31.3.11

Luis Alberto de Cuenca (A tua musa)





TU  MUSA 



Convéncete primero de que le caes simpático,
de que lo pasa bien cuando sale contigo.
Llévala a casa luego, sírvele un par de copas
y, en un momento dado, mordisquéale el cuello.
Unas veces querrá pasar al dormitorio,
otras alegará una indisposición
y otras te contará su vida por entregas.
Muéstrale en cada caso la dosis de cariño
que te pidan sus ojos. Sé generoso siempre.
Trata de conservarla como sea a tu lado.
Sin ella, sin tu musa, no eres nadie, poeta.


Luis Alberto de Cuenca






Primeiro convence-te de que lhe és simpático,
de que ela está bem quando sai contigo.
Depois leva-a a casa, serve-lhe um par de copos
e, a dado momento, morde-lhe no pescoço.
Umas vezes quererá passar ao quarto,
outras alegará indisposição
e outras ainda contará a sua vida por etapas.
Mostra-lhe em cada caso a dose de carinho
requerida por seus olhos. Sê generoso sempre.
Trata de a conservar como quer que seja a teu lado.
Sem ela, poeta, sem tua musa, não és ninguém.


(Trad. A.M.)

.

Ver (69)







(Lagos)



[S. T.]

.

30.3.11

W. C. Williams (Se não nos levar)





Se não nos levar
para além da morte,
para além dos dias de chuva,
para além mesmo de suas remotas
fronteiras,
a poesia
é inútil.



W. C. Williams




.

Juan Luis Panero (Luis Cernuda)







LUIS CERNUDA




En Madrid, donde me dieron la noticia de tu
muerte, Sevilla, años después, en una extraña
primavera, en Londres, repitiendo tantas veces
el sonido de tu voz, el roce de tu
mano. En Nueva York, mirando
caer la nieve -junto aquel cuerpo que
tanto quise-
y en México, bajo la lluvia, frente a la piedra rajada,
que nada guarda sino tu nombre y la ceniza de un
recuerdo, has estado conmigo, fantasma de un fantasma.
Y esta tarde de Roma -en la casa en que muriera Keats-
bajo la luz transparente de principios de otoño,
he vuelto a sentir, casi un temblor, tu presencia,
la terca pasión de tu memoria,
algo remoto y familiar como tu fotografía.
Que esa presencia, esa memoria me acompañen
hasta el día en que sean reflejo fiel,
testimonio inútil de un sueño derrotado
y una mano cierre mis ojos para siempre.



Juan Luis Panero






Em Madrid, onde me deram a notícia da
tua morte, Sevilha, anos depois, numa
estranha primavera, em Londres, repetindo
tanta vez o som da tua voz, o toque da
tua mão. Em Nova Iorque, olhando a neve a
cair – junto àquele corpo que tanto amei –
e no México, sob a chuva, em frente da
pedra rachada, que nada guarda senão o
teu nome e a cinza de uma lembrança,
estiveste comigo, fantasma dum fantasma.
E nesta tarde em Roma – na casa onde
Keats morreu – sob a luz transparente do
princípio de Outono, tornei a sentir, quase
um tremor, a tua presença, a paixão
persistente da tua memória,
algo remoto e familiar como o teu retrato.
Que essa presença, essa memória me
acompanhem até ao dia de serem reflexo
fiel, testemunho inútil dum sonho
derrotado e uma mão cerrar meus olhos
para sempre.


(Trad. A.M.)

.

29.3.11

Um verso (93)






Um verso de Maria do Rosário Pedreira:






O sol adormece nos telhados ao domingo



.

Sophia de Mello Breyner Andresen (Barcos)





BARCOS


 


Dormem na praia os barcos pescadores
Imóveis mas abrindo
Seus olhos de estátua


E a curva do seu bico
Rói a solidão.



Sophia de Mello Breyner Andresen

.

28.3.11

Josefa Parra (Alcova cerrada)






ALCOBA CERRADA




Por detrás de la puerta,
guardado por cerrojos de silencio y de agua,
esperando, desnudo, tu cuerpo. Tibiamente,
mansamente desnudo, hermoso hasta el dolor.

No entraré a descubrirte.

No violaré el santuario de tu carne entreabierta.
Demasiado peligro para sólo una vida,
demasiado pecado para tan sólo un alma.


Josefa Parra Ramos






Para além da porta,
guardado por ferrolhos de silêncio e de água,
esperando, desnudo, teu corpo. Mornamente,
mansamente desnudo, lindo até doer.

Não te vou destapar.

Não violarei o santuário de tua carne entreaberta.
Demasiado perigo para uma só vida,
pecado de mais para uma só alma.


(Trad. A.M.)

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Paulo Leminski (O pauloleminski)






o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique



Paulo Leminski


.

27.3.11

Mario Quintana (Por favor, não me analise)





Por favor, não me analise
Não fique procurando cada ponto fraco meu.
Se ninguém resiste a uma análise profunda,
Quanto mais eu…
Ciumento, exigente, inseguro, carente
Todo cheio de marcas que a vida deixou
Vejo em cada grito de exigência
Um pedido de carência, um pedido de amor.


Amor é síntese
É uma integração de dados
Não há que tirar nem pôr
Não me corte em fatias
Ninguém consegue abraçar um pedaço
Me envolva todo em seus braços
E eu serei o perfeito amor.



Mario Quintana(*)



[Allegro Allegorico]



(*)  Ao que parece, a autoria vem mal atribuída, pertencendo antes a Mirthes Mathias, Bom dia, amor (1990), aliás conforme rectificação entretanto introduzida na fonte indicada.
Aprofundando, parece ainda haver um  alfobre de 'falsos Quintanas' (Emílio Pacheco), estando também
corrompido o último verso (recte: "e eu serei perfeita, amor").
Se assim for, então os masculinos dos versos precedentes deveriam permutar-se pelo feminino...
Enfim, fica o caso anotado por curioso e a documentar igualmente um dos perigos da... internet.

.

José Luis Piquero (Canção)






CANCIÓN




La quise sin querer, sin elegir,
contra mí mismo,
y ahora que se ha ido
saber que está en el mundo no me deja dormir.
Estoy perdido.


Y recorro su calle a ver si hay suerte,
que no me atrevo
a llamarla y me juego
la tarde en encontrarla, qué sé yo, casualmente.
Y no la encuentro.


He de hacer algo, o la pierdo o la amo,
contra mí mismo,
contra cualquier olvido,
que es cobarde el olvido, que me atrevo y la llamo.
Pero se ha ido.



José Luis Piquero






Qui-la sem querer, sem escolher,
contra mim mesmo,
e agora que se foi
não me deixa dormir o saber que está no mundo.
Estou perdido.


Sua rua percorro tentando a sorte,
não me atrevo a chamá-la e a tarde
arrisco para encontrá-la, sei lá, por acaso.
E não encontro.


Tenho de fazer algo, amá-la ou perdê-la,
contra mim mesmo,
contra o esquecimento,
eis que me atrevo e a chamo.
Mas foi embora.



(Trad. A.M.)

.

26.3.11

Luís de Camões (Transforma-se o amador)





Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.


Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sómente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.


Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,


Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.



Luís de Camões

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Manuel de Freitas (Tema sem variações)






TEMA SEM VARIAÇÕES




Sempre soubeste: a morte
Sempre sentiste: a morte.
As tabernas, fechadas, eram
apenas uma espécie de refrão.


Mas isso, terás de convir,
não desculpa o facto
de andares há vinte anos
a escrever o mesmo.


Faz como as tabernas: cala-te.



MANUEL DE FREITAS
A Nova Poesia Portuguesa
(2010)


[A natureza do mal]

.

25.3.11

José Luis García Martín (Despedida)






DESPEDIDA




No me has querido y huyes por tus años
hacia un país en donde yo no existo,
pero cuánto me dejas al dejarme...
Otros verán tu vida deshacerse;
yo conservaré intacta la memoria
de una frágil belleza adolescente.
Pronto no has de ser tú, aunque no mueras;
aunque no vivas, vivirás en mí.
Siempre joven serás en mi recuerdo:
fíjate cuánto gano si te pierdo.


JOSÉ LUÍS GARCIA MARTIN
Treinta monedas
(1989)





Não me quiseste e foges por teus anos
para um país onde eu não existo,
mas quanto me deixas ao deixar-me …
Outros verão a tua vida a desfazer-se,
eu guardarei intacta a memória
de uma frágil beleza adolescente.
Em breve não hás-de ser tu, embora não morras;
e embora não vivas, viverás em mim.
Sempre jovem serás na minha lembrança:
olha só quanto eu ganho em te perder.


(Trad. A.M.)


.

24.3.11

Ver (68)








(Foz do Arelho)

.

José Angel Barrueco (Sono fingido)





FINGIR EL SUEÑO



leía mucho por las noches
como ahora, como siempre


al oír el portazo de mi padre
tras regresar a casa del trabajo,
cerraba el libro, apagaba la luz y fingía el sueño


unos minutos después sentía
el movimiento de la manija de la puerta
una mano giraba el pomo:
despacio
muy despacio
en silencio casi absoluto


abría un ojo y notaba la luz filtrándose
en el cuarto desde el exterior


en la rendija entre la puerta y la jamba
asomaba su cara como una aparición fantasmagórica


¿estás dormido?

pero yo no contestaba
fingía un sueño profundo
aguantaba la respiración


alguna vez respondí,
y eso supuso varias horas
de monólogo o, lo que era peor,
alguna bronca, algún desahogo
sobre su trabajo, su madre o la mía
y los disgustos que le daban


en la distancia,
ahora veo que
no hay nada
tan triste en la noche
como un hijo fingiendo
su sueño para no hablar con su padre.



José Àngel Barrueco








lia muito à noite
como agora, como sempre

ao ouvir meu pai bater a porta
quando voltava a casa do trabalho,
fechava o livro, apagava a luz e fingia que dormia

alguns minutos depois sentia
mexer o manípulo da porta
uma mão rodava a maçaneta,
devagar
muito devagar
em silêncio quase absoluto

abria um olho e atentava na luz a filtrar-se
de fora para o quarto

na fresta da porta
aparecia a sua cara como visão fantasmagórica

estás a dormir?

mas eu não respondia
fingia um sono profundo
sustendo a respiração

às vezes respondia,
o que supunha várias horas
de monólogo, algum desabafo
sobre o seu trabalho, a mãe dele ou a minha
e os desgostos que lhe davam

à distância,
vejo agora que
não há nada
à noite tão triste
como um filho fingindo
que dorme para não falar com o pai.



(Trad. A.M.)


 .


23.3.11

Margaret Atwood (Canção da sereia)






SIREN SONG




This is the one song everyone
would like to learn: the song
that is irresistible:

the song that forces men
to leap overboard in squadrons
even though they see beached skulls

the song nobody knows
because anyone who had heard it
is dead, and the others can’t remember.
Shall I tell you the secret
and if I do, will you get me
out of this bird suit?
I don’t enjoy it here
squatting on this island
looking picturesque and mythical
with these two feathery maniacs,
I don’t enjoy singing
this trio, fatal and valuable.

I will tell the secret to you,
to you, only to you.
Come closer. This song

is a cry for help: Help me!
Only you, only you can,
you are unique

at last. Alas
it is a boring song
but it works every time.


Margaret Atwood





Esta é a canção que toda a gente
gostava de aprender, a canção
irresistível:

a canção que leva os homens
a deitar-se ao mar em magotes
mesmo com a praia cheia de caveiras

a canção que ninguém sabe
porque quem a ouviu está morto
e os outros não se lembram.
Queres que te conte o segredo
e se contar tiras-me este traje de ave?
Não me dá gozo estar para aqui
agachada nesta ilha
passando por mítica e pitoresca
entre estes loucos emplumados.
Nem me apraz cantar
este trio, precioso e fatídico.


Eu digo-te o segredo a ti,
a ti, só a ti.
Chega-te mais. Esta canção


é um grito de socorro: Socorro!
Só tu, só tu podes,
és único


por fim. Ai
é uma canção chata,
mas resulta sempre.



(Trad. A.M.)

.

Manuel Bandeira (Pneumotórax)






PNEUMOTÓRAX




Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.


Mandou chamar o médico:


- Diga trinta e três
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.

 

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
   e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.


Manuel Bandeira

 
.

22.3.11

Jorge Riechmann (O mundo)






EL MUNDO




El mundo
se ha desplazado tanto a la derecha
que el centrismo
de hace treinta años
es hoy extrema izquierda


El ciudadano de la autogestión y la existencia pacificada
fue sustituido
por la sede socio-antropológica
de la empresa unipersonal
en un mundo de globalización darwiniana


No digo nada nuevo
pero como tanta gente piensa
que el mundo fue creado
por un acto de gracia especial
en el segundo anterior a su nacimiento


acaso no haya que dar nada de esto
por sabido



JORGE RIECHMANN
Pablo Neruda y una familia de lobos
Salamanca
(2010)


[Voces del extremo]





O mundo
deslocou-se tanto para a direita
que o centrismo
de há trinta anos
é hoje extrema-esquerda


O cidadão da autogestão e da existência pacificada
foi substituído
pela sede socio-antropológica
da empresa unipessoal
num mundo de globalização darwiniana


Não digo nada de novo
mas como tanta gente pensa
que o mundo foi criado
por um acto de graça especial
no segundo anterior ao seu nascimento


talvez não se possa dar nada disto
por sabido



(Trad. A.M.)


.

Manuel Alegre (Foz do Arelho)






FOZ DO ARELHO OU PRIMEIRO POEMA DO PESCADOR




Este é apenas um pequeno lugar do mundo
um pequeno lugar onde à noite cintilam luzes
são os barcos que deitam redes junto à costa
ou talvez os pescadores de robalos com suas lanternas
suas pontas de cigarro e suas amostras fluorescentes
talvez o Farol de Peniche com seu código de sinais
ou a estrela cadente que deixa um rastro
e nada mais.


Um pequeno lugar onde Camilo Pessanha voltava sempre
talvez pelo sol e as espadas frias
talvez pelas orquestras e os vendavais
ou apenas os restos sobre a praia
«pedrinhas conchas pedacinhos d'osso»
e nada mais.


Um pequeno lugar onde se pode ouvir a música
o vento o mar as conjunções astrais
um pequeno lugar do mundo
onde à noite se sabe
que tudo é como as luzes que cintilam
um breve instante
e nada mais.



Manuel Alegre



[Silva]


.

21.3.11

Olhar (94)











Felgueiras

(Resende)

.

Jorge Espina (Recordações)






RECUERDOS




Recuerdo el comienzo de la adolescencia:
Sacando el cucho del corral,
Haciendo con él una pila al otro lado del camino.
Me sigue gustando el olor de las higueras,
El olor de las bestias,
El olor a establo,
El olor a estiércol.
Hay quien no me comprende,
Inmerso hasta el cuello
En la mierda de una ciudad.


Jorge Espina



[Neorrabioso]






Recordo o início da adolescência,
A tirar o estrume do curral
E a empilhá-lo do outro lado do caminho.
Continuo a gostar do cheiro das figueiras,
O cheiro dos animais,
O cheiro a estábulo,
O cheiro a esterco.
Há quem não me entenda,
Mergulhado até ao pescoço
Na merda da cidade.


(Trad. A.M.)

.

20.3.11

Manuel António Pina (Os livros)





OS LIVROS


É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo “eu” entre nós e nós?


Manuel António Pina

[Poems]


.

Manoel de Barros (O provedor)

 




O PROVEDOR




Andar à toa é coisa de ave.
Meu avô andava à toa.
Não prestava pra quase nunca.
Mas sabia o nome dos ventos
E todos os assobios para chamar passarinhos.
Certas pombas tomavam ele por telhado e passavam
as tardes frequentando seu ombro.
Falava coisas pouco sisudas: que fora escolhido para
ser uma árvore.
Lírios o meditavam.
Meu avô era tomado por leso porque de manhã dava
bom-dia aos sapos, ao sol, às águas.
Só tinha receio de amanhecer normal.
Penso que ele era provedor de poesia como as aves
e os lírios do campo.



MANOEL DE BARROS
Compêndio para uso dos pássaros
(Poesia reunida 1937-2004)
Quasi Edições, 2007

.

19.3.11

Joan Margarit (Canção de embalar)






CANCIÓN DE CUNA



Duerme, Joana.
Y que este Loverman oscuro y trágico
del saxo de tu hermano en Montjuïc
te pueda acompañar
toda la eternidad por los caminos
que son bien conocidos por la música.
Duerme, Joana, duerme.
Y a poder ser no olvides
tus años en el nido
que dentro de nosotros has dejado.
Mientras envejecemos,
conservaremos todos los colores
que han brillado en tus ojos.
Duerme, Joana. Esta es nuestra casa,
y todo lo ilumina tu sonrisa.
Un tranquilo silencio: aquí esperamos
redondear estas piedras del dolor
para que cuanto fuiste sea música,
la música que llene nuestro invierno.



Joan Margarit




Dorme, Joana.
E que este Loverman escuro e trágico
do sax de teu irmão em Montjuïc
te acompanhe
na eternidade pelos caminhos
bem conhecidos da música.
Dorme, Joana, dorme.
E não esqueças, podendo ser,
os teus anos no ninho
que deixaste dentro de nós.
Enquanto envelhecemos,
conservaremos as cores todas
que brilharam nos teus olhos.
Dorme, Joana. Esta é a nossa casa
e o teu sorriso tudo ilumina.
Um tranquilo silêncio: aqui esperamos
arredondar estas pedras da dor
para que seja música tudo quanto foste,
música para encher o nosso Inverno.


(Trad. A.M.)


.

Coitado do Jorge (70)






SORTES -3




Outra que deu raia
(ainda me dói o estaladão):





Ó porteira do céu,
mensageira do perigo,
pedaço de mau caminho...
Tentação dos homens (e das mulheres...).


.

18.3.11

José Tolentino Mendonça (Final)





FINAL





O silêncio é a partilha
do furtivo
lume



José Tolentino Mendonça

.

Jaime Gil de Biedma (De vita beata)

        



DE VITA BEATA




En un viejo país ineficiente,
algo así como España entre dos guerras
civiles, en un pueblo junto al mar,
poseer una casa y poca hacienda
y memoria ninguna. No leer,
no sufrir, no escribir, no pagar cuentas,
y vivir como un noble arruinado
entre las ruinas de mi inteligencia.


Jaime Gil de Biedma




Num velho país ineficiente,
algo assim como Espanha entre duas guerras
civis, numa aldeia à beira-mar,
possuir uma casa, pouca fazenda
e memória nenhuma. Não ler,
não sofrer, não escrever, não pagar dívidas
e viver como um nobre arruinado
entre as ruínas do meu espírito.


(Trad. A.M.)



Outras versões:   Meia noite todo dia  /   O melhor amigo

.

17.3.11

José Miguel Silva (Bayern de Munique)

                                




BAYERN DE MUNIQUE 1 X F.C.PORTO 2 - ARTUR JORGE (1987)
                        (Lines written in dejection)




Aos dezoito anos vive-se já na antecâmara
do pesadelo, mas a vida reserva-nos ainda
o fulgor intempestivo dum embate
donde sairemos homens, estonteados
de suor e lama.


Sabíamos que não iria durar muito
a juventude - noventa e três minutos,
se não erro. Mas o trevo permanece
nas pastagens da memória: um irónico
toque de calcanhar, uma rápida investida
no coração do tempo, as mais loucas
diagonais contra o pior dos fatalismos,
o dos tímidos.


Como esquecer aquelas fintas à tristeza,
a viva fantasia dos relâmpagos abrindo
fundas brechas no espírito simétrico,
pesado, dos teutónicos, a negação
do fado. Que foi isto, perguntámos,
como pôde? Nenhum relógio mede
tamanha velocidade.


E as lágrimas deslizam, como vêem,
pelo poema abaixo, isso é sinal de que o futuro
já passou, já ruiu a balaustrada de onde víamos,
serenos, a corrida dos minutos, coroada
de possível. Que nos resta? Nada. Felizes
os que guardam, pelo menos, a cassete.



JOSÉ MIGUEL SILVA
Movimentos no Escuro
Assírio & Alvim
(2005)




.

José Gomes Ferreira (Finjo que não vejo)

                               




(Finjo que não vejo as mulheres que
passam, mas vejo)



De súbito, o diabinho que me dançava nos olhos,
mal viu a menina atravessar a rua,
saltou num ímpeto de besouro
e despiu-a toda...


E a Que-Sempre-Tanto-Se-Recata
ficou nua,
sonâmbulamente nua,
com um seio de ouro
e outro de prata.



José Gomes Ferreira

.

16.3.11

Eloy Sánchez Rosillo (Epitáfio)





EPITÁFIO




Detende, caminhantes, vossos passos.
Sabei que aqui repousa alguém que muito amou
a formosura do mundo: as árvores, os livros,
a música, o verão, as raparigas.
Não pergunteis quem foi, nem desde quando
é já silêncio e esquecimento.
Na terra que lhe cobre os despojos
placidamente um pouco descansai.
E prossegui depois vosso caminho
sob o propício sol que ele vos deseja em sua noite.



ELOY SÁNCHEZ ROSILLO
Elegías
(1984)



.

Um verso (92)






Um verso de Sena
(ou dois, para a mesa do canto):





e o melhor homem for um criminoso
voltando ansioso ao local do crime



Jorge de Sena

.

15.3.11

Guerra Junqueiro (Aos simples)





AOS SIMPLES



      (...)
Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,
do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares
cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,
e a Lua branca, além, por entre as oliveiras,
como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,
eu balbuciava a minha infantil oração,
pedindo ao Deus que está no azul do firmamento
que mandasse um alívio a cada sofrimento,
que mandasse uma estrela a cada escuridão.
Por todos eu orava e por todos pedia.
pelos mortos no horror da terra negra e fria,
por todas as paixões e por todas as mágoas,
pelos míseros que entre os uivos das procelas
vão em noite sem lua e num barco sem velas
errantes através do turbilhão das águas.
O meu coração puro, imaculado e santo
ia ao trono de Deus pedir, como inda vai,
para toda a nudez um pano do seu manto,
para toda a miséria o orvalho do seu pranto
e para todo o crime o seu perdão de Pai!


A minha mãe faltou-me era eu pequenino,
mas da sua piedade o fulgor diamantino
ficou sempre abençoando a minha vida inteira,
como junto dum leão um sorriso divino,
como sobre uma flor um ramo de oliveira!
            (...)



GUERRA JUNQUEIRO
A Velhice do Padre Eterno
(1885)

.

David González (Perdão)






PERDÓN




esta mañana he visto a mi padre.

caminaba por la calle bajo una fuerte lluvia.

no llevaba paraguas.

el termómetro digital
de los jardines de la reina
marcaba 4 grados de temperatura.

¿he dicho que mi padre caminaba?

mi padre no caminaba.

                       cojeaba.

tiene molestias en una rodilla.
algo relacionado con la artritis
o con la artrosis,
o más grave:
los médicos no acaban de ponerse de acuerdo.

vi a mi padre
desde el coche,
desde su coche, para ser exactos,
porque el mío está en el taller.

estuve a punto de pasar de largo.

en realidad, pasé de largo.

pero luego lo pensé mejor
y aparqué en doble fila, abrí
la puerta
y le llamé. subió.
nos dimos un beso en cada mejilla.

después
le llevé a casa.


David González






vi o meu pai esta manhã.

caminhava pela rua debaixo de chuva intensa.

guarda-chuva não usava.

o termómetro digital
dos jardins da rainha
marcava 4 graus.

disse que caminhava, meu pai?

meu pai não caminhava.

                         coxeava.

tem problemas num joelho.
alguma coisa relacionada
com a artrite
ou com artrose,
ou mais grave,
os médicos não chegam a acordo.

vi o meu pai
do carro,
do carro dele, para ser mais exacto,
porque o meu está na oficina.

estive quase a passar ao largo.

na verdade passei ao largo.

mas depois pensei melhor,
estacionei em dupla fila, abri a porta
e chamei-o. entrou.
demos um beijo em cada face.

depois
levei-o a casa.


(Trad. A.M.)

.

14.3.11

Fernando Pessoa / A. Caeiro (Se quiserem que eu tenha um misticismo)





Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.
Sou místico, mas só com o corpo.
A minha alma é simples e não pensa.


O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.


Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição.
   (...)


(O guardador de rebanhos)



Alberto Caeiro


.

Ver (67)

                                          




Canadá


[Andrew Oleinikov]

                                                               .

13.3.11

Angel González (Para que eu me chame Angel González)





PARA QUE YO ME LLAME ÁNGEL GONZÁLEZ




Para que yo me llame Ángel González,
para que mi ser pese sobre el suelo,
fue necesario un ancho espacio
y un largo tiempo:
hombres de todo el mar y toda tierra,
fértiles vientres de mujer, y cuerpos
y más cuerpos, fundiéndose incesantes
en otro cuerpo nuevo.
Solsticios y equinoccios alumbraron
con su cambiante luz, su vario cielo,
el viaje milenario de mi carne
trepando por los siglos y los huesos.
De su pasaje lento y doloroso,
de su huida hasta el fin, sobreviviendo
naufragios, aferrándose
al último suspiro de los muertos,
yo no soy más que el resultado, el fruto,
lo que queda, podrido, entre los restos;
esto que veis aquí,
tan sólo esto:
un escombro tenaz, que se resiste
a su ruina, que lucha contra el viento,
que avanza por caminos que no llevan
a ningún sitio. El éxito
de todos los fracasos. La enloquecida
fuerza del desaliento...

Ángel González





Para que eu me chame Ángel González,
para que meu ser pese sobre a terra,
foi preciso um largo espaço
e um longo tempo:
homens de todo o mar e toda a terra,
ventres férteis de mulher, corpos
e mais corpos, fundindo-se incessantes
em outro corpo novo.
Solstícios e equinócios iluminaram
com sua luz mutante, seu vário céu,
a jornada milenar de minha carne
trepando pelos séculos e pelos ossos.
De seu trânsito lento e doloroso,
de sua fuga até ao final, sobrevivendo
a naufrágios, aferrando-se
ao último suspiro dos mortos,
eu não sou mais que o resultado, o fruto,
o que resta, apodrecido, entre os restos;
isto que vedes aqui, apenas isto:
um escombro tenaz, resistindo
à sua ruína, lutando contra o vento,
avançando por caminhos que não levam
a lado nenhum. O êxito
de todos os fracassos. A enlouquecida
força do desalento…


(Trad. A.M.)

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