le yaourt est à la vanille, ton
sexe au parfum de glaïeul, le petit salé
aux lentilles, la mémère à son épagneul.
Je suis à toi comme tu es à moi, comme le ver
est à soie, comme l’avenir est à nous,
comme le garde est à vous, comme le train
est à l’heure.
Je suis à toi
comme les tiques aux bœufs.
On dit n’importe quoi
quand on est amoureux.



Jean l’Anselme





                      (Piscando o olho a André Breton)


Eu sou para ti como a sardinha para o azeite,
a cavala para o vinho branco, o barbo
para o funcho, o lúcio para a manteiga.
Eu sou para ti como o gelado para o pistachio,
o frango para as hormonas, a sopa para
a careta, meu pai mais a criada.
Eu estou para ti como o vinagre para o estragão,
a pesca para o peixe-espada, a salada para o toucinho,
as vagens para o esquadrão.
Eu estou para ti como o bébé para a ama,
o motoqueiro para a polícia, os lordes para a lanterna,
os choupos para a poterna.
Eu sou para ti como o iogurte para a baunilha, teu
sexo para o odor do gladíolo, o salgadinho
para as lentilhas, a avozinha para o seu cão.
Eu estou para ti como tu para mim, como o bicho
está para a seda, como o futuro para nós,
como a guarda está para vós, como o comboio
vem à hora.
Eu estou para ti
como as carraças para os bois.
Dizemos tudo e mais alguma coisa
quando estamos apaixonados.



(Trad. A.M.)

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22.6.12

Javier Salvago (A meia luz)






A MEDIA LUZ



Vivir así: sin angustiosos sueños,
con los deseos justos y contados,


sin prisa por llegar a ningún sitio,
sin esperar de nada demasiado...


tal vez no sea vivir. Pero es mi vida
(o, al menos, lo que de ella va quedando).


Javier Salvago





Viver assim, sem sonhos de angústia,
com desejos justos e contados,


sem pressa de chegar a lado nenhum,
sem de nada esperar demasiado...


talvez não seja viver. Mas é a minha vida
(ou, ao menos, o que dela vai ficando).


(Trad. A.M.)

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21.6.12

Amadeu Baptista (Com um só fósforo)







Com um só fósforo ilumino o infinito.
E muitas vezes o infinito é algo
muito próximo, um livro, uma chávena
de chá, o teu rosto escondido
na penumbra, o retrato de alguém desconhecido
que de uma praça, acena,
um fio de tabaco, um monograma
num lenço muito branco.
O infinito o mais das vezes é
não mais do que o que toca o coração,
uma leve poeira pelo ar, um ponto fixo
que a mão ousa tocar, esta chama
que de repente amplia a escuridão
e me torna visível a quem passa
e no clarão acende o seu cigarro.



Amadeu Baptista


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Eduardo Llanos (Perfil ge(ne)ral)







PERFIL GENERAL




¡Viva este general!
El mal lo hizo muy bien
y el bien lo hizo muy mal.



Eduardo Llanos




Viva o nosso general,
o mal fá-lo mui bem
e o bem muito mal.

(Trad. A.M.)



>>  Letras.s5 (55p) / Arte poetica (15p)

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20.6.12

Almada Negreiros (Reconhecimento à loucura)






RECONHECIMENTO À LOUCURA




Já alguém sentiu a loucura vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto do Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem nem resignação
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente e ganhar-lhe, e ganhar-lhe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira para tudo?
Tu só loucura és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.



Almada Negreiros



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19.6.12

Javier Almuzara (A prisão de papel)






LA CÁRCEL DE PAPEL




Las mejores historias que has vivido
te las contaron.
Dorados, minuciosos, lentos párrafos
que explicaban el mundo,
te negaron el mundo.


Y muy pronto añadiste
tu esfuerzo al de los que antes
alzaron aquel muro
de libros frente a ti;
también tú diste vida
a fantasmas de tinta y de papel:
tu propia vida.


Has pasado los años,
los días y las páginas
creyendo vanamente que si ahora
no estás tan vivo como los demás
cuando te mueras no estarás tan muerto.



JAVIER ALMUZARA
Por la secreta escala
(1994)

[Poeticas]






As melhores histórias que viveste
contaram-tas.
Dourados, minuciosos, lentos parágrafos
que explicavam o mundo,
negaram-te o mundo.


E depressa somaste
teu esforço ao dos que antes
ergueram esse muro
de livros à tua frente;
também tu deste vida
a fantasmas de tinta e papel,
tua própria vida.


Os anos passaste,
os dias, as páginas,
crendo em vão que se agora
não estás tão vivo como os outros
não estarás tão morto quando morreres.


(Trad. A.M.)

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18.6.12

Olhar (115)









Fajã > Faial


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Gabriel Zaíd (Teofanias)






TEOFANÍAS




No busques más, no hay taxis.


Piensas que va a llegar, avanzas,
retrocedes, te angustias,
desesperas.
Acéptalo
por fin: no hay taxis.


Y ¿quién ha visto un taxi?


Los arqueólogos han desenterrado
gente que murió buscando taxis,
mas no taxis.


Dicen
que Elías, una vez, tomó un taxi,
mas no volvió para contarlo.


Prometeo quiso asaltar un taxi.
Sigue en un sanatorio.


Los analistas curan
la obsesión por el taxi,
no la ausencia de taxis.


Los revolucionarios
hacen colectivos de lujo,
pero la gente quiere taxis.
Me pondría de rodillas
si apareciera un taxi.


Pero la ciencia ha demostrado
que los taxis no existen.


Gabriel Zaíd





Não busques mais, não há táxis.


Pensas que vem aí um, avanças,
retrocedes, angustias-te,
desesperas.
Aceita-o
por fim: não há táxis.


E quem é que já viu um táxi?


Os arqueólogos desenterraram
gente que morreu à procura de táxis,
mas não táxis.


Dizem
que Elias, uma vez, apanhou um táxi,
mas não voltou para o contar.


Prometeu quis assaltar um táxi.
Continua no sanatório.


Os analistas curam
a obsessão pelo táxi,
não a ausência de táxis.


Os revolucionários
fazem colectivos de luxo,
mas as pessoas querem táxis.


Eu punha-me de joelhos
se aparecesse um táxi.
Mas a ciência demonstrou
que os táxis não existem.


(Trad. A.M.)

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17.6.12

Alberto de Lacerda (Silêncio)






Silêncio
deitado ao comprido
no horizonte infinita-
mente
desdobrado




ALBERTO DE LACERDA
Átrio
IN-CM (1997)


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16.6.12

Pablo Casares (20 segundos)






20 SEGUNDOS




Unas miradas
que se encuentran
en un café desierto,


un lunar
en tu cuello
que es capaz
de volverme loco,


y 20 segundos


para encender un pitillo,
dar un trago al vino blanco
y ver cómo llega un tipo
que te besa
con la mitad de ganas
que lo hubiera hecho yo.


Pablo Casares


[Enrique Ortiz]




Dois olhares
que se cruzam
num café deserto,


um sinal
no teu pescoço
capaz
de me pôr louco


e 20 segundos


para acender um cigarro
tomar um gole do vinho branco
e ver chegar um tipo
que te beija
com metade só da vontade
com que eu o faria.



(Trad. A.M.)

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15.6.12

Um verso (106)






Um verso de Rui Pires Cabral
(filho de peixe...):



Reflectido nos teus olhos, o céu era um lugar inabitável.




Rui Pires Cabral



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Pere Quart (Codicilo de poeta)





CODICILO DE POETA



Os lego, amigos, sencillamente,
los tres humildes quehaceres de siempre:
vivir (y comer) con decoro cada día;
si podéis, encauzar codicia y lujuria;
pensar (creer o dudar)
en la certeza y las hipótesis
de la muerte de la carne
y la vida nueva del alma.

No hay nada más que hacer; y ya basta.
El resto es literatura.


PERE QUART
Vacaciones pagadas
(1959)

(Versão José Batlló)







Deixo-vos, amigos, simplesmente,
as três tarefas humildes de sempre:
viver (e comer) com decoro cada dia;
dominar, se puderdes, cobiça e luxúria;
pensar (ou crer, ou duvidar)
na certeza e nas hipóteses
da morte da carne
e da nova vida da alma.

Não há mais nada a fazer; e basta.
O resto é literatura.


(Trad. A.M.)



>>  Amediavoz (15p) / Escriptors (bio+biblio+anto+entrevista) / Wikipedia

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14.6.12

Al Berto (Se um dia a juventude voltasse)






se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida...


... sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras...
... porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor


depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
... mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo...


... mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição



Al Berto



[Arquivo de cabeceira]

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13.6.12

Jaime Sabines (Quebrado como um prato)







QUEBRADO COMO UN PLATO




Quebrado como un plato
quebrado de deseos, nostalgias, sueños
yo soy este que quiere a fulana el día trece de cada mes
y este que llora por la otra y por aquella
cada vez que las recuerda.
¡Qué deseo de hembras maduras y mujeres tiernas!
Mi brazo derecho quiere una cintura
y mi brazo izquierdo una cabeza.
Mi boca quiere morder y secar lágrimas.
Voy del placer a la ternura
en la casa del loco
encendiendo velas
y quemando mis dedos como copal
cantando con el pecho una rara canción obscura.
Estoy perdido y quebrado
y no tengo nada ni a nadie
ni puedo hablar ni sirve.
Solo puedo moverme en las horas
luminosas que caen las cenizas
y me dan mi colación
de piedras y sombras.


Jaime Sabines



[Poli del Amor]






Quebrado como um prato
quebrado de desejos, de saudades, de sonhos,
eu sou aquele que ama fulana a treze de cada mês
e que chora por esta e por aquela
de cada vez que as recorda,
Que fome de fêmeas maduras e de mulheres tenras!
Meu braço direito quer uma cintura
e meu braço esquerdo uma cabeça.
Minha boca quer morder e enxugar lágrimas.
Vou do prazer à ternura
em casa do louco
a acender velas
e queimar os dedos servindo de copal
a puxar do peito uma estranha canção.
Estou perdido e quebrado
não tenho nada nem ninguém
nem sequer consigo falar.
Só consigo mexer-me nas horas
luminosas em que caem as cinzas
e me dão meu repasto
de pedras e sombras.


(Trad. A.M.)

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12.6.12

Ver (98)








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Jaime Gil de Biedma (Pandémica e celeste)







PANDÉMICA E CELESTE





Imagina agora tu e eu
a falarmos, noite alta,
de homem para homem, finalmente.
Imagina,
uma dessas noites memoráveis
de estranha comunhão, a garrafa
meio vazia, os cinzeiros sujos,
depois de esgotado o tema da vida.
Que eu vou mostrar-te um coração,
um coração infiel,
nu da cinta para baixo,
hipócrita leitor – mon semblable, mon frère!


Porque não é a impaciência do buscador de orgasmo
que me puxa do corpo a outros corpos
possivelmente jovens:
eu persigo também o doce amor,
o terno amor para dormir junto
e alegrar minha cama ao despertar,
próximo como um pássaro.
Se eu não consigo nunca desnudar-me,
se não pude jamais envolver-me nuns braços
sem sentir – mesmo que só por um momento –
o mesmo deslumbramento dos vinte anos!


Para saber de amor, para aprendê-lo,
é preciso ter estado só.
E é preciso em quatrocentas noites
- com quatrocentos corpos diferentes –
ter feito amor. Que seus mistérios,
como disse o poeta, são da alma,
mas o corpo é o livro em que se lêem.


E por isso me alegra ter-me revirado
na areia grossa, os dois meio vestidos,
enquanto procurava aquele tendão do ombro.
Comove-me a lembrança de tantas ocasiões...
Aquela estrada do monte
e os bem empregados abraços furtivos
e o instante indefeso, de pé, após a travagem,
colados ao muro, cegos com as luzes.
Ou aquele entardecer, junto do rio,
a rir desnudados, coroados com hera.
Ou aquele portal em Roma – na via de Babuino.
E lembranças de caras e cidades
mal conhecidas, corpos entrevistos,
escadas sem luz, camarotes,
bares, passagens desertas, prostíbulos,
e de infinitas casas de banhos,
de fossos de um castelo.
Lembranças de vós, sobretudo,
ó noites de hotéis de uma noite,
eternas noites de pensões sórdidas,
em frios quartos,
noites que devolveis aos hóspedes
um esquecido sabor de si mesmos!
A história em corpo e alma, como quebrada imagem,
de la languer goutée à ce mal d’être deux.
Sem desprezar
- alegres como festa à semana –
as experiências de promiscuidade.


Embora sabendo que nada me valiam
trabalhos de amor disperso
se não existisse o verdadeiro amor.
Meu amor,
íntegra imagem de minha vida,
sol das noites mesmas que lhe roubo.


Sua juventude, a minha
- música do meu fundo –
sorri ainda na graça imprecisa
de cada corpo jovem,
em cada encontro anónimo,
iluminando-o. Dando-lhe alma.
E não há músculos formosos
que não me façam pensar nos seus formosos músculos
quando nos conhecemos, antes de ir para a cama.


Nem paixão de uma noite de dormida
que possa comparar
com a paixão que dá o conhecimento,
os anos de experiência
de nosso amor.
Porque no amor é também
importante o tempo.
E doce, de algum modo,
verificar com mão melancólica
sua visível passagem por um corpo
- enquanto que basta um gesto familiar
nos lábios,
ou a ligeira palpitação de um membro
para fazer-me sentir a maravilha
dessa graça antiga,
fugaz como um reflexo.


Na sua pele desmaiada,
quando os anos passarem e estivermos no fim
quero esmagar estes lábios
invocando a imagem do seu corpo
e de todos os corpos que um dia amei,
mesmo por instante, desfeitos pelo tempo.
Pedindo força para viver
sem beleza, sem força e sem desejo,
continuando juntos
até morrermos em paz, os dois,
como dizem que morrem aqueles que muito amaram.


Jaime Gil de Biedma


(Trad. A.M.)




> Outra versão:  Vício da poesia (José Bento)



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11.6.12

A.M.Pires Cabral (O que diz o rato)





O QUE DIZ O RATO



Tenho um destino. Nasci
para roer o silêncio – e vou roê-lo
metodicamente

até que um dia se invertam os papéis
e seja o silêncio a roer-me a mim.



A.M.Pires Cabral


[Hospedaria Camões]


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10.6.12

Manuel Moya / Umar Abass (Se assim quiseres)






Si así lo quieres,
cubre el cielo de tinieblas
y azota las cumbres y enfurece a los ríos,
pero apiádate de esta casa
que he alzado por tres veces
de la furia y la sevicia de los hombres.
Nada conozco más frágil que estos muros
donde un mísero fuego cada noche
me calienta y me da luz,
así que hazme el favor,
pasa de largo
y de castigar castiga las murallas del alcázar,
que se alzaron para desafiar al mundo,
y no a mí, que a nadie desafío.


UMAR ABASS
El sueño de Dakhla
(2008)

[El alma disponible]




Se assim quiseres,
cobre de trevas o céu
e açoita os cumes, enfurece os rios
mas amerceia-te desta casa
que três vezes ergui
da fúria e da maldade dos homens.
Nada sei mais frágil que estes muros
em que à noite um mísero fogo
me aquece e me ilumina,
faz-me por isso o favor,
passa ao largo
e a castigar castiga as muralhas do alcácer,
que se ergueram para desafiar o mundo,
e não a mim, que não desafio ninguém.

(Trad. A.M.)


>>  Ariadna Laberinto (7p+nota bio)
- Do criador: Manuel Moya (+efígie)
- Outra criatura: Violeta C. Rangel

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9.6.12

Francisco Alvim (Velho)







VELHO




Todo velho fica assim
Meio
Ah nem sei como fica
Ele não fica
Um velho não fica



Francisco Alvim

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Irene Sánchez Carrón (Esconde-esconde)






EL ESCONDITE





Tengo miedo.

Jugábamos al escondite.
Yo me ocultaba
y tú me perseguías.
Pasaron largas horas
y tú no me encontrabas.
Pasó la primavera,
se esfumaron los largos días de verano
y vino el otoño con su crujir de madera seca
y vino el invierno con su dolor de corazón sepultado en la nieve.
Te espero en mi rincón
y tengo miedo.



Irene Sánchez Carrón





Tenho medo.

Brincávamos às escondidas.
Eu escondia-me
e tu perseguias-me.
Longas horas passaram
e tu não me achavas.
A Primavera passou,
esfumaram-se os longos dias do Verão
e chegou o Outono com seu estalar de madeira seca
e depois o Inverno com sua dor de coração
sepultado na neve.
Espero-te no meu canto
e tenho medo.


(Trad. A.M.)

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8.6.12

Manuel de Freitas (Inventário plebeu)






INVENTÁRIO PLEBEU




A verdade, digam lá o que disserem,
é que tivemos muito pouca sorte
com os poetas (?) nossos contemporâneos.


Um nasceu em Galveias e tatua-se
ou alfineta-se para disfarçar um vazio evidente;
outro gosta de andar nu em Braga,
muito depois – e aquém – de qualquer Pacheco.
(Ignoram, ambos, que a única pila maior
do que o mundo era a do João César Monteiro.)


Um terceiro, cujo nome nunca escreverei,
é a mulher moderna da edição
às cegas e da sacanice quotidiana. O quarto
ou o quinto (gabo quem os logra distinguir)
arrotam melancolia e não admitem
o mínimo desvio à sacrossanta transfiguração da lírica.


O sexto – não, não me apetece falar aqui do sexto.


Consola-nos, isso sim, saber que uns se tornaram
entretanto romancistas (pilim, pilim), e que os restantes
hão-de ser, muito em breve, ministros
ou apenas pulhas (é, no fundo, a mesma coisa).


Enquanto, de esgoto em esgoto,
Portugal progride a olhos vistos
e é bem capaz de levar, um dia destes,
com outro Nobel nas trombas.



Manuel de Freitas



[As folhas ardem]


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7.6.12

Idea Vilariño (Playa Girón)






PLAYA GIRÓN




Siempre habrá alguna bota sobre el sueño
efímero del hombre
una bota de fuerza y sin razón
pronta a golpear
dispuesta a ensangrentarse.
Cada vez que los hombres se incorporan
cada vez que reclaman lo que es suyo
o que buscan ser hombres solamente
cada vez que la hora de la verdad la hora
de la justicia suenan
la bota rompe ensucia aplasta
deshace la esperanza la ilusión
de simple dicha humana para todos
porque tiene otros fines como Dios
como dicen los curas que su dios
tiene otros altos fines misteriosos
otros planes en que entran Hiroshima
España Argelia Hungría y todo el resto
en que entran la injusticia la opresión
el abandono el hambre el frío el miedo
la explotación la muerte
todo el horror todo el dolor del hombre.
Va cambiando de pies según el oro
según la fuerza y el poder se mudan
pero siempre habrá alguna
a veces más de una
pisoteando los sueños de los hombres.


Idea Vilariño



[Escomberoides]





Há-de haver sempre uma bota em cima do sonho
efémero do homem
uma bota de força e sem razão
pronta a bater
disposta a sujar-se com sangue.
Cada vez que os homens se levantam
cada vez que reclamam aquilo que é seu
ou procuram ser homens simplesmente
cada vez que soa a hora da verdade
a hora da justiça
a bota rasga suja esmaga
destrói a esperança a ilusão
da simples ventura para todos
porque tem outros fins como Deus
como dizem os padres que o seu deus
tem outros altos fins insondáveis
outros planos em que entram Hiroshima
Espanha Argélia Hungria e tudo o resto
em que entram a injustiça a opressão
o abandono a fome o frio o medo
a exploração a morte
todo o horror toda a dor do homem.
Vai trocando de pés conforme o oiro
conforme o poder e a força se mudam
mas há-de haver sempre uma bota
e às vezes mais que uma
a pisar os sonhos dos homens.


(Trad. A.M.)

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6.6.12

António de Almeida Mattos (Só à beira do abismo)





Só à beira do abismo a vida se faz
instante. O tempo corre muito lento.
Na memória do momento o sol promete
um brilho que se teme que arrefeça.
É um aturdimento, quase névoa
por tudo que em esperança se contava.
E depois vem a mão que nos segura.
Pouco a pouco tornamos a correr
à beira-mar e temos horizontes.
Voltamos a sorrir de ser contentes,
acabamos a chorar de gratidão.


António de Almeida Mattos



[Arpose]

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José María Parreño (Este não é um poema)






Este no es un poema
para conquistarte
bailarina
sobre el difícil fiel
de la balanza
que pesa amor y no


éste es un poema
para sostenerte
equilibrista
sobre el único hilo
que queda
de aquella red
que nos unió


esto es sólo asombrarme
por lo frágil que es el amor
por lo que dura



José María Parreño





Este não é um poema
para conquistar-te
bailarina
sobre o difícil fiel
da balança
que pesa amor e não



este é um poema
para manter-te
equilibrista
sobre o único fio
que resta
daquela rede
que nos uniu



isto é só assombrar-me
pelo frágil que é o amor
pelo que dura



(Trad. A.M.)

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5.6.12

Valter Hugo Mãe (Gordo e careca)






GORDO E CARECA




onde vais, valter hugo mãe, tão sem ter
com quem, tão precipitado no vazio do
caminho à procura de quê

porque não ficas em casa, resignadamente só, a
ver como a vida se gasta sem culpa nem glória

és um rapaz estranho, valter hugo mãe, aí metido
num amor nenhum que te magoa, e esperas ter
lugar no mundo, com tanto que o mundo tem de distraído

devias morrer no dia dezoito de março de
mil novecentos e noventa e seis, como dizes
que vai acontecer, para que se acabe essa
imprecisa sentença que é a vida

volta a fechar a porta, não há nada para ti lá fora
e está frio, tens reumatismo, dói-te a cabeça, estás
gordo e careca, não faz sentido sequer que
tentes chegar às luzes esbatidas da marginal, ainda
que seja só ao lado manos percorrido pelos banhistas

volta a fechar a porta e talvez durmas, está um
agradável silêncio no prédio, tenho a certeza de que
reparaste nisso




VALTER HUGO MÃE
Contabilidade
Poesia 1996-2010
Alfaguara (2010)



>>  Valter Hugo Mãe (sítio oficial) / Casa de osso (blogue) / Wikipedia

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4.6.12

Pedro Sevilla (Dia de chuva)






DÍA DE LLUVIA




Dejar aquí acordado, en unos versos,
sonando para siempre,
el murmullo apacible de esta lluvia
que transcurre en el tiempo,
que trae, como la luz, el tiempo dentro.


Pedro Sevilla





Deixar aqui acordado, nalguns versos,
soando para sempre,
o murmúrio sereno desta chuva
escorrendo do tempo,
trazendo, como a luz, o tempo dentro.


(Trad. A.M.)

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3.6.12

Olhar (114)









(Peña de Francia)



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Ida Vitale (Outono)






OTOÑO



Otoño, perro
de cariñosa pata impertinente,
mueve las hojas de los libros.
Reclama que se atienda
las fascinantes suyas,
que en vano pasan del verde
al oro al rojo al púrpura.

Como en la distracción,
la palabra precisa
que pierdes para siempre.


Ida Vitale





Outono, cachorro
de pata carinhosa impertinente,
virando as folhas dos livros.
Reclama atenção
para as suas próprias,
em vão passando do verde
ao oiro ao vermelho ao roxo.

Como na distracção,
a palavra exacta
que perdes para sempre.


(Trad. A.M.)

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