31.1.11

Miguel d'Ors (Contraste)






CONTRASTE




Ellos que viven bajo los focos clamorosos
del éxito y poseen
suaves descapotables y piscinas
de plácido turquesa con rosales
y perros importantes
y ríen entre rubias satinadas
bellas como el champán,
                            pero no son felices,


y yo que no teniendo nada más que estas calles
gregarias y un horario
oscuro y mis domingos baratos junto al río
con una esposa y niños que me quieren
tampoco soy feliz.


Miguel d’Ors






Eles que vivem debaixo dos focos clamorosos
do êxito e possuem
suaves descapotáveis e piscinas
de plácido turquesa com roseiras
e cães importantes
e riem entre loiras platinadas
belas como o champanhe,
                                    mas não são felizes,


e eu que sem ter nada mais que estas ruas
gregárias, um horário
escuro e os meus domingos baratos junto ao rio
com uma esposa e filhos que me amam
tampouco sou feliz.



[O melhor amigo]


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José Carlos Barros (A neve nas Alturas)






A NEVE NAS ALTURAS




Sabemos que uma coisa não existe
senão no modo como a olhamos. A água benta
é apenas um bom exemplo:
o Homem é o único animal que a distingue


da água da torneira. Assim
a neve nas suas múltiplas representações:
a neve prosaica
que significa desconforto


e se mistura com a lama e desliza, entre espessa
e deslaçada, nas ruas e nos pátios;
a neve muito branca elevada à categoria simbólica


da purificação; a neve e o seu carácter
lúdico, jogo e divertimento,
riso e corrida nas descidas das veredas lisas.


A neve caiu mais uma vez (e deu-lhe forte)
sobre as aldeias e as vilas, das cumeadas
às encostas da urze, das colinas aos vales da aluvião,


dos largos aos terraços, dos telhados das casas
aos adros das igrejas. E novamente
o múltiplo olhar do mundo


a desenhou em cartas de rumo inúmeras, derivações,
diferenças: da exaltação à palavra avisada
do velho das Alturas do Barroso
que não se teve que não dissesse à algarvia jovem


que saltava na neve e deslizava como se estivesse por dentro
da nuvem dos sonhos dos livros: «pois se gosta
tanto dela
leve-a toda que não nos faz falta nenhuma.»



José Carlos Barros



[Casa de Cacela]


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30.1.11

José Agostinho Baptista (Perdi-me por amor)






PERDI-ME POR AMOR




Perdi-me por amor,
fui aquele que procurava a casa do coração e
a luz, mas agora,
prisioneiro da bruma, junto ao altar,
penso
nas manhãs em que voava para longe,
ao lado dos irmãos.


Penso em quase todas as flores que vi nos
canteiros do céu,
penso nas mãos que estendiam as formas do
centeio e do trigo
para a minha boca.


E os meus olhos que viram os deslumbrantes
cristais do mundo
baixaram as suas pálpebras sobre a noite da
terra,
sobre os sepulcros abertos.


Não sei onde sepultarão os meus ossos,
onde soltarão ao vento as minhas cinzas.
Sei apenas que perdurarei no murmúrio dos
teus lábios
e nas pedras onde me sentei e chorei.


Pouco tempo me resta para contar aos filhos
que não tive
o fulminante desejo das viagens.
E hoje,
entre estas quatro paredes de cal mutilada,
quando chove por dentro, para sempre,
só te posso dizer adeus.




JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA
Esta voz é quase o vento
Assírio & Alvim
(2004)


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29.1.11

Ver (64)










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Guerra Junqueiro (Regresso ao lar)






REGRESSO AO LAR




Ai, há quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?...há trinta? Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para eu me lembrar!...


Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh! a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida,
Canta-me cantigas de me adormentar!...


Trago d'amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama que me deste o peito,
Canta-me cantigas para me embalar!...


Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
Pedrarias d'astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!


Como antigamente, no regaço amado,
(Venho morto, morto!...) deixa-me deitar!
Ai, o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...


Canta-me cantigas, manso, muito manso...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minh'alma durma, tenha paz, descanso,
Quando a Morte, em breve, ma vier buscar!...




GUERRA JUNQUEIRO
Os Simples
(1892)


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28.1.11

María Sanz (E não vais ser tu)






Y NO VAS A SER TÚ




Te has inventado un hombre que no existe,
ese hombre que sólo reconoces
lejos de la barbarie,
inmune a lo mediocre y a su causa.
Continúas buscándole,
mientras el arco-iris
es toda su mirada,
cuando aclama la vida
tu soledad en plena muchedumbre.
El hombre que deseas,
ése de cuyos brazos
nada terminaría de arrancarte,
hace tiempo que huyó del Paraíso,
que encuentra cada noche
la mujer de sus sueños,
y no vas a ser tú, precisamente,
con tanto Brahms y tanta poesía.


María Sanz






Inventaste um homem que não existe,
esse homem que só reconheces
longe da barbárie,
imune à mediocridade e à sua causa.
Continuas a procurar,
enquanto o arco-íris
é todo o seu olhar
quando tua solidão aclama a vida
no meio da multidão.
O homem que desejas,
esse de cujos braços
nada te arrancaria,
há muito que fugiu do Paraíso
e encontra cada noite
a mulher dos seus sonhos,
e não serás tu, precisamente,
com tanto Brahms e tanta poesia.


(Trad. A.M.)


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Sophia de Mello Breyner Andresen (Eu me perdi)






Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia, agiota, fariseu
Ou cocote


Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra


Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar



Sophia de Mello Breyner Andresen




[My fake plastic love]


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27.1.11

Um verso (87)






Um verso de Torga
(S. Leonardo da Galafura):





À proa de um navio de penedos



Miguel Torga


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Jorge Espina (O melhor da vida)






LO MEJOR DE MI VIDA




No me encontrará con las manos vacías,
No tuve miedo de vivir,
De equivocar mi destino.
Y si di más amor del que tenía,
Y si pequé tantas veces como pude,
Sepas, que es necesario perderse
Para encontrar el camino.


Jorge Espina



[Las maneras de recogerse el pelo]






Não me achará de mãos vazias,
Medo não tive de viver,
Nem de enganar o destino.
E se dei mais amor do que tinha,
E pequei tantas vezes como pude,
Fica a saber que é preciso perder-se
Para encontrar o caminho.


(Trad. A.M.)



>>  Apologia de la luz (blogue pessoal)


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26.1.11

Fernando Pessoa (Outrora agora)






Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.


Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.


Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.




Fernando Pessoa



[Fogo maduro]


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Eugénio de Andrade (Entre os teus lábios)






ENTRE OS TEUS LÁBIOS



Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.


No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.


Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.


Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.


Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.



Eugénio de Andrade



[Poemblog]

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25.1.11

Luis Cernuda (Onde habite o olvido)






DONDE HABITE EL OLVIDO




Donde habite el olvido,
En los vastos jardines sin aurora;
Donde yo sólo sea
Memoria de una piedra sepultada entre ortigas
Sobre la cual el viento escapa a sus insomnios.


Donde mi nombre deje
Al cuerpo que designa en brazos de los siglos,
Donde el deseo no exista.


En esa gran región donde el amor, ángel terrible,
No esconda como acero
En mi pecho su ala,
Sonriendo lleno de gracia aérea mientras crece el tormento.


Allí donde termine este afán que exige un dueño a imagen suya,
Sometiendo a otra vida su vida,
Sin más horizonte que otros ojos frente a frente.


Donde penas y dichas no sean más que nombres,
Cielo y tierra nativos en torno de un recuerdo;
Donde al fin quede libre sin saberlo yo mismo,
Disuelto en niebla, ausencia,
Ausencia leve como carne de niño.


Allá, allá lejos;
Donde habite el olvido.



LUIS CERNUDA
Los placeres prohibidos
(1931)



[Cómo cantaba mayo]







Onde habite o olvido,
Nos vastos jardins sem aurora;
Onde eu seja apenas
Memória duma pedra sepultada entre ortigas
Sobre a mesma o vento escapando à insónia.


Onde o meu nome deixe
Nos braços dos séculos o corpo que nomeia,
Onde não haja o desejo.


Nesse grande país onde o amor, anjo terrível,
Não esconda como aço
Sua asa em meu peito,
Sorrindo cheio de graça enquanto cresce o tormento.


Lá onde acabe este afã que exige um dono à sua imagem,
Submetendo sua vida a outra vida,
Sem mais horizonte que outros olhos frente a frente.


Onde dores e venturas sejam apenas palavras,
Céu e terra nativos à volta duma lembrança;
Onde afinal eu fique livre sem eu mesmo saber,
Diluído na névoa, ausência,
Leve ausência como carne de criança.


Além, lá longe;
Onde habite o olvido.



(Trad. A.M.)

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24.1.11

Armando Silva Carvalho (Urinar onde?)






URINAR ONDE?




Cheguei ao aeroporto. Aviões, gataria,
animais de transbordo, diz-se que estão
em trânsito. E afinal para onde?
Que países procuram?
Que rotas delicadas saberão essas vozes?
Em que canteiros urinam antes de subirem?
Ou será entre nuvens que mijam sobre a Terra?



Armando Silva Carvalho

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23.1.11

Ana Hatherly (O que é o espaço?)





O QUE É O ESPAÇO?




O que é o espaço
senão o intervalo
por onde
o pensamento desliza
imaginando imagens?


O biombo ritual da invenção
oculta o espaço intermédio
o interstício
onde a percepção se refracta


Pelas imagens
entramos em diálogo
com o indizível



ANA HATHERLY
O Pavão Negro
Assírio & Alvim
(2003)

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22.1.11

Dante Medina (Carta do vestido)






CARTA DEL VESTIDO




Señor,
mi amada quiere
que le compre un vestido.
¿Tú qué opinas?


Yo sé que se lo merece
(no es eso lo que te estoy preguntando)


Ni tampoco quiero consejo de ti
sobre asuntos de moda en los que Tú muy atrasado te quedaste


¿Para qué entonces te escribo?
¿No lo adivinas Tú que eres Dios y fabricas el futuro?


Oh Dios, es muy simple,
y hasta pena me da molestarte
con tan poca cosa
a Ti que tienes tantas guerras desatendidas en el mundo


Lo del vestido voy y lo compro y ya
lo compro como sea y nomás que parezca bonito
y ya ni te molesto con preguntarte
Tú que opinas de que compre un vestido


De lo que se trata es
de que no tengo amada


Y eso sí que quería preguntarte
-aunque empecé con la pregunta del vestido
que es la que viene luego, normalmente-
¿Cómo le hace uno para que lo amen?


De todos modos, te ruego me contestes
con algún consejo sobre el vestido
por si algún día me puede servir


No dejes, Dios, que pierda las esperanzas.



Dante Medina



[Apologia de la luz]





Senhor,
a minha amada quer
que lhe compre um vestido.
Tu que dizes?


Eu sei que o merece
(não é isso que pergunto)


Nem quero tão pouco conselho
sobre assuntos de moda em que tu ficaste lá muito para trás


Para que te escrevo então?
Não adivinhas tu que és Deus e fabricas o futuro?


Ó Deus, é muito simples,
e até me custa incomodar-te
por tão pouco
a ti que tantas guerras tens desatendidas neste mundo


Lá o vestido compro-o eu
como ele for desde que seja bonito
e já não te incomodo a perguntar
tu que dizes de eu comprar um vestido


Do que se trata é
que eu não tenho amada


Isto sim é que eu queria perguntar-te
– embora começasse com a pergunta do vestido
que normalmente viria depois –
Como é que se faz para que nos amem?


De todo o modo, rogo me respondas
com algum conselho sobre o vestido
que algum dia me pode servir


Não me deixes, meu Deus, perder as esperanças.



(Trad. A.M.)



>>  Dante Medina (sítio pessoal)


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21.1.11

Alexandre O'Neill (Gaivota)






GAIVOTA



Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.


Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.


Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.


Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.


Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.


Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.



Alexandre O’Neill


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20.1.11

Alda Merini (Menino)






BAMBINO




Bambino, se trovi l'aquilone della tua fantasia
legalo con l'intelligenza del cuore.
Vedrai sorgere giardini incantati
e tua madre diventerà una pianta
che ti coprirà con le sue foglie.
Fa delle tue mani due bianche colombe
che portino la pace ovunque
e l'ordine delle cose.
Ma prima di imparare a scrivere
guardati nell'acqua del sentimento.



Alda Merini






Menino, se achares o papagaio da tua fantasia
prende-o com a inteligência do coração.
Verás aparecer jardins encantados
e a tua mãe far-se-á uma planta
para te cobrir com as folhas.
De tuas mãos faz brancas pombas
para levar a paz a toda a parte
assim como a ordem das coisas.
Mas olha-te na água do sentimento
antes de aprenderes a escrever.


(Trad. A.M.)


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19.1.11

Luis Alberto de Cuenca (Os dedos da aurora)






LOS DEDOS DE LA AURORA




Entraban en mi alcoba sin llamar a la puerta,
deshojando en el aire la flor de su perfume.
Los oía arrastrarse, leves, hasta la alfombra.
Trepaban a la cama y luego, entre las sábanas,
me anunciaban el día con sutiles caricias.


Luis Alberto de Cuenca





Entravam-me no quarto sem bater à porta,
desfolhando no ar a flor do seu perfume.
Ouvia-os arrastar-se, leves, até ao tapete.
Trepavam à cama e depois, entre lençóis,
anunciavam-me o dia com carícias subtis.


(Trad. A.M.)

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18.1.11

Daniel Jonas (Grotto)





GROTTO




Não quero nada claro ou helénico.
Prefiro turbinas de aviões comerciais, a sua fuligem
doméstica
às velas de alabastro do veleiro de Ulisses
lá em mar alto.
Prefiro o eclipse a Calipso.
Não quero nada de verdadeiramente branco.
Dispenso a asa delta de garças,
o seu voo aerodinâmico,
troco-o pela arribação de ratos no esgoto,
a sua pressa chinesa,
o seu stress pós-traumático:
orgulham-me criaturas tão limpas.
Assim também recuso o papel branco:
trato de o desfigurar
com sangue negro, como se desfigura
um branco em Harlem.
Não quero começar a imaginar como se sentiriam
escravos nos campos de algodão.



Daniel Jonas

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17.1.11

Sophia de Mello Breyner Andresen (Neste dia de mar e nevoeiro)






Neste dia de mar e nevoeiro
É tão próximo o teu rosto


São os longos horizontes
Os ritmos soltos dos ventos
E aquelas aves
Que desde o princípio das estações
Fizeram ninhos e emigraram
Para que num dia inverso tu as visses


Aquelas aves que tinham
uma memória eterna do teu rosto
E voam sempre dentro do teu sonho
Como se o teu olhar as sustentasse




Sophia de Mello Breyner Andresen



[Corte na Aldeia]


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Leopoldo María Panero (Haiku)






HAIKU




Si no es ahora ¿cuándo moriré?
Si no es ahora que me he perdido en medio
del camino de mi vida, y voy
preguntando a los hombres quién soy, y
para qué mi nombre, si no es ahora
¿cuándo moriré?
Si no es ahora que aúllan los lobos a mi puerta
si no es ahora que aúllan los lobos de la muerte
si no es ahora que está como caído
mi nombre al pie de mí, y boquea, y pregunta
a Dios por qué nací: si no es ahora
¿cuándo moriré?


Leopoldo María Panero



[Neorrabioso]







Se não agora, quando morrerei?
Se não agora, que me perdi a meio
do caminho da minha vida, e vou
perguntando aos outros quem sou e
para que serve meu nome, se não agora,
quando morrerei?
Se não agora, que uivam os lobos à minha porta,
se não agora, que uivam os lobos da morte,
se não agora, que está como caído
meu nome junto a mim, exangue, e pergunta
a Deus por que nasci: se não agora,
quando morrerei?


(Trad. A.M.)


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16.1.11

Fernando Pessoa / R. Reis (Nada fica de nada)






Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.


Leis feitas, estátuas vistas, odes findas-
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.



Ricardo Reis


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José Rentes de Carvalho (Os barcos da pesca)






Os barcos da pesca, tábuas frágeis puxadas a remo, apareciam um momento no vazio das ondas, depois na crista, ora a pique ou então de proa para cima como se fossem voar, bamboleando naquela contradança de vento e água.

Os homens que não remavam víamo-los em pé, num equilíbrio impossível, fazendo contrapeso.

Ou então agachados, presos ao rebordo, recebendo nas costas as pancadas do mar, às vezes pegando num remo a dois, a deitar a mão ao companheiro que fraquejava.

De través, às arrecuas ou de proa, ganhando metros, perdendo metros, os barcos iam-se aproximando da praia cheios de cautela, os olhos dos homens atentos à corrente.

Por fim, à força de braço, de jeito e orações, aproveitando uma onda mais mansa, deixavam-se levar por ela e encalhavam no areal.



- J. RENTES DE CARVALHO, Ernestina, Ed. Escritor, Lx. 2001, p. 162.

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15.1.11

Pepe Ramos (Ausência de ti n.º 15)





AUSENCIA DE TI Nº 15


Que se te muera el perro.
Que te deje de hablar la peña
y que tu hermana
vuelva a la secta.
Que te despidan.
Que te escriban puta en el coche,
que tu madre se haga ludópata,
que te fallen los frenos y la píldora,
que tengas resaca siempre
y que no me olvides nunca.


PEPE RAMOS
La Copa Rota
Ed. Línea de Fuego
(1999)

[.ensilencio.]




Que te morra o cão.
Que a malta deixe de falar-te
e tua irmã volte
para a seita.
Que sejas despedida no emprego.
Que te escrevam no carro ‘puta’,
que tua mãe apanhe o vício do jogo,
que te faltem os travões e a pílula,
que tenhas ressaca sempre
e que não me esqueças nunca.


(Trad. A.M.)



>>   Pepe Ramos Online  /  Las afinidades electivas


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Albano Martins (Cedo ou tarde)






CEDO OU TARDE




Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre. E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.


Albano Martins


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14.1.11

Carlos Drummond de Andrade (Procura da poesia)






PROCURA DA POESIA



   (...)
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.


Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
   (...)


Carlos Drummond de Andrade


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León Felipe (Espanhóis)






Españoles:
el llanto es nuestro
y la tragedia también,
como el agua y el trueno de las nubes.
Se ha muerto un pueblo
pero no se ha muerto el hombre.
Porque aún existe el llanto,
el hombre está aquí de pie,
de pie y con su congoja al hombro,
con su congoja antigua, original y eterna,
con su tesoro infinito
para comprar el misterio del mundo,
el silencio de los dioses
y el reino de la luz.
Toda la luz de la Tierra
la verá un día el hombre
por la ventana de una lágrima...
Españoles,
españoles del éxodo y del llanto:
levantad la cabeza
y no me miréis con ceño,
porque yo no soy el que canta la destrucción
sino la esperanza.



León Felipe







Espanhóis:
é nosso o pranto
e a tragédia também,
como a água das nuvens e o trovão.
Matou-se um povo
mas não se matou o homem.
Porque existe ainda o pranto,
o homem está aí de pé,
de pé e com a angústia às costas,
sua angústia antiga, eterna e original,
com seu tesouro infinito
para comprar o mistério do mundo,
o silêncio dos deuses,
o reino da luz.
Toda a luz da Terra
há-de vê-la o homem um dia
pela janela duma lágrima...
Espanhóis,
espanhóis do êxodo e do pranto:
levantai a cabeça
e não me olheis de través,
que eu não canto a destruição
mas a esperança.


(Trad. A.M.)


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13.1.11

Olhar (89)


 








Cotovia

(Sesimbra)

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Ruy Belo (Na praia)






NA PRAIA




Raça de marinheiros que outra coisa vos chamar
senhoras que com tanta dignidade
à hora que o calor mais apertar
coroadas de graça e majestade
entrais pela água dentro e fazeis chichi no mar?



Ruy Belo


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12.1.11

Karmelo C. Iribarren (O que não é pouco)






LO QUE NO ES POCO



De que soy el hombre más feliz
del mundo, nada,
ni trato de parecerlo.
Soy un hombre de 35 tacos,
del montón,
ni muy guapo ni tampoco un disparate,
que vive más o menos bien
ahora, sólo más o menos
bien, ahora
que ha pasado del trinque
y demás historias para no dormir
en las que estuvo metido
hasta las cejas
cerca de quince años.

                                       Ese soy yo.
De feliz, nada. Acaso
moderadamente
en paz conmigo
mismo
a veces.
                           Lo que no es poco.



Karmelo C. Iribarren


[Escrito en el viento]





De ser o homem mais feliz
do mundo, nada,
nem trato de o parecer.
Sou um homem de 35 anos,
do monte comum,
nem muito belo nem horrível tão pouco,
que vive mais ou menos
agora, só mais ou menos,
agora que passou do trinque
e mais histórias de não dormir
em que esteve metido
até às orelhas
durante cerca de quinze anos.

                                             Eu sou esse.
De feliz, nada. Porventura
moderadamente
em paz comigo
mesmo
às vezes.
                           O que não é pouco.



(Trad. A.M.)


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Mario Quintana (Elegia)






ELEGIA




Há coisas que a gente não sabe nunca o que fazer com elas…
Uma velhinha sozinha numa gare.
Um sapato preto perdido do seu par: símbolo
da mais absoluta viuvez.
As recordações das solteironas.
Essas gravatas
de um mau gosto tocante
que nos dão as velhas tias.
As velhas tias.
Um novo parente que se descobre.
A palavra “quincúncio”.
Esses pensamentos que nos chegam de súbito
nas ocasiões mais impróprias.
Um cachorro anónimo que resolve ir seguindo a gente
pela madrugada na cidade deserta.
Este poema, este pobre poema
sem fim…



Mario Quintana


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11.1.11

Manuel de Freitas (Café Santa Cruz)






CAFÉ SANTA CRUZ




Se queres ver os tritões
- ou, se preferires, as sereias –
nos três vitrais da entrada,
deves chegar a meio da tarde
e obrigar-te a não ter pressa.
Em Coimbra morre-se devagar. É bom.


Conheci poucos lugares onde
reinasse assim o esplendor do incomum.
Cada mesa tão diferente da outra:
um pintor rústico que faz dos dedos
pincéis, dois namorados que já saíram,
com a pressa física do amor,
o velho reformado que lê pela décima vez
o jornal da véspera – ou ainda o que
regista envergonhado estes versos.
Desiguais abismos, maneiras de se
se estar só, encontram aqui um abrigo
temporário, senão a própria rasura do tempo.


Pouco importa. Abandona-te, finalmente,
ao sortilégio mudo de sereias
ou tritões. É tudo o que precisas.
Uma música feliz perde-se na tarde
e as lágrimas, afinal, são uma espécie de sorriso.



MANUEL DE FREITAS
Juros de Demora
(Assírio & Alvim)



[Arquivo de cabeceira]


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Juan Luis Panero (Memória da carne)






MEMORIA DE LA CARNE




Por la noche, con la luz apagada,
miraba a través de los cristales,
entre los conocidos huecos de la persiana.
Como un rito o una extraña costumbre
la escena se repetia, día tras día,
igual siempre a si misma.
Frente a frente su ventana,
la veía aparecer y bajo la tenue claridad de la luz,
lentamente, irse haciendo desnuda.
Sus ropas caían sobre la silla,
primero grandes, luego más pequeñas,
hasta llegar al ocre color de su cuerpo.
Andando o sentada, sus movimientos tenían
la inútil inocência del que no se cree observado
y la imprevista ternura del cansancio.
Cuando todo volvía a la oscuridad,
los apresurados golpes del corazón
se aquietaban con una sosegada plenitud.
De quien así ocultamente deseé,
nunca supe su nombre
y el romper de su risa es aún el vacío.
Sin embargo allí, en la perdida frontera de los catorce anos,
por encima del Latín imposible
y de los misteriosos números de la Química,
el temblor detenido de mis manos,
la turbia fijeza de mis ojos sobre ella, permanecen,
dando fe de aquel tiempo, memoria de la carne.



Juan Luis Panero






À noite, de luz apagada,
olhava através dos vidros,
por entre os buracos da persiana.
Como um rito ou estranho costume
a cena repetia-se, dia após dia,
sempre igual a si mesma.
Face a face com a janela,
via-a aparecer e à ténue claridade da luz,
lentamente, começar a despir-se.
As roupas iam caindo na cadeira,
primeiro grandes, depois mais pequenas,
até chegar ao ocre cambiante do seu corpo.
A andar ou sentada, os seus movimentos tinham
a inútil inocência de quem não se crê observado
e a imprevista ternura do cansaço.
Quando tudo voltava ao escuro,
o bater apressado do coração
sossegava numa quieta plenitude.
De quem assim ocultamente desejei
jamais soube o nome
e o quebrar do seu riso é ainda o vazio.
Contudo, ali, na fronteira perdida dos catorze anos,
por cima do Latim impossível
e dos misteriosos números da Química,
o tremor parado das minhas mãos,
a turva fixidez dos meus olhos sobre ela, permanecem,
testemunho desse tempo, memória da carne.



(Trad. A.M.)

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10.1.11

Coitado do Jorge (65)






CORPO DE DELITO





Incrível:


Versinhos, a fazer tagatés à Monica...

É preciso tomar providências!


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Margaret Atwood (Habitação)






HABITATION



Marriage is not
a house or even a tent

it is before that, and colder:

The edge of the forest, the edge
of the desert
the unpainted stairs
at the back where we squat
outside, eating popcorn

where painfully and with wonder
at having survived even
this far

we are learning to make fire


Margaret Atwood




Casamento não é
uma casa, sequer uma tenda

é antes disso, e mais frio:

A orla da mata,
ou do deserto,
as escadas toscas
na traseira onde nos agachamos
cá fora, a comer pipocas

onde dolorosamente e pasmados
por termos sobrevivido
até aqui

estamos aprendendo a fazer a fogueira


(Trad. A.M.)


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9.1.11

Juan Gelman (Sobre a poesia)






SOBRE LA POESÍA



habría un par de cosas que decir/
que nadie lee mucho/
que esos nadie son pocos/
que todo el mundo está con el asunto de la crisis mundial/ y


con el asunto de comer cada día/se trata
de un asunto importante/ recuerdo
cuando murió de hambre el tío juan/
decía que ni se acordaba de comer y que no había problema/


pero el problema fue después/
no había plata para el cajón/
y cuando finalmente pasó el camión municipal a llevárselo
el tío juan parecía un pajarito/


los de la municipalidad lo miraron con desprecio o desdén/
murmuraban
que siempre los están molestando/
que ellos eran hombres y enterraban hombres/ y no
pajaritos como el tío juan/ especialmente


porque el tío estuvo cantando pío-pío todo el viaje
hasta el crematorio municipal/
y a ellos les pareció un irrespeto y estaban muy ofendidos/
y cuando le daban un palmetazo para que se callara la boca/
el pío-pío volaba por la cabina del camión y ellos sentían que
les hacía pío-pío en la cabeza/el
tío juan era así/ le gustaba cantar/
y no veía por qué la muerte era motivo para no cantar/
entró al horno cantando pío-pío/salieron sus cenizas y piaron un rato/
y los compañeros municipales se miraron los zapatos grises de vergüenza/pero


volviendo a la poesía/
los poetas ahora la pasan bastante mal/
nadie los lee mucho/esos nadie son pocos/
el oficio perdió prestigio/para un poeta es cada día más difícil


conseguir el amor de una muchacha/
ser candidato a presidente/que algún almacenero le fíe/
que un guerrero haga hazañas para que él las cante/
que un rey le pague cada verso con tres monedas de oro/


y nadie sabe si eso ocurre porque se terminaron
las muchachas/los almaceneros/los guerreros/los reyes/
o simplemente los poetas/
o pasaron las dos cosas y es inútil
romperse la cabeza pensando en la cuestión/


lo lindo es saber que uno puede cantar pío-pío
en las más raras circunstancias/
tío juan después de muerto/yo ahora
para que me quierás



Juan Gelman



[Apologia de la luz]






havia umas quantas coisas a dizer/
que ninguém lê muito/
que esses ninguém são poucos/
que todo o mundo está no assunto da crise mundial/ e


no assunto de comer cada dia/ trata-se
de um assunto importante/ recordo
quando morreu de fome o tio juan/
dizia que nem se lembrava de comer, que não havia problema/


mas o problema foi a seguir/
não havia dinheiro para o caixão/
e quando passou finalmente o camião municipal para o levar
o tio juan parecia um passarinho/


os do município olharam para ele com desprezo ou desdém/
murmuravam
que estão sempre a incomodá-los/
que sendo eles homens enterravam homens/ e não
passarinhos como o tio juan/ especialmente


porque o falecido foi a cantar piu-piu toda a viagem
até ao crematório/
o que a eles pareceu uma falta de respeito, estavam muito ofendidos/
e quando lhe davam uma palmada para calar a boca/
o piu-piu voava pela cabina do camião e eles sentiam que
a cabeça lhes fazia piu-piu/ o
tio juan era assim/ gostava de cantar/
e não via por que seria a morte motivo para não cantar/
entrou pelo forno a cantar piu-piu/ as cinzas ao sair ainda piaram um bocado/
e os do município a olhar para os sapatos com vergonha/ mas


voltando à poesia/
os poetas agora estão passando bastante mal/
ninguém os lê muito/ são poucos esses ninguém/
o ofício perdeu prestígio / e para um poeta é cada dia mais difícil


conseguir o amor de uma donzela/
candidatar-se a presidente/ comprar fiado no armazém/
arranjar um guerreiro para lhe cantar as façanhas/
ou pagar-lhe o rei cada verso a três vinténs/


e ninguém sabe se tal acontece porque acabaram
as donzelas/ os armazéns / os guerreiros/ os reis/
ou simplesmente os poetas/
ou então isso tudo e não adianta
quebrar a cabeça a pensar no assunto/


bonito é saber que a gente pode cantar piu-piu
nas mais estranhas circunstâncias/
tio juan por exemplo depois de morto/ ou eu agora
aqui para que me queiram



(Trad. A.M.)

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Manuel António Pina (Os olhos)






OS OLHOS




O rosto que olha para trás,
o lado de fora do visível,
existe este rosto ou é apenas,
diante da infância, o olhar que se contempla?


Em ti, noite,
reclino a cabeça.
O que eu fui sonha,
e eu sou o sonho;


alguma coisa que pertence
a um desconhecido que morreu
que outro desconhecido (é este o meu rosto?)
fora da infância infinitamente pense.



Manuel António Pina


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8.1.11

Armando Silva Carvalho (Um boi bate)






Um boi bate
nas pedras


o sapateiro
na sola


e a mulher
no filho.


Mas todos
estão batendo
no silêncio.



Armando Silva Carvalho



>>  DGLB (bio+biblio+linques)  /  Poesias e prosas (3p)

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Juan Carlos Mestre (Quando o amor acaba)






Cuando el amor se termina no queda nadie que traiga flores los sábados
Las botellas de Lambrusco dejan de hacer ¡plop!
Las deliciosas películas de arte y ensayo se vuelven aburridas
Nadie te regala calcetines por Pascua, nadie te pone el termómetro
Cuando un amor se termina dan las diez un cuarto de hora antes
Las estrellas comienzan a acumular un retraso considerable
Las gatas dejan plantado al párroco en los tejados
Las luces indirectas enfocan directamente los portarretratos
Cambias los muebles de sitio, ordenas la biblioteca
Aparece la lupa, encuentras los comprobantes de la tintorería
Las cajeras del supermercado te empiezan a sonreír de otra manera
Los cuervos marinos se vuelven palomas mensajeras
Se acabó el azúcar, echas mano del edulcorante
Te paran todos los taxis, vas derecho al motel de las metáforas
Tocan el timbre, el cartero te deja un certificado para la vecina
Llaman por teléfono, otra vez la noche se ha equivocado de número


Juan Carlos Mestre





Quando o amor termina não resta ninguém para trazer flores ao sábado
As garrafas de Lambrusco deixam de fazer plop!
Os deliciosos filmes de arte e ensaio tornam-se aborrecidos
Ninguém nos oferece peúgas pela Páscoa, nem nos põe o termómetro
Quando um amor termina as dez batem antes um quarto de hora
As estrelas começam a acumular um atraso considerável
As gatas deixam o pároco plantado no telhado
As luzes indirectas focam-se directamente nos porta-retratos
Trocamos os móveis de sítio, arrumamos a biblioteca
A lupa aparece, achamos a factura da tinturaria
As meninas do supermercado começam-nos a sorrir de outra maneira
Os corvos marinhos tornam-se pombos correio
Se acaba o açúcar, lançamos mão do adoçante
Param-nos os táxis todos, vamos direitinhos ao motel das metáforas
Tocam à campainha, o carteiro deixa-nos um aviso para a vizinha
Toca o telefone, lá se enganou a noite outra vez no número


(Trad. A.M.)

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7.1.11

Manuel Alegre (Apresentação)






APRESENTAÇÃO




Cantar não é talvez suficiente.
Não porque não acendam de repente as noites
tuas palavras irmãs do fogo
mas só porque as palavras são
apenas chama e vento.
E contudo canção
só cantando por vezes se resiste
só cantando se pode incomodar
quem à vileza do silêncio nos obriga.


Eu venho incomodar.
Trago palavras como bofetadas
e é inútil mandarem-me calar
porque a minha canção não fica no papel.
Eu venho tocar os sinos.
Planto espadas
e transformo destinos.
Os homens ouvem-me cantar
e a pele
dos homens fica arrepiada.
E depois é madrugada
dentro dos homens onde ponho
uma espingarda e um sonho.


E é inútil mandarem-me calar.
De certo modo sou um guerrilheiro
que traz a tiracolo
uma espingarda carregada de poemas
ou se preferem sou um marinheiro
que traz o mar ao colo
e meteu um navio pela terra dentro
e pendurou depois no vento
uma canção.


Já disse: planto espadas
e transformo destinos.
E para isso basta-me tocar os sinos
que cada homem tem no coração.



Manuel Alegre


[Silva]


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Manuel Bandeira (O último poema)






O ÚLTIMO POEMA




Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.



Manuel Bandeira

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6.1.11

Juan Antonio González Iglesias (You light up my life)






YOU LIGHT UP MY LIFE




Aristóteles dice: un cuerpo bello
debe ser percibido en su totalidad.
Así te vi llegar esta mañana.
Venías de correr una hora en bici
por la orilla del río. Te duchaste.
Estuvimos nadando juntos. Varios
largos en la piscina transparente.
Nos amamos después, enamorados
de ser distintos y de ser iguales.
Por la tarde estudiabas o leías.
Te vi algunos instantes. Pero ahora
que duermes a mi lado respirando
desnudo en el calor de junio, a oscuras,
creo que el filósofo no se refiere
sólo a la epifanía en el espacio,
al golpe único de la materia,
sino también al cuerpo hecho de tiempo,
a la suma sencilla de momentos
que queda para siempre en el registro
general de los días de este mundo.
Aristóteles dice: un cuerpo bello
debe ser percibido en su totalidad.


J. A. González Iglesias







Aristóteles diz: um corpo belo
deve ser percebido na sua totalidade.
Assim te vi eu chegar esta manhã.
Vinhas de fazer uma hora de bicicleta
pela margem do rio. Tomaste duche.
Fomos nadar juntos. Vários
comprimentos na piscina transparente.
Amámo-nos depois, apaixonados
por sermos diferentes e iguais.
Pela tarde estudavas ou lias.
Olhei-te por instantes. Mas agora
que dormes a meu lado respirando
nu pelo calor de Junho, às escuras,
creio que o filósofo não se refere
só à epifania no espaço,
ao golpe único da matéria,
mas também ao corpo feito de tempo,
a soma simples de momentos
que fica para sempre no registo
geral dos dias deste mundo.
Aristóteles diz: um corpo belo
deve ser percebido na sua totalidade.


(Trad. A.M.)

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José Carlos Barros (Rendo-me à subjectividade)






rendo-me à subjectividade.
de que outro modo escrever relatórios
num país de poetas?
quando digo pedra todos compreendem nuvem
quando digo nuvem todos compreendem pedra.
rendo-me enfim à subjectividade:
escrevo nuvem porque quero dizer pedra
sabendo que todos lêem pedra
quando escrevo nuvem.



José Carlos Barros




[Casa de Cacela]


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