28.2.11

Manoel de Barros (Comportamento)






COMPORTAMENTO



Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a
de equivocar o sentido das palavras
Não havendo nenhum descomportamento nisso
senão que alguma experiência linguística.
Noto que às vezes sou desvirtuado a pássaros, que
sou desvirtuado em árvores, que sou desvirtuado
para pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental
para animal vegetal ou pedral
É apenas um descomportamento semântico.
Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para
ventar nas pedras,
Apenas faço o desvio da finalidade da grota que
não é a de ventar nas pedras.
Se digo que os passarinhos faziam paisagens na
minha infância,
É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que
não é a de fazer paisagens.
Mas isso é apenas um descomportamento linguístico que
não ofende a natureza dos passarinhos nem das grotas.
Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo.
Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.
Se digo ainda que é mais feliz quem descobre o que não
presta do que quem descobre ouro –
Penso que ainda assim não serei atingido pela bobagem.
Apenas eu não tenho polimentos de ancião.



MANOEL DE BARROS
Compêndio para uso dos pássaros
(Poesia reunida 1937-2004)
Quasi Edições, 2007


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Rosana Acquaroni (Máquina temerária)





MÁQUINA TEMERARIA



Máquina temeraria.
Yo soy la que comienza a no existir.
Mientras ella
se preña
se atraganta
con mis escritos de la tarde.
Desordena
quiebra
despedaza
se adueña
sabe
que yo la escucho desde dentro.



Rosana Acquaroni





Máquina temerária.
Eu sou a que começa a não existir.
Enquanto ela
se prenha
e engasga
com os meus escritos da tarde.
E desordena
quebra
despedaça
se adona
sabe
que eu a escuto de dentro.


(Trad. A.M.)

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27.2.11

Ver (66)








Canada



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José Tolentino Mendonça (Uma coisa a menos para adorar)






UMA COISA A MENOS PARA ADORAR




Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra
uma coisa a menos para adorar
quando tudo se apaga
as paisagens descobrem-se perdidas
irreconciliáveis


entendes por isso o meu pânico
nessas noites em que volto sem razão nenhuma
a correr pelo pontão de madeira
onde um homem foi morto


arranco como os atletas ao som de um disparo seco
mas sou apenas alguém que de noite
grita pela casa


há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo


hoje estive tão triste
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora
enquanto pensava no homem que vi matar
e de quem não soube nunca nada
nem o nome



José Tolentino Mendonça

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26.2.11

Roque Dalton (Como a sempre-viva)






COMO LA SIEMPREVIVA




Mi poesía
es como la siempreviva
paga su precio
a la existencia
en término de asperidad.


Entre las piedras y el fuego,
frente a la tempestad
o en medio de la sequía,
por sobre las banderas
del odio necesario
y el hermosísimo empuje
de la cólera,
la flor de mi poesía busca siempre
el aire,
el humus,
la savia,
el sol,
de la ternura.


Roque Dalton







Minha poesia é como a sempre-viva
paga seu preço
à existência
em termos de aspereza.


Entre as pedras e o fogo,
frente à tempestade
ou no meio da secura,
por sobre as bandeiras
do ódio necessário
e o preciosíssimo empurrão
da cólera,
a flor da minha poesia busca sempre
o ar,
o húmus,
a seiva
o sol,
da ternura.


(Trad. A.M.)

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Um verso (90)






Um verso de Drummond
(um mais um igual a um):



Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.



Carlos Drummond de Andrade

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25.2.11

José Miguel Silva (Pergunta ociosa)





PERGUNTA OCIOSA




Os gregos ensinaram «paciência»
e «modera o apetite», os cristãos
acrescentaram «compadece-te e perdoa».
Sugestões orientadas para os dias
rigorosos da pobreza ou da velhice,
quando resta carrilar no conformismo
a empenada carruagem do possível.


Numa época, porém, em que os velhos
nada contam e ninguém se penaliza
por viver a curto prazo, na corrida
milionária ao armamento do desejo
(pois o pleito do consolo não se trava
já na alma mas na quina dos sentidos),
a que podemos nós chamar «sabedoria»?



JOSÉ MIGUEL SILVA
Erros Individuais
Relógio D'Água
(2010)



[O melhor amigo]


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Rogelio Ramos Signes (Diante dum cartaz de longe)






FRENTE A UN AFICHE LEJANO Y PLACENTERO




Una mujer,
una bella modelo
de piel más que perfecta
sostiene en sus dedos un cigarrillo
y lanza al aire el humo que le sobra
después de haber tapizado con él
la intimidad absoluta de sus pulmones.
La imagen ha dado la vuelta al mundo.
Detrás del humo:
su pómulo izquierdo levemente velado
y los canales de Venecia
concurridos de estandartes y de góndolas.
Delante del humo:
el fotógrafo que hizo la toma
(por eso no se lo ve)
y ahora
en un mercadito de Calingasta
donde la cordillera está más acá
del límite de la vista
yo me ahogo
no con el humo del afiche veneciano
que visitó esos pulmones
de mujercita plástica al detalle
que me mira sin descanso,
sino con el polvo de una vereda de tierra
que un niño se empeña en desordenar
corriendo porque sí atrás de una gallina.


Rogelio Ramos Signes





Uma mulher
uma bela modelo
de pele mais que perfeita
segura um cigarro nos dedos
e atira para o ar o fumo que lhe sobra
depois de forrar com ele
a intimidade absoluta dos pulmões.
A imagem deu a volta ao mundo.
Por trás do fumo:
a maçã do rosto levemente velada
e os canais de Veneza
com muitos estandartes e gôndolas.
Diante do fumo:
o fotógrafo que tirou a foto
(por isso não se vê)
e agora eu
num mercadito de Calingasta
onde a cordilheira está para cá
do limite da vista
eu engasgo-me
não com o fumo do cartaz veneziano
que visitou os pulmões
dessa mulherzinha de plástico
que me olha continuamente,
mas com o pó de um carreiro de terra
que uma criança se empenha em bater
correndo casualmente atrás duma galinha.


(Trad. A.M.)

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24.2.11

Olhar (92)






Correntes-2011


Póvoa de Varzim
(há instantes)

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José Gomes Ferreira (Anti-Pessoa)






(Anti-Pessoa.)




Volta às flores, poeta,
volta à alegria dos punhais
caídos das rosas
e dos gritos vãos.


E aquece o sol
com as tuas mãos.




José Gomes Ferreira

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23.2.11

Rogelio Guedea (Testamento)






TESTAMENTO




Debo confesar que la he visto desnuda
dormir con la luz encendida
derrotada al fondo de la cama sucia
entre las colchas manchadas por pleitos anteriores


debo confesar que otras bocas han pronunciado
sus más austeras cicatrices
y se han burlado conmigo de todas las lluvias
que carga tan lloradas
y la han maltratado como a una perra sarnosa


debo confesar que también desnuda se levanta
para ir al baño
y lee las cartas que le escribo cuando no estoy
cuando de algún modo me ausento


y la he encontrado en otros labios que descubro
por la calle
y la he besado en otros rostros ligeramente fríos


debo confesar que he salido a oscuras de su cuerpo
a cazar otros cuerpos
y en esos cuerpos sin lamentos ella está
más profunda todavía más cercana sin saberlo
como si esa carne extraña conociera ya
el rumbo de mis manos.



Rogelio Guedea





Devo confessar que a vi nua
dormindo de luz acesa
deitada aos pés da cama sórdida
entre mantas manchadas de pugnas anteriores


devo confessar que outras bocas vincaram
suas austeras cicatrizes
e zombaram comigo de todas as chuvas
que tão choradas carrega
e a maltrataram como a cadela sarnenta


devo confessar que nua também se levanta
para ir à casinha
e lê as cartas que eu lhe escrevo quando não estou
quando de algum modo me ausento


e encontrei-a noutros lábios que descubro
pela rua
e beijei-a noutros rostos levemente frios


devo confessar que saí às escuras
de seu corpo
para caçar outros corpos
e nesses corpos ela está
mais funda ainda mais chegada sem saber
como se essa carne estranha soubesse já
o rumo das minhas mãos.



(Trad. A.M.)

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José Carlos Barros (Os limites da literatura)






OS LIMITES DA LITERATURA




sei hoje
com a desilusão imensa de quem
suspeita ter perdido um rumo
ou o reconhecimento dos que nos lêem
que nenhum dos meus poemas sobre a crise e o orçamento
e muito menos os líricos publicados na revista criatura
deve ter influenciado assim de
modo particularmente decisivo
os relatórios
das agências de rating



José Carlos Barros

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22.2.11

José Agostinho Baptista (Fecha-me os olhos)





FECHA-ME OS OLHOS




Fecha-me os olhos devagar, com um beijo leve,
com três palavras apenas:
dorme, parte, adeus.

Assim tenho de me despedir.
Deixo uma buganvília à entrada da porta branca,
um bairro de sombras floridas,
um cão a quem dei o meu nome.

Deixo a casa amarela,
o limoeiro, as hortênsias, duas estrelícias na
jarra vermelha,
translúcida,
sobre a mesa de mogno.

Deixo alguns livros,
algumas paisagens de litorais desvanecidos,
alguns naufrágios que desenhei com o lápis das
tempestades.

Por favor,
não digam que fui feliz, se não me viram
caminhar pelas ruas desertas,
esmagando a serpente dos dias,
construindo muralhas,
que pouco depois se desmoronavam.

Eles também se despediram, os amigos.

Quando me lembro deles,
há um cântico negro,
com labaredas altivas, um eco de metal que vibra.

Não está certo que assim seja, que se soltem do
nosso peito, um após outro,
os delicados fios de ouro da ternura.

Deixo-vos as maçãs verdes sobre a mesa.
Com o tempo, tudo há-de amadurecer.


JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA
Esta voz é quase o vento
Assírio & Alvim
(2004)


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Rosalía de Castro (Este vai-se, aquele vai-se)




Este vai-se, aquele vai-se,
e todos, todos se vão:
Galiza, sem homens ficas
que te possam trabalhar.
Tens, em troca, órfãos e órfãs
e campos de solidão;
e mães que não têm filhos
e filhos que não têm pais.
E tens corações que sofrem
longas ausências mortais.
Viúvas de vivos e mortos
que ninguém consolará.



Rosalía de Castro

(Adapt. E.G.Cal)

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21.2.11

Coitado do Jorge (68)





SORTES -1




Esta não deu certo:



Podes pensar em mim como náufrago
e em ti como tábua de salvação
(sem pregos, se possível)...

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Alberto de Serpa (Recreio)





RECREIO



Na claridade da manhã primaveril,
Ao lado da brancura lavada da escola,
As crianças confraternizam com a alegria das aves...


A mão doce do vento afaga-lhes os cabelos,
E o sol abre-lhes rosas nas faces saudáveis
- Um sol discreto que se esconde às vezes entre nuvens brancas...


As meninas dançam de roda e cantam
As suas cantigas simples, de sentido obscuro e incerto,
Acompanhadas de gestos senhoris e graves.


Os rapazes correm sem tino e travam lutas,
Gritam entusiasmados o amor espontâneo à vida,
A vida que vai chegando despercebida e breve...


E a jovem mestra olha todos enlevadamente,
Com um sorriso misterioso nos lábios tristes...



Alberto de Serpa




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20.2.11

Roberto Juarroz (As coisas imitam-nos)





Las cosas nos imitan.
Un papel arrastrado por el viento
reproduce los tropezones del hombre.
Los ruidos aprenden a hablar como nosotros.
La ropa adquiere nuestra forma.


Las cosas nos imitan.
Pero al final
nosotros imitaremos a las cosas.



Roberto Juarroz





As coisas imitam-nos.
Um papel arrastado pelo vento
reproduz os tropeções dum homem.
Os ruídos aprendem a falar como nós.
A roupa adquire a nossa forma.


As coisas imitam-nos.
Mas no fim
somos nós que imitamos as coisas.


(Trad. A.M.)

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Olhar (91)








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19.2.11

Guerra Junqueiro (O melro)





O MELRO



O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar, dentre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre-cura abria a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro; dentre a horta,
Dizia-lhe: "Bons dias!"
E o velho padre-cura
não gostava daquelas cortesias.


O cura era um velhote conservado,
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro:
Andava às lebres pelo monte, a pé,
Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos
Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
Até que ultimamente
O velho disse um dia:


"Nada, já não tem jeito!, este ladrão
Dá cabo dos trigais!
Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e os pardais?!"
   (...)



GUERRA JUNQUEIRO
A Velhice do Padre Eterno
(1885)

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Pedro Salinas (Tu)










Tu vives siempre en tus actos.
Con la punta de tus dedos
pulsas el mundo, le arrancas
auroras, triunfos, colores, 
alegrías: es tu música.
La vida es lo que tu tocas. 


De tus ojos, sólo de ellos,
sale la luz que te guía
los pasos. Andas
por lo que ves. Nada más. 


Y si una duda te hace
señas a diez mil kilómetros,
lo dejas todo, te arrojas
sobre proas, sobre alas,
estás ya allí; con los besos,
con los dientes la desgarras:
Ya no es duda.
Tú nunca puedes dudar.


Porque has vuelto los misterios
del revés. Y tus enigmas,
lo que nunca entenderás,
son esas cosas tan claras:
la arena donde te tiendes,
la marcha de tu reloj
y el tierno cuerpo rosado
que te encuentras en tu espejo
cada día al despertar,
y es el tuyo. Los prodigios
que están descifrados ya.


Y nunca te equivocaste,
más que una vez, una noche
que te encaprichó una sombra
- la única que te ha gustado.
Una sombra parecía.
Y la quisiste abrazar.
Y era yo.



Pedro Salinas






Tu vives sempre em teus actos.
Com a ponta dos dedos
tocas no mundo, arrancas-lhe
auroras, triunfos, cores
e alegrias; é tua música.
A vida é o que tu tocas.


De teus olhos, deles só,
sai a luz que guia
teus passos. Andas
pelo que vês. Nada mais.


E se uma dúvida te acena
a dez mil quilómetros,
deixas tudo, atiras-te
sobre proas ou asas,
estás logo lá; e rasga-la
com os dentes, à força de beijos:
Era uma vez uma dúvida.
Duvidar é que tu não podes.


Porque tu viraste os mistérios
do avesso. E os teus enigmas,
nunca vais entendê-lo,
são essas coisas tão claras:
a areia em que te estendes,
o movimento do teu relógio
e esse corpo rosa
que encontras no espelho
cada dia ao despertar,
e que é o teu. Os prodígios
já decifrados.


E nunca te enganaste,
mais que uma vez, nessa noite
em que uma sombra te interessou
- a única de que gostaste.
Parecia uma sombra.
E quiseste abraçá-la.
E era eu.


(Trad. A.M.)


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18.2.11

Fernando Pessoa / A. Caeiro (Há metafísica bastante)






Há metafísica bastante em não pensar em nada.


O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.


Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).


O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.


Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?


«Constituição íntima das cousas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.


Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.


Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
   (...)


(O guardador de rebanhos)



Alberto Caeiro


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Eugénio de Andrade (Arte de navegar)





ARTE DE NAVEGAR



Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro.


Eugénio de Andrade



[Poemblog]


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17.2.11

Pablo Neruda (Inclinado nas tardes)






POEMA 7



Inclinado en las tardes tiro mis tristes redes
a tus ojos oceánicos.


Allí se estira y arde en la más alta hoguera
mi soledad que da vueltas los brazos como un náufrago.


Hago rojas señales sobre tus ojos ausentes
que olean como el mar a la orilla de un faro.


Sólo guardas tinieblas, hembra distante y mía,
de tu mirada emerge a veces la costa del espanto.


Inclinado en las tardes echo mis tristes redes
a ese mar que sacude tus ojos oceánicos.


Los pájaros nocturnos picotean las primeras estrellas
que centellean como mi alma cuando te amo.


Galopa la noche en su yegua sombría
desparramando espigas azules sobre el campo.



Pablo Neruda




Inclinado nas tardes lanço as minhas tristes redes
aos teus olhos oceânicos.


Ali se estira e arde na mais alta fogueira
a minha solidão que esbraceja como um náufrago.


Faço rubros sinais sobre os teus olhos ausentes
que ondeiam como o mar à beira dum farol.


Somente guardas trevas, fêmea distante e minha,
do teu olhar emerge às vezes o litoral do espanto.


Inclinado nas tardes deito as minhas tristes redes
a esse mar que sacode os teus olhos oceânicos.


Os pássaros nocturnos debicam as primeiras estrelas
que cintilam como a minha alma quando te amo.


Galopa a noite na sua égua sombria
derramando espigas azuis por sobre o campo.



(Trad. F.A.P.)

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16.2.11

Um verso (89)






Um verso de Raul Brandão
(um verso?):








Raul Brandão

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Armando Silva Carvalho (Coitas)






COITAS




Aqui ninguém me obriga ao eflúvio dos líricos.
Ao abuso do som neste solfejo podre
de uma orquestra de câmara,
que arde, que vacila.
É tempo de me abrir às implosões da ira.
Reparem como surjo. Primeiro sou o navio.
Depois a sombra dele. Depois apenas ponto.
Cesariny dixit. Coitado dele coitado
que coitava o de Campos
que por sua vez só a ele se coitava.
Coitado eu três vezes.
Mas isso é outra história.



Armando Silva Carvalho


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15.2.11

Pablo García Casado (Sobrevivência)





SUPERVIVENCIA



Devora en silencio las sobras del día anterior. Patatas
frías que no comió el niño, pan, un poco de agua, es sufi
ciente. No has vendido nada, ¿ verdad? El eco de las pala
bras rebota en los electrodomésticos. Hace años habría
temblado de pánico sólo con escuchar esas palabras, pero
el tiempo cubre las cosas de una espesa capa de norma
lidad.


PABLO GARCÍA CASADO
Dinero
dvd ediciones
(1997)


[Lugares Mal Situados]





Devora em silêncio os restos do dia anterior. Batatas
frias que o filho não comeu, pão, um pouco de água, é o bas
tante. Não vendeste nada, pois não? O eco das pala
vras ressalta nos electrodomésticos. Há anos estremeceria
de pânico só de ouvir essas palavras, porém
o tempo cobre as coisas com uma capa espessa de norma
lidade.


(Trad. A.M.)

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Ver (65)








[Andiyan Lutfi]

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14.2.11

Alexandre O'Neill (Velha fábula em bossa-nova)






VELHA FÁBULA EM BOSSA NOVA



Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.


Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.


Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.


Assim devera eu ser
se não fora
não querer.


(-Obrigado, formiga!
Mas a palha não cabe
onde você sabe...)



Alexandre O’Neill

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Oliverio Girondo (Se eu suspeitasse)






(11)


Si hubiera sospechado lo que se oye después de muerto, no me suicido.

Apenas se desvanece la musiquita que nos echó a perder los últimos momentos y cerramos los ojos para dormir la eternidad, empiezan las discusiones y las escenas de familia.

¡Qué desconocimiento de las formas! ¡Qué carencia absoluta de compostura! ¡Qué ignorancia de lo que es bien morir!

Ni un conventillo de calabreses malcasados, en plena catástrofe conyugal, daría una noción aproximada de las bataholas que se producen a cada instante.

Mientras algún vecino patalea dentro de su cajón, los de al lado se insultan como carreros, y al mismo tiempo que resuena un estruendo a mudanza, se oyen las carcajadas de los que habitan en la tumba de enfrente.

Cualquier cadáver se considera con el derecho de manifestar a gritos los deseos que había logrado reprimir durante toda su existencia de ciudadano, y no contento con enterarnos de sus mezquindades, de sus infamias, a los cinco minutos de hallarnos instalados en nuestro nicho, nos interioriza de lo que opinan sobre nosotros todos los habitantes del cementerio.

De nada sirve que nos tapemos las orejas. Los comentarios, las risitas irónicas, los cascotes que caen de no se sabe dónde, nos atormentan en tal forma los minutos del día y del insomnio, que nos dan ganas de suicidarnos nuevamente.

Aunque parezca mentira - esas humillaciones - ese continuo estruendo resulta mil veces preferible a los momentos de calma y de silencio.

Por lo común, éstos sobrevienen con una brusquedad de síncope. De pronto, sin el menor indicio, caemos en el vacío. Imposible asirse a alguna cosa, encontrar una asperosidad a que aferrarse. La caída no tiene término. El silencio hace sonar su diapasón. La atmósfera se rarifica cada vez más, y el menor ruidito: una uña, un cartílago que se cae, la falange de un dedo que se desprende, retumba, se amplifica, choca y rebota en los obstáculos que encuentra, se amalgama con todos los ecos que persisten; y cuando parece que ya se va a extinguir, y cerramos los ojos despacito para que no se oiga ni el roce de nuestros párpados, resuena un nuevo ruido que nos espanta el sueño para siempre.

¡Ah, si yo hubiera sabido que la muerte es un país donde no se puede vivir!


OLIVERIO GIRONDO
Espantapájaros
(1932)





Se eu suspeitasse aquilo que se ouve depois de morto, não me matava.

Mal se desvanece a musiquinha que nos deitou a perder nos últimos instantes e fechamos os olhos para dormir a eternidade, começam as discussões e as cenas de família.

Que desconhecimento de maneiras! Que falta total de compostura! Que ignorância do que é bem morrer!

Nem um bairro de calabreses mal casados, em plena catástrofe conjugal, daria uma noção aproximada das bulhas que se dão a cada instante.

Enquanto um fulano pateia dentro do caixão, os do lado insultam-se como carroceiros e ao mesmo tempo que soa um estrondo de mudança ouvem-se as gargalhadas dos que moram no sepulcro em frente.

Qualquer cadáver se considera no direito de manifestar aos berros os desejos reprimidos ao longo de toda a sua existência de cidadão e, não contente de nos dar a conhecer as suas mesquinhezes e infâmias, cinco minutos depois de nos instalarmos no nosso nicho, faz-nos saber o que opinam sobre nós todos os habitantes do cemitério.

De nada nos serve tapar os ouvidos. Os comentários, os risinhos irónicos, os escombros que nos caem sabe-se lá donde, atormentam-nos de tal modo os minutos do dia que nos dão ganas de novo suicídio.

Embora pareça mentira – essas humilhações – esse estrondo contínuo torna-se mil vezes preferível aos momentos de calma e de silêncio.

Geralmente, estes aparecem com repentes de síncope. Subitamente, sem o menor sinal, caímos no vazio. Impossível agarrar-se a algo, achar uma rugosidade a que apegar-se. A queda nunca mais acaba. O silêncio faz soar o seu diapasão. A atmosfera rarifica-se cada vez mais e o menor ruídinho, uma unha, uma cartilagem que tomba, a falange dum dedo que se desprende, retumba, amplia-se, choca e ressalta nos obstáculos que encontra, mistura-se aos ecos que persistem; e quando parece que vai extinguir-se e fechamos os olhos devagarinho para não ouvir sequer o roçar das pestanas, um novo ruído ressoa que nos espanta o sono para sempre.

Ah, se eu soubesse que a morte é um país onde não se consegue viver!



(Trad. A.M.)

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13.2.11

Alda Merini (Se alguém procurar)






Se qualcuno cercasse
di capire il tuo sguardo
Poeta difenditi con ferocia:
il tuo sguardo son cento sguardi
che ahimè ti hanno guardato
tremando.



Alda Merini






Se alguém tentar
compreender teu olhar
Defende-te poeta ferozmente:
o teu olhar são mil olhares
que ai de mim te olharam
estremecendo.


(Trad. A.M.)

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Bertolt Brecht (Fábula)





FÁBULA



O lobo foi ter
com a galinha
e disse-lhe:


«Devíamos conhecer-nos
melhor para vivermos
com amor e confiança»


A galinha achou bem
e foi com o lobo.


Foi por isso que as suas
penas ficaram espalhadas
por todo o lado.



Bertolt Brecht



[Cravo de Abril]

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12.2.11

Octavio Paz (Teu nome)





TU NOMBRE



Nace de mí, de mi sombra,
amanece por mi piel,
alba de luz somnolienta.


Paloma brava tu nombre,
tímida sobre mi hombro.



Octavio Paz





Nasce de mim, da minha sombra,
amanhece-me sobre a pele,
alva de luz sonolenta.


Pomba brava teu nome,
tímida no meu ombro.


(Trad. A.M.)

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Russell Edson (Anjos)





ANGELS



They have little use. They are best as objects of torment.
No government cares what you do with them.


Like birds, and yet so human…
They mate by briefly looking at the other.
Their eggs are like white jellybeans.


Sometimes they have been said to inspire a man
to do more with his life than he might have.
But what is there for a man to do with his life?


…They burn beautifully with a blue flame.


When they cry out it is like the screech of a tiny hinge;
the cry of a bat. No one hears it.



Russell Edson



[Balconcillos]





Têm pouca serventia, mas dão mais como objecto de martírio,
nem o governo quer saber do que lhes fazem.


São como aves e, contudo, tão humanos...
Acasalam olhando o par por um instante
e os ovos são como gomas brancas.


Às vezes dizem que levam um homem
a fazer da vida mais do que o possível.
Mas o que pode um homem fazer da sua vida?


... Ardem lindamente com uma chama azul.


Quando choram é como o ranger dum osso,
o pranto dum morcego. Ninguém ouve.



(Trad. A.M.)

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11.2.11

Coitado do Jorge (67)






TERNURAS (2)



Grande ideia, arrancar-lhe um braço...


E ameaçar, em caso de reincidência:
- Queres que te arranque o outro?


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Nuria Mezquita (Vox populi)






VOX POPULI




Dicen que las esquinas están llenas de prostitutas y vagabundos
que las plazas se infectan de borrachos a los que hay que desterrar
dicen que todas las mujeres tienen un pensamiento único
y que los limpiaparabrisas que no limpian hay que cambiarlos.


Dicen que para que una promesa se cumpla alguien tiene que hacerla verdad
que los traidores viven en el país de Traicionalandia,
pero que de vez en cuando se dan un paseo por Nuestravida
y que hay perros que son mejor persona que tú
y que si fueras sincero, ya habrías desaparecido…


Dicen que las palabras sólo son palabras
y que sólo son poesía los sonetos eternos
que cumplen con la métrica y que nombran el anatema…
Dicen que para amar de verdad
sólo hay que amar de verdad.


De la noche, de la noche todos dicen, presumen y mienten
y del día, todos esconden.


Dicen que la pasión se acaba cuando se encierra en el compromiso
que la distancia es capaz de poner adornos al recuerdo
y que cuando dormimos no vivimos.


Dicen, dicen, dicen...
Dicen que esto no es poesía,


tienen razón…



Nuria Mezquita



[Dalton Trompet]






Dizem que as esquinas estão cheias de prostitutas e vagabundos
e as praças infectadas de bêbedos que é preciso desterrar
dizem que as mulheres têm um só pensamento
e que é preciso mudar os limpa-vidros que já não limpam.


Dizem que para se cumprir uma promessa
alguém tem de torná-la verdade
que os traidores vivem no país da Traição
mas vez por outra dão um giro pela Nossavida
e que cães há melhores pessoas do que nós
e que se fôssemos sinceros já teríamos
desaparecido...


Dizem que as palavras são só palavras
e que são poesia apenas os sonetos eternos
que cumprem a métrica e nomeiam o anátema...
Dizem que para amar de verdade
só temos que amar de verdade.


Da noite, da noite todos dizem, presumem e mentem
e do dia escondem todos.


Dizem que acaba a paixão quando se encerra no vínculo
que a distância alinda a lembrança
e que não se vive quando se dorme.


Dizem, dizem, dizem...
Dizem que isto não é poesia,


e têm razão...



(Trad. A.M.)


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10.2.11

Nuno Júdice (A incerteza)





A INCERTEZA



A incerteza cai com a tarde
no limite da praia. Um pássaro
apanhou-a, como se fosse
um peixe, e sobrevoa as dunas
levando-a no bico. O
seu desenho é nítido, sem
as sombras da dúvida ou
as manchas indecisas da
angústia. Termina com a
interrogação, os traços do fim,
o recorte branco das ondas
na maré baixa. Subo a estrofe
até apanhar esse pássaro
com o verso, prendo-o à frase,
para que as suas asas deixem
de bater e o bico se abra. Então,
a incerteza cai-me na página, e
arrasta-se pelo poema, até
me escorrer pelos dedos para
dentro da própria alma.


Nuno Júdice


[Luz & sombra]


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W. C. Williams (A uma pobre velha)






TO A POOR OLD WOMAN




munching a plum on
the street a paper bag
of them in her hand


They taste good to her
They taste good
to her. They taste
good to her


You can see it by
the way she gives herself
to the one half
sucked out in her hand


Comforted
a solace of ripe plums
seeming to fill the air
They taste good to her



W. C. Williams





a mastigar uma ameixa
na rua com um saco
delas na mão


Elas sabem-lhe bem
Sabem-lhe bem. Sabem-lhe
muito bem


Pode-se vê-lo pelo
modo como ela se entrega
ao fruto meio mordido
que segura na mão


Confortada
um consolo de ameixas maduras
parece encher o ar
Elas sabem-lhe muito bem



(Trad. A.M.)


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9.2.11

Nicanor Parra (Último brinde)






ÚLTIMO BRINDIS




Lo queramos o no
sólo tenemos tres alternativas:
el ayer, el presente y el mañana.


Y ni siquiera tres
porque como dice el filósofo
el ayer es ayer
nos pertenece sólo en el recuerdo:
a la rosa que ya se deshojó
no se le puede sacar otro pétalo.


Las cartas por jugar
son solamente dos:
el presente y el día de mañana.


Y ni siquiera dos
porque es un hecho bien establecido
que el presente no existe
sino en la medida en que se hace pasado
y ya pasó...
como la juventud.


En resumidas cuentas
sólo nos va quedando el mañana:
yo levanto mi copa
por ese día que no llega nunca
pero que es lo único
de lo que realmente disponemos.



Nicanor Parra







Queiramos ou não
temos só três alternativas,
o ontem, o presente e o amanhã.


E nem sequer três
porque como diz o filósofo
o ontem é ontem
pertence-nos só na lembrança
à rosa já desfolhada
não pode tirar-se outra pétala.


As cartas por jogar
são apenas duas,
o presente e o amanhã.


E nem sequer duas
porque é facto assente
que o presente não existe
senão na medida em que se torna passado
e já passou...
como a juventude.


Em resumidas contas
fica-nos só o amanhã:
eu levanto a minha taça
por esse dia que jamais chega
mas é o único
de que realmente dispomos.



(Trad. A.M.)



Outras versões: Menino mau  /  Antologia do esquecimento


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Um verso (88)






Um verso de Drummond
(um mais dois igual a um):






Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.



 
Carlos Drummond de Andrade


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8.2.11

Ruy Belo (Na morte de Marilyn)






NA MORTE DE MARILYN




Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispõs do direito
ao uso e ao abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse à governanta não me acorde amanhã
estou cansada e necessito de dormir
estou cansada e é preciso eu descansar
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
a mão da solidão é pedra em nosso peito
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sozinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjectivar
mesmo que seja bela o adjectivo a empregar
que em vez de ver um todo se decida dissecar
analisar partir multiplicar em partes
Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou
quis ser até ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só estender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou



Ruy Belo



[Vício da poesia]


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