31.1.12

Camilo Castelo Branco (Quase todas)






Não sabemos se o espírito romântico, se as promessas clássicas se infiltraram no prosaísmo da rapariga; o certo é que o conde, poucos segundos depois, entrava no quarto de D. Inês.

Frio, gelado e hirto como entrou, é crível que, cinco minutos depois, marcasse o termómetro oitenta graus acima de zero!

Há certas mulheres que influem sobre certos homens como o sol da zona ardente.

D. Inês da Veiga era uma dessas poucas do século passado: hoje, graças ao romantismo, são quase todas.



- CAMILO CASTELO BRANCO, Anátema, VIII.

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Aldo Luis Novelli (Genética)






GENÉTICA



en el núcleo de la semilla
ya está diseñado el futuro árbol
con sus frutos y sus leves flores
hasta su más mínima hoja.


en el ADN del hombre
están escondidos sus sueños
sus amores inconclusos
sus mejores derrotas
hasta su más infatigable utopía.


la poesía
es esa bella muchacha
que abre la puerta
un día cualquiera
allí
donde no había puerta.



Aldo Luis Novelli






no coração da semente
está já desenhada a árvore futura
com seus frutos suas leves flores
até sua folha mais mínima.


no ADN do homem
estão escondidos seus sonhos
seus amores inconclusos
suas melhores derrotas
até a utopia mais infatigável.


a poesia
é essa bela rapariga
que abre a porta
um dia qualquer
ali
onde não havia porta.



(Trad. A.M.)

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30.1.12

Al Berto (Quando aqui não estás)






Quando aqui não estás
o que nos rodeou põe-se a morrer


a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos
me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrerem pelos dedos prisioneiros
da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas


um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz


quero morrer
com uma overdose de beleza


e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta esse coração
esse
solitário caçador



Al Berto


[Abro páginas]

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29.1.12

Blanca Varela (Curriculum vitae)






CURRICULUM VITAE




digamos que ganaste la carrera
y que el premio
era otra carrera
que no bebiste el vino de la victoria
sino tu propia sal
que jamás escuchaste vítores
sino ladridos de perros
y que tu sombra
tu propia sombra
fue tu única
y desleal competidora.

Blanca Varela



digamos que ganhaste a corrida
e que o prémio
era outra corrida
que não bebeste o vinho da vitória
mas teu próprio sal
que não ouviste aplausos
mas apenas cães a ladrar
e que tua sombra
tua própria sombra
foi tua única
e desleal adversária.

(Trad. A.M.)




>>  A media voz (45p) / Wikipedia


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28.1.12

Ver (85)






[Robert Doisneau]


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Roque Dalton (Tua companhia)






TU COMPAÑÍA



Cuando anochece y tibia
una forma de paz se me acerca,
es tu recuerdo pan de siembra, hilo místico,
con que mis manos quietas
son previsoras para mi corazón.
Diríase: para el ciego lejano
¿qué más dará la espuma, el polvo?


Pero es tu soledad la que puebla mis noches,
quien no me deja solo, a punto de morir.


Somos de tal manera multitud silenciosa...


Roque Dalton



[Desde el alcantilado]





Quando anoitece e morna
me chega uma espécie de paz,
tua lembrança é pão de semente, fio místico,
com que minhas mãos quietas
me resguardam o coração.


Podia dizer-se, para o cego distante
que mais faz a espuma, a poeira?


Mas é a saudade que me povoa as noites,
não me deixa só, quase a morrer.


Somos assim multidão silente...


(Trad. A.M.)

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27.1.12

Eduardo Pitta (Agora que as palavras secaram)






Agora que as palavras secaram
e se fez noite
entre nós dois,
agora que ambos sabemos
da irreversibilidade
do tempo perdido,
resta-nos este poema de amor e solidão.


No mais é o recalcitrar dos dias,
perseguindo-nos, impiedosos,
com relógios,
pessoas,
paredes demasiado cinzentas,
todas as coisas inevitavelmente
lógicas.


Que a nossa nem sequer foi uma história
diferente.
A originalidade estava toda na pólvora
dos obuses, no circunstanciado
afivelar
dos sorrisos à nossa volta
e no arcaísmo da viela onde fazíamos amor.




Eduardo Pitta


[Poedia]


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26.1.12

Silvina Ocampo (Envelhecer)







ENVEJECER





Envejecer también es cruzar un mar de humillaciones cada día;
es mirar a la víctima de lejos, con una perspectiva
que en lugar de disminuir los detalles los agranda.
Envejecer es no poder olvidar lo que se olvida.
Envejecer transforma a una víctima en victimario.


Siempre pensé que las edades son todas crueles,
y que se compensan o tendrían que compensarse
las unas con las otras. ¿De qué me sirvió pensar de este modo?
Espero una revelación. ¿Por qué será que un árbol
embellece envejeciendo? Y un hombre espera redimirse
sólo con los despojos de la juventud.


Nunca pensé que envejecer fuera el más arduo de los ejercicios,
una suerte de acrobacia que es un peligro para el corazón.
Todo disfraz repugna al que lo lleva. La vejez
es un disfraz con aditamentos inútiles.
Si los viejos parecen disfrazados, los niños también.
Esas edades carecen de naturalidad. Nadie acepta
ser viejo porque nadie sabe serlo,
como un árbol o como una piedra preciosa.


Soñaba con ser vieja para tener tiempo para muchas cosas.
No quería ser joven, porque perdía el tiempo en amar solamente.
Ahora pierdo más tiempo que nunca en amar,
porque todo lo que hago lo hago doblemente.
El tiempo transcurrido nos arrincona; nos parece
que lo que quedó atrás tiene más realidad
para reducir el presente a un interesante precipicio.


Silvina Ocampo





Envelhecer é também atravessar em cada dia um mar de humilhações;
é olhar de longe a vítima, com uma perspectiva
que em vez de diminuir os detalhes aumenta-os.
Envelhecer é não poder olvidar aquilo que se olvida.
Envelhecer transforma a vítima em vitimário.


Sempre pensei que as idades são todas cruéis,
e que se compensam ou deviam compensar
umas com outras. De que me serviu pensar assim?
Espero uma revelação. Porque será que a árvore
ganha beleza envelhecendo? E o homem espera redimir-se
só com os despojos da juventude.


Nunca julguei que envelhecer fosse o mais árduo exercício,
uma espécie de acrobacia que é um perigo para o coração.
Toda a máscara repugna a quem a usa. A velhice
é uma máscara com acessórios inúteis.
Se os velhos parecem mascarados, as crianças também.
Tais idades falta-lhes naturalidade. Ninguém aceita
ser velho porque não sabe sê-lo,
como o sabe uma árvore ou uma pedra preciosa.


Eu sonhava ser velha para ter tempo para muita coisa.
Ser jovem não queria, porque perdia o tempo a amar apenas.
Agora perco a amar mais tempo que nunca,
porque tudo o que faço faço em dobro.
O tempo volvido põe-nos de lado; parece-nos
que o que ficou para trás tem mais realidade
para reduzir o presente a um precipício interessante.



(Trad. A.M.)

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25.1.12

Aquilino Ribeiro (Senhora da Lapa-2)






Meteram para a Casa dos Jesuítas, pelo negro umbral da lágea e abóbada, onde a soldadesca soltava grande azoada, chufas e rabo-levas a quem ia seu caminho.

Nos corredores, em que podiam girar duas berlindas par a par, um arraial, menos ralé, esparralhava-se.

À luz do carbureto, ou fumacenta duma lanterna de tipóia, içada ao alto, os ranchos batiam a ribaldeira.

Em roda, as sombras atropelavam-se, investiam, enrodilhavam-se como catervas de macavencos escondidos em capas pretas.

Ia de feição, na meia penumbra, para bargantes e polhas esbagacharem a cachondice.


- AQUILINO RIBEIRO, Terras do Demo, 2.ª parte, V.

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Manuel Moya / Violeta (Poética-2)






POÉTICA (2)





Cielo mío,
un poema no es más que una sepultura,
y tú debes caber dentro.



Violeta C. Rangel


[Pepe Varos]

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24.1.12

Fernando Assis Pacheco (Um tal F. A. P.)






UM TAL FERNANDO ASSIS PACHECO




Vivo com ele há anos suficientes
para poder dizer que o reconheceria
num dia de Novembro no meio da bruma
é como uma pessoa de família


adorava os pais mas tinha medo
quando zangados se punham aos gritos
e se chamavam nomes odiosos
não invento nada vi-o crescer comigo


chorava então desabaladamente
e eu com ele sentindo-nos perdidos
o cobertor puxado sobre a cabeça
seria trágico se não fosse ridículo


mesmo depois a noite que urinasse
no pijama era um protesto civil
encharcou assim grande parte das Beiras
não lhe perguntem se foi feliz


Fernando Assis Pacheco



[Sons da Escrita]


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23.1.12

Vicente Gallego (O apelo da selva)





LA LLAMADA DE LA SELVA




Siempre fue la tristeza
un dócil animal de compañía
con el que yo he jugado algunas tardes.
Sin apretar los dientes me estiraba del brazo,
paseaba conmigo, se sentaba a mis pies
en los fríos inviernos.
En los días aciagos, por probar su obediencia,
le lanzaba mi alma, y ella me la traía
dulcemente empapada en su aliento doméstico.
Siempre fue la tristeza
un dócil animal de compañía,
que hace tiempo ha adoptado
esta fea costumbre de morder a su amo.


Vicente Gallego







Sempre foi a tristeza
um dócil animal de companhia
com quem brinquei algumas tardes.
Esticava-me o braço sem apertar os dentes,
passeava comigo, sentava-se a meus pés
nos frios invernos.
Nos dias aziagos, a experimentar-lhe a obediência,
atirava-lhe a alma e ela trazia-ma
docemente empapada em seu bafo doméstico.
Sempre foi a tristeza
um dócil animal de companhia
que apanhou há algum tempo
este feio costume de morder o dono.


(Trad. A.M.)

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22.1.12

Olhar (108)








(Rio Paiva)


Alhais > V.N.Paiva

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Vicente Aleixandre (Como o mar, os beijos)






COMO LA MAR, LOS BESOS





No importan los emblemas
ni las vanas palabras que son un soplo sólo.
Importa el eco de lo que oí y escucho.
Tu voz, que muerta vive, como yo que al pasar
aquí aún te hablo.


Eras más consistente,
más duradera, no porque te besase,
ni porque en ti asiera firme a la existencia.
Sino porque como la mar
después que arena invade temerosa se ahonda.
En verdes o en espumas la mar, se aleja.
Como ella fue y volvió tú nunca vuelves.


Quizá porque, rodada
sobre playa sin fin, no pude hallarte.
La huella de tu espuma,
cuando el agua se va, queda en los bordes.


Sólo bordes encuentro. Sólo el filo de voz que
en mí quedara.
Como un alga tus besos.
Mágicos en la luz, pues muertos tornan.



Vicente Aleixandre







Não interessam os símbolos
nem as vãs palavras que são um simples sopro.
Importa o eco do que ouvi e escuto.
Tua voz, que morta vive, como eu que ao passar
ainda aqui te falo.


Eras mais consistente,
mais sólida, não porque te beijasse
nem porque em ti apreendesse firme a existência.
Antes porque como o mar
quando invade a areia temeroso reflui.
Em verdes ou em espumas o mar se aparta.
Assim como ele se foi e voltou tu nunca voltas.


Talvez porque, percorrida
a praia sem fim, não pude achar-te.
O traço de tua espuma,
quando a água se vai, fica na orla.


Só a orla encontro. Só o fio de voz que
em mim ficara.
Como uma alga teus beijos.
Mágicos na luz, mortos regressam.



(Trad. J.E.Simões)



[Luz & sombra]


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20.1.12

Ulalume González (Problema)






PROBLEMA





Calcular
(dado el producto de la multiplicación de las caricias
el número de golpes de ala por segundo con que la pasión
compensa el peso de los cuerpos
la velocidad adquirida al pensarnos
la resistencia del aire a todas nuestras iniciativas voladoras
el intervalo admisible entre la temperatura máxima y la
temperatura mínima del deseo
las intermitencias con que fabricamos nuestra continuidad
el margen de error tolerable para un ingreso simultáneo
en el olvido que sabes
las probabilidades de reincidir por falta de recuerdo
la mayor o menor necesidad de un postre metafísico al
banquete carnívoro
el porcentaje de limaduras virutas rebabas que pueden ser
recicladas in situ
y la fuerza de gravedad de toda alegría
y la trayectoria asíntota al más estrellado techo)
la condición necesaria y suficiente de este amor.



Ulalume González de León



[Noctambulario]





Calcular
(dado o produto da multiplicação das carícias
o número de golpes de asa por segundo com que a paixão
compensa o peso dos corpos
a velocidade adquirida ao pensar-nos
a resistência do ar às nossas iniciativas voadoras
o intervalo admissível entre a temperatura máxima e a
temperatura mínima do desejo
as intermitências com que fabricamos a nossa continuidade
a margem de erro tolerável para um ingresso simultâneo
no olvido que sabes
as probabilidades de reincidir por falta de lembrança
a maior ou menor necessidade de uma sobremesa metafísica no
banquete da carne
a percentagem de limalhas aparas rebarbas que podem ser
recicladas in situ
e a força de gravidade de toda a alegria
e a trajectória assíntota ao tecto mais estrelado)
a condição necessária e suficiente deste amor.



(Trad. A.M.)

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19.1.12

Aquilino Ribeiro (Senhora da Lapa-1)






Pelo braço de estrada fora rompiam ranchos em algazarra, bestas rinchonas caracolando e maltas de varapaus leva que leva.

Lá adiante, no morrer da baixa, o melhor duma aldeia, harmónio fungando, cores a berrar, avançava em animado passo de dança.

Sozinhos, chegados um ao outro, lá passavam dois casadinhos de fresco; bem se lhes via nos olhos muito mexidos o regalo de se mostrar.

Tropicavam azeméis com velhos de capote e chapéu braguês para a nuca, e éguas de albarda com matronas de lenço de seda, peito coberto de oiro e tamanquinha de Viseu no bico do pé.

Para aguentar o passo, outras mulheres tinham tirado as chinelas e com elas na mão, a par do sombreiro, ou à cabeça sobre o xaile, desunhavam-se todas tep, tep.

E lá seguia tudo a catrapós, no frenesi de meter com sol à festa que o mês de Agosto c’os seus santos ao pescoço não tinha melhor que a Senhora da Lapa, a rica Senhora da Lapinha.



- AQUILINO RIBEIRO, Terras do Demo, 2.ª parte, V.


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Rosario Castellanos (Passaporte)






PASAPORTE



¿Mujer de ideas? No, nunca he tenido una.
Jamás repetí otras (por pudor o por fallas nemotécnicas).
¿Mujer de acción? Tampoco.
Basta mirar la talla de mis pies y mis manos.

Mujer, pues, de palabra. No, de palabra no.
Pero sí de palabras,
muchas, contradictorias, ay, insignificantes,
sonido puro, vacuo cernido de arabescos,
jugo de salón, chisme, espuma, olvido.

Pero si es necesaria una definición
para el papel de identidad, apunte
que soy mujer de buenas intenciones
y que he pavimentado
un camino directo y fácil al infierno.


Rosario Castellanos


[Noctambulario]





Mulher de ideias? Não, nunca tive nenhuma.
Nem jamais repeti outras (por pudor ou falhas mnemotécnicas).
Mulher de acção? Tão pouco.

Mulher, pois, de palavra. Não, de palavra não.
Mas antes de palavras,
muitas, contraditórias, ai, insignificantes,
puro som, vácuo limpo de arabescos,
brincadeira de salão, intriga, espuma, olvido.

Mas se for necessária uma definição
para o documento de identificação, conste
que sou mulher de boas intenções
e tenho calcetado
um caminho direito e fácil para o Inferno.


(Trad. A.M.)

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18.1.12

Bertolt Brecht (A emigração dos poetas)






A EMIGRAÇÃO DOS POETAS




Homero não tinha morada
E Dante teve que deixar a sua.
Li-Po e Lu-Tu andaram por guerras civis
Que tragaram 30 milhões de pessoas
Eurípides foi ameaçado com processos
E Shakespeare, moribundo, foi impedido de falar.
Não apenas a Musa, também a polícia
Visitou François Villon.
Conhecido como “o Amado”
Lucrécio foi para o exílio.
Também Heine, e assim também
Brecht, que buscou refúgio
Sob o tecto de palha dinamarquês.


Bertolt Brecht


(Trad. P.C.Souza)



[Antonio Cicero]

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17.1.12

Roger Wolfe (Inventário)






INVENTARIO



Un cuerpo amado que se pierde
antes siquiera de haberlo hallado,
es un adiós pequeño, un incesante
adiós que cuelga hacia el vacío.


¡Y qué vacío entonces
te va surcando el alma, impune!
Esa tristeza aboca en otros cuerpos
que se rozan contigo entre los días.


Los cuerpos no saben, no saben nunca
del dolor que siembran a su paso.



Roger Wolfe





Um corpo amado que se perde
antes mesmo de achado
é um adeus mínimo, incessante
adeus suspenso no vazio.


E que vazio então
te vai sulcando a alma, impune!
Essa tristeza desemboca noutros
corpos que te roçam entre os dias.


Os corpos não sabem, não sabem nunca
da dor que semeiam à passagem.



(Trad. A.M.)

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16.1.12

Olhar (107)








Doiro (Pinhão)



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Silvina Ocampo (Os golfinhos)






LOS DELFINES



Los delfines no juegan en las olas
como la gente cree.
Los delfines se duermen bajando hasta el fondo del mar.
¿Qué buscan? No sé.
Cuando tocan el fin del agua
despiertan bruscamente
y vuelen a subir porque el mar es muy profundo
y cuando suben ¿qué buscan? No sé.
Y ven el cielo y les vuelve a dar sueño
y vuelven a bajar dormidos,
y vuelven a tocar el fondo del mar
y se despiertan y vuelen a subir.
Así son nuestros sueños.



Silvina Ocampo






Os golfinhos não brincam nas ondas
como se pensa.
Eles dormem a descer até ao fundo do mar.
O que buscam? Não sei.
Quando tocam no fundo
acordam bruscamente
e voltam a subir pois o mar é muito profundo
e quando sobem, o que buscam? Não sei.
E vem o céu, volta a dar-lhes sono,
e voltam a descer dormindo,
voltam a tocar no fundo do mar
e acordam e voltam a subir.
Como os nossos sonhos.


(Trad. A.M.)




>>  A media voz (28p) / Wikipedia


.

15.1.12

José Alberto Oliveira (Política)






POLÍTICA




É um poeta sério,
que escreve versos sérios,
foi o que me disseram,

árduos, saudáveis,
que se podem repetir
antes de almoço

e depois da eucaristia,
em que a realidade,
essa puta velha,

não é menos resistente
que ele e outros,
que dão o corpo ao manifesto
e confirmam, sem caução,

que a solidão é paciente
e o desejo anónimo
– as manhas do canastro

cabem todas em qualquer
cama ou no verso
e meio que ainda falta.


JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA
Mais Tarde
(2003)



[Cá te espero]

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14.1.12

Roberto Juarroz (O outro que usa meu nome)






El otro que lleva mi nombre
ha comenzado a desconocerme.
Se despierta donde yo me duermo,
me duplica la persuasión de estar ausente,
ocupa mi lugar como si el otro fuera yo,
me copia en las vidrieras que no amo,
me agudiza las cuencas desistidas,
descoloca los signos que nos unen
y visita sin mi las otras versiones de la noche.


Imitando su ejemplo,
ahora empiezo yo a desconocerme.
Tal vez no exista otra manera
de comenzar a conocernos.



Roberto Juarroz






O outro que usa meu nome
começou a desconhecer-me.
Desperta onde eu me durmo,
duplica-me a persuasão de estar ausente,
ocupa meu lugar como se ele outro fosse eu,
copia-me nas vidraças que não amo,
agrava-me as órbitas desistidas,
descoloca os signos que nos unem
e visita sem mim as outras versões da noite.


Imitando seu exemplo,
começo eu agora a desconhecer-me.
Talvez não haja outro modo
de começar a conhecer-nos.


(Trad. A.M.)

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13.1.12

Um verso (103)






Um verso de José António Almeida:





Quando a amizade é o funeral do amor




José António Almeida

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Roberto Bolaño (Hei-de oferecer-te um abismo)






Te regalaré un abismo, dijo ella,
pero de tan sutil manera que sólo lo percibirás
cuando hayan pasado muchos años
y estés lejos de México y de mí.
Cuando más lo necesites lo descubrirás,
y ése no será
el final feliz,
pero sí un instante de vacío y de felicidad.
Y tal vez entonces te acuerdes de mí,
aunque no mucho.


Roberto Bolaño



[Once upon a midnight dreary]







Hei-de oferecer-te um abismo, disse ela,
mas de tão subtil maneira que
só hás-de percebê-lo
quando passarem muitos anos
e estiveres longe do México e de mim.
Quando mais o precisares vais descobri-lo,
e não será esse
o final feliz,
antes um instante de vazio e felicidade.
E talvez então te lembres de mim,
embora não muito.


(Trad. A.M.)

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12.1.12

João de Deus (A vida)






A VIDA




A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;


A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!


A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave:


Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou,
A vida - pena caída
Da asa da ave ferida
De vale em vale impelida -
A vida o vento levou!


João de Deus



>>  Rua da Poesia (17p) / Wikipedia

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11.1.12

Piedad Bonnett (Canção)






CANCIÓN




Nunca fue tan hermosa la mentira
como en tu boca, en medio
de pequeñas verdades banales
que eran todo
tu mundo que yo amaba,
mentira desprendida
sin afanes, cayendo
como lluvia
sobre la oscura tierra desolada.
Nunca tan dulce fue la mentirosa
palabra enamorada apenas dicha,
ni tan altos los sueños
ni tan fiero
el fuego esplendoroso que sembrara.
Nunca, tampoco,
tanto dolor se amotinó de golpe,
ni tan herida estuvo la esperanza.


Piedad Bonnett






Nunca foi tão bela a mentira
como em tua boca, entre
pequenas verdades banais,
todo teu mundo que eu amava,
mentira desprendida
sem cuidados, a cair
como chuva
sobre a terra escura desolada.
Nunca tão doce foi a mentirosa
palavra enamorada,
nem tão altos os sonhos
nem tão fero
o fogo esplendoroso que ateara.
Nunca, tão pouco,
se amotinou de repente tanta dor,
nem tão ferida foi a esperança.


(Trad. A.M.)

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10.1.12

Camilo Castelo Branco (Caminhos de cabras)






Na subida do Marão, Cristóvão da Veiga despediu-se, visto que os ares da serra lhe irritavam o reumático.

Os demais fidalgos da comitiva despediram-se também, e não consta do manuscrito que o conde nas estalagens, onde pernoitou até ao Porto, tivesse coisa que o afligisse, a não falarmos das corpulentas galinhas cozidas em água e arroz, coisa detestável, imemorial, e única, que o homem depara por esses caminhos de cabras, a que as câmaras municipais chamam estradas, pela mesma razão que elas se chamam câmaras municipais.


- CAMILO CASTELO BRANCO, Anátema, VII.

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Pedro Salinas (Para viver não quero)






Para vivir no quiero
islas, palacios, torres.
¡Qué alegría más alta:
vivir en los pronombres!

Quítate ya los trajes,
las señas, los retratos;
yo no te quiero así,
disfrazada de otra,
hija siempre de algo.
Te quiero pura, libre,
irreductible: tú.
Sé que cuando te llame
entre todas las gentes
del mundo,
sólo tú serás tú.
Y cuando me preguntes
quién es el que te llama,
el que te quiere suya,
enterraré los nombres,
los rótulos, la historia.
Iré rompiendo todo
lo que encima me echaron
desde antes de nacer.
Y vuelto ya al anónimo
eterno del desnudo,
de la piedra, del mundo,
te diré:
«Yo te quiero, soy yo».



Pedro Salinas






Para viver não quero
ilhas, palácios ou torres.
Que mais alta alegria,
viver nos pronomes!

Tira-me já esses vestidos,
os sinais e os retratos;
eu não te quero assim,
de outra disfarçada,
filha sempre de algo.
Quero-te livre, pura,
irredutível: tu.
Sei, quando te chamar
entre todas as pessoas
no mundo, que
só tu serás tu.
E quando me perguntares
quem é este que te chama,
este que te quer para si,
os nomes enterrarei,
e os rótulos e a história.
Hei-de rasgar tudo
quanto me deitaram em cima
desde antes do nascimento.
E uma vez regressado ao eterno
anónimo do nu,
da pedra e do mundo,
hei-de dizer-te:
“Eu é que te quero, sou eu.”


(Trad. A.M.)

.

9.1.12

Jean l'Anselme (Discurso sobre a poesia)






DISCURSO SOBRE A POESIA




Se me perguntam o que é a poesia, eu respondo que ninguém sabe bem o que é, porque cada poeta a define a seu modo, mas que a reconhecemos quando a encontramos.


Digo mais:
- Que a poesia é um pouco como a Blédine, gostamos dela muito antes de aprender a falar;
- Que a poesia é com certeza o Aniceto, meu primo, já que a mãe dele está sempre a dizer:
“É um poema!” tomando o céu por testemunha e pegando-lhe a cabeça entre as mãos.


Se me perguntam o que é um poeta, eu respondo:
- Que o poeta é alguém que nunca aparece na tv por não ser conhecido, e não é conhecido porque nunca aparece na tv;
- Que é outrossim alguém que se levanta de noite por uma necessidade urgente, em que também é preciso papel, para contar os pés pelos dedos e nos dedos aqueles que os lêem.




Jean l’Anselme



[Mais...]


(Trad. A.M.)

.

8.1.12

Pablo Neruda (O tigre)






O TIGRE




Sou o tigre.
Espio-te entre as folhas
largas como lingotes
de mineral molhado.


O rio branco cresce
sob a névoa. Chegas.


Nua, mergulhas.
Espero.


Então, num salto
de fogo, sangue, dentes,
com uma pancada derrubo
teu peito, tuas ancas.


Bebo teu sangue, despedaço-te
os membros um a um.


E fico a velar
durante anos, na selva,
teus ossos, tua cinza,
imóvel, longe
do ódio e da cólera,
desarmado em tua morte,
enredado nos cipós,
imóvel à chuva,
sentinela implacável
do meu amor assassino.



Pablo Neruda


(Trad. Albano Martins)

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7.1.12

Ver (84)







[Robert Doisneau]


.

Octavio Paz (Dois corpos)








DOS CUERPOS




Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos olas
y la noche es océano.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos piedras
y la noche desierto.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces raíces
en la noche enlazadas.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces navajas
y la noche relámpago.



Octavio Paz






Dois corpos frente a frente
são às vezes duas ondas
e a noite oceano.

Dois corpos frente a frente
são às vezes duas pedras
e a noite deserto.

Dois corpos frente a frente
são às vezes raízes
à noite enlaçadas.

Dois corpos frente a frente
são às vezes navalhas
e a noite relâmpago.


(Trad. A.M.)

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6.1.12

Inês Dias (Os poetas)






OS POETAS



À mesa os poetas
trocam imagens e calibram versos
como se procurassem a letra
certa para o seu mapa.
Guardam silêncios sobre folha de ouro
ou constroem pontes súbitas
entre o Amor – assim mesmo, maiúsculo –
e a infância. Salvam raparigas em flor
mas sacrificam a Primavera só
para depois poderem recolher
a beleza, ainda viva,
ainda trémula, do chão.

Ouço-os e espero o regresso a casa
para enterrar finalmente o pássaro morto
e o gato que agonizava no dia do meu aniversário.
Escolho uma música que me devolva
repetidamente todos os amigos
e torne, por isso, menos desolado este final.

E passo as mãos devagar,
com a curiosidade e avidez
que reservava antes para os tesouros
– ou os primeiros beijos – no final de cada livro,
pelas memórias que os poetas abandonaram sobre a mesa
e eu levei ciosamente nos bolsos.


Inês Dias



[Hospedaria Camões]




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5.1.12

Nicanor Parra (A montanha russa)






LA MONTAÑA RUSA




Durante medio siglo
la poesía fue
el paraíso del tonto solemne.
Hasta que vine yo
y me instalé con mi montaña rusa.

Suban, si les parece.
Claro que yo no respondo si bajan
echando sangre por boca y narices.


Nicanor Parra


[Balconcillos]




Durante meio século
a poesia foi
o paraíso do tonto solene.
Até que cheguei eu
e me instalei com a minha montanha russa.

Subam, se vos parecer.
Não me responsabilizo, é claro, se descerem
a deitar sangue pela boca e nariz.


(Trad. A.M.)

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4.1.12

Aquilino Ribeiro (A procela)






Ateava-se pela aldeia fora um clamor de ladário.

Durava meia hora, uma hora se tanto, a procela.

Corriam levadas de água pelos caminhos.

Em seguida, num rufo, enxugava a terra.

As rolas volviam a arrulhar na coruta dos pinheiros.

Ao largo passava um corvo a levar por lá boa nova.

Branqueavam os horizontes, e das hortas e quintais a brisa trazia aromas de alfazema e de alecrim que inebriavam a gente.


- AQUILINO RIBEIRO, Terras do Demo, 1.ª parte, II.

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Miguel d'Ors (Por favor)






POR FAVOR




Se van muriendo uno tras otro
como en las películas de náufragos
o de aviones estrellados en neveros incógnitos.

Sucumbió el portero de fútbol catequístico
y el bailarín de valses bajo la luz periódica de un faro

y el estudiante que sueña
un verano arqueológico en Egipto

y el insensato que sufre por unos ojos
que eran una sucursal del Cantábrico

y el posible profesor de español en Colorado.

Ahora está agonizando - es evidente - el aspirante a gran poeta
y no vivirá mucho el montañero que conoce por sus nombres
todas las aguas de Belagua y Zuriza.

No sé cuáles serán los supervivientes definitivos,
los miguel d'ors que lleguen a la última secuencia
- que según los antiguos es el paso de un río -
pero le pido al Cielo que en aquel grupo esté, por favor,
el muchacho que una tarde,
mirándote mirar el escaparate de la librería Quera
en la calle Petritxol de Barcelona,
empieza a enamorarse de ti como un idiota.



Miguel d’Ors





Vão morrendo um após outro
como nos filmes de náufragos
ou de aviões despenhados em neves incógnitas.

Sucumbiu o guarda-redes da bola da catequese
e o dançarino da valsa à luz do farol

e o estudante que sonha
um verão arqueológico no Egipto

e o insensato que sofre por uns olhos
que eram uma sucursal do Cantábrico

e o possível professor de espanhol no Colorado.

Agora agoniza – é evidente – o aspirante a grande poeta
e pouco viverá o montanhista que conhece pelo nome
todas as águas de Belagua e Zuriza.

Não sei quais serão os sobreviventes definitivos,
os miguel d’ors a chegar à última sequência
- que segundo os antigos é a passagem dum rio –
mas peço ao Céu que nesse grupo esteja, por favor,
o rapaz que uma tarde,
olhando-te a olhar para a montra da livraria Quera
na rua Petritxol em Barcelona
se enamorou de ti como um idiota.


(Trad. A.M.)

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3.1.12

Fernando Pessoa / A. Caeiro (Vive, dizes, no presente)






Vive, dizes, no presente:
Vive só no presente.


Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.


O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.


Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas.
Não quero separá-las de si próprias, tratando-as por presentes.


Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.


Eu devia apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.




Alberto Caeiro



[Poemblog]

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2.1.12

Marcos Tramón (Perfis)






PERFIS




Há um ano era o sol,
a cair sobre ti, como aura
de um ouro cordial que distinguia
com sua luz essa imagem de teu rosto
aceso.


Fecho os olhos
– enquanto sinto nas pálpebras
o sopro da brisa e a manhã –
para poder contemplar esta outra imagem,
agora retida: o mar,
seu movimento rumoroso,
o ar em torno como cálido mar,
o perfil da ilha que se afasta.
Não sabemos que tempo
tardarão estes clarões
a confundir-se no escuro.
Há um ano possuía a aguarela
de teu corpo desenhado contra o céu;
hoje tenho apenas, sob um sol debilitado,
a metade de teu rosto ensombrada.


MARCOS TRAMÓN
Desgana
Gijón (2010)


(Trad. A.M.)

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