13.11.10

José Gomes Ferreira (Na morte de Manuela Porto)






(Na morte de Manuela Porto)*




Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos
do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs,
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão
de convite para o ritual do Grande Desfazer:

“Fulano de tal comunica ao mundo que vai transformar-se
em nuvem hoje, às 9 horas. Traje de passeio”.

E então, solenemente, com passos de reter tempo,
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia,
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. “Adeus! Adeus!”
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida , os lábios... depois os cabelos...)
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo...
tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?)
- nesta tarde de outono ainda tocada por um vento
de lábios azuis...



José Gomes Ferreira



(*)  Infopedia

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