30.9.10

José Luis García Martín (A ameaça)






LA AMENAZA




La dorada basura de los años
me ha ido acostumbrando a vivir entre sueños;
ninguna sonrisa se desvanece en mi memoria;
los ojos que una vez me miraron
incitantes o quizá sin verme
siguen fijos para siempre en mí;
una amable palabra distraída
para todo el invierno enciende un fuego;
cualquier borroso amor
que apenas si llega a ser amor
se transforma en un árbol inmenso cuyas ramas
me protegen del sol inclemente.
Piedra a piedra he construido una casa
sin puertas ni ventanas,
un jardín
del tamaño del mundo,
una celda
donde me encierro con todas las cosas que amo.


Algunas noches salgo,
bien protegido el corazón,
en busca del botín: un pretexto,
un mínimo pretexto adolescente,
para seguir soñando.
Y esta mañana
al despertar
atónito comprendo
que sigues sonriendo entre mis brazos.
Tú no eres un sueño, estoy perdido.



JOSÉ LUIS GARCIA MARTIN
Principios y finales
(1997)






O lixo dourado dos anos
foi-me habituando a viver por entre sonhos;
nenhum sorriso se me desvanece na memória;
os olhos que uma vez me olharam
estimulantes ou talvez sem me verem
continuam fixos em mim para sempre;
uma distraída palavra amável
acende a fogueira para o Inverno todo;
um qualquer amor incipiente
que mal chega a ser amor
transforma-se numa árvore imensa
cujos ramos
me protegem da inclemência do sol.
Pedra a pedra construí uma casa
sem portas nem janelas,
um jardim
do tamanho do mundo,
uma cela
onde me encerro com todas as coisas
que amo.


Algumas noites saio,
coração bem protegido,
buscando o botim: um pretexto,
um mínimo pretexto adolescente,
para continuar sonhando.
E esta manhã
ao despertar
atónito compreendo
que continuas sorrindo nos meus braços.
Não és um sonho, tu, estou perdido.


(Trad. A.M.)

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A.M.Pires Cabral (De volta a casa)






DE VOLTA A CASA




De volta a casa, repetes os gestos
adequados ao lugar donde jamais
devias ter saído.


Mas a casa já não tem
os ecos de antigamente.
Já não responde, já não abriga,
já são só paredes sem sentido.


Tudo mudou, percebes?, e és agora
um sem-abrigo abrigado
na tua própria casa.


Um filho pródigo para cujo regresso
o pai não matou o melhor cabrito.



A.M. Pires Cabral

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29.9.10

Vinicius de Moraes (Eu sei que vou te amar)







Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida, eu vou te amar
Em cada despedida, eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar


E cada verso meu será
Pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida


Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua, eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta tua ausência me causou


Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida


Vinicius de Moraes

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José Ángel Barrueco (A felicidade era isso)






ESO ERA LA FELICIDAD




Nosotros en la cocina,
riendo y conspirando
contra el tirano


Un vinilo despidiendo rock a todo volumen
en el salón lleno de antigüedades


La lectura sobre una mecedora,
con el gato sentado en las piernas,
ronroneando feliz, como nosotros


Las películas y las series y los dibujos animados,
compartidos entre los hermanos y a veces la madre


La visita de mis primos,
que se iban antes de su aparición,
y nuestras conversaciones trufadas de bromas


La libertad del felino, que rondaba sin miedo por casa
mientras nosotros disfrutábamos de su compañía y del sosiego


Pero entonces llegaba él.



José Ángel Barrueco






Nós na cozinha,
a rir, conspirando
contra o tirano


Um disco de vinil soltando rock no máximo
no salão cheio de antiguidades


A leitura numa cadeira de baloiço
com o gato nas pernas,
ronronando feliz, tal como nós


Os filmes e as séries e os desenhos animados,
compartilhados entre os irmãos e às vezes a mãe


A visita dos meus primos,
que saíam antes de ele chegar,
e as nossas conversas cheias de brincadeiras


A liberdade do felino, que rondava sem medo pela casa
enquanto nós gozávamos da sua companhia e do sossego


Mas então chegava ele.



(Trad. A.M.)

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28.9.10

Ruy Belo (Literatura explicativa)






LITERATURA EXPLICATIVA





O pôr-do-sol em espinho não é o pôr-do-sol
nem mesmo o pôr-do-sol é bem o pôr-do-sol
É não morrermos mais é irmos de mãos dadas
com alguém ou com nós mesmos anos antes
é lermos leibniz conviver com os medici
onze quilómetros ao sul de florença
sobre restos de inquietação visível em bilhetes de eléctrico
Há quanto tempo se põe o sol em espinho?
Terão visto este sol os liberais no mar
ou antero de junto da ermida?
O sol que aqui se põe onde nasce? A quem
passamos este sol? Quem se levanta onde nos deitamos?
O pôr-do-sol em espinho é termos sido felizes
é sentir como nosso o braço esquerdo
Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém
mulheres recortadas nas vidraças
oliveiras à chuva homens a trabalhar
coisas todas as coisas deixadas a si mesmas
Não mais restos de vozes solidão dos vidros
não mais os homens coisas que pensam coisas sozinhas
não mais o pôr-do-sol apenas pôr-do-sol



Ruy Belo



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Paulo Leminski (Um bom poema)






um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto


Paulo Leminski



>>  Kamiquase (sítio of: tudo+algo)  /  Paulo Leminski (blogue / 75p)  /  Jornal de Poesia  (50p+bio+biblio+crítica)  /  Arlindo Correia (21p)  /  António Miranda (antologia / port. cast. ingl.)  /  Wikipedia


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27.9.10

Javier Das (O desejo)






EL DESEO




Coge el coche,
te invito
a escuchar
un disco nuevo
que me he comprado.
Y de paso,
si quieres,
cenamos en algún
bar de carretera,
en el que quieras,
di un kilómetro
y nos paramos.
Seguro que allí
no hay tanta luz,
y con un poco de suerte,
si la noche está despejada,
podremos ver las estrellas.
Creo que si lo pienso
nunca he visto una estrella
fugaz.
Y tal vez ese sea el problema
en todo esto,
que nunca he podido
formular
mi deseo.


Javier Das






Pega no carro,
convido-te
para ouvir
um disco novo
que comprei.
E aproveitamos,
se quiseres,
jantamos num
bar de estrada,
onde quiseres,
fazemos uns quilómetros
e paramos.
Ali de certeza
haverá menos luz
e com um bocadinho de sorte,
estando a noite limpa,
poderemos ver as estrelas.
Agora que penso nisso,
creio que nunca vi
uma estrela cadente.
E talvez seja esse o problema
nisto tudo,
nunca ter podido
formular
o meu desejo.


(Trad. A.M.)

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Jorge Carvalheira (Nada sabemos, por enquanto)






Por enquanto nada sabemos do destino do homem que ali vai, em extremo concentrado no andamento das passadas que dá.

Vemos que marcha atento e cabisbaixo, no gesto de quem poupa energias.

Porém não tão atento que perca de vista o andador que lhe vai na dianteira, obra de poucos metros, nem tão pouco que possa este limpo luar de Fevereiro lavar-lhe de sombras a barbada face.

Nada sabemos, e dobrada razão é essa para atentarmos no leve pormenor, na mesquinha minúcia.



- JORGE CARVALHEIRA, As aves levantam contra o vento, Quasi Ed., 2007, início.




>>   Olhe que não (análisa da obra: J.Vasco)  /   Ladrar à lua (blogue do autor)


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26.9.10

Raymond Carver (A que tem estado à espera)






A QUE TEM ESTADO À ESPERA




Deixa a auto-estrada e desce a colina.
Uma vez em baixo, vira à esquerda.
Continua em direcção à esquerda.
A estrada faz um Y.
De novo à esquerda.
Deixa à esquerda uma enseada.
Continua na mesma direcção.
Mesmo antes de a estrada acabar,
verás outra estrada.
Toma essa, outra não...
Há uma casa de madeira com um telhado frágil
à esquerda.
Não é essa a casa. É a seguinte,
mesmo no alto...
É essa a casa onde está uma mulher à porta
com o sol a dar-lhe no cabelo.
A que tem estado à espera este tempo todo.
A mulher que te ama.
A que talvez te diga “onde é que te meteste?”.


Raymond Carver


(Trad. A.M.)



[Noctambulario]


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Iker Biguri (Tudo o que aprendi)






todo lo que he aprendido es farragoso
y me da miedo


todo lo que desconozco también


lo que sé y lo que ignoro
me obliga a permanecer en guardia


sólo puedo flotar inmóvil
feliz como si fuera nuevo
en los escasos segundos que transcurren
entre la intuición y el desastre



Íker Biguri







tudo o que aprendi é caótico
e me dá medo


o que desconheço também


aquilo que sei e o que não sei
obriga-me a manter-me em guarda


só imóvel posso bóiar
feliz como se fosse novo
nos escassos segundos que transcorrem
entre a intuição e o desastre



(Trad. A.M.)

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25.9.10

Ver (58)









-Imagens retiradas-


Nova Zelândia




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Nuno Júdice (Paciência)






PACIÊNCIA





Faz-se o amor como se fosse um castelo
de cartas. Copas, paus, ouros, espadas. Um equilíbrio
difícil. Negros sobre vermelhos, damas e valetes
no meio de reis e ases. Ponho uma carta
sobre a carta que tu puseste; e tu acrescentas
a essa ainda outra. Até onde? Nesse jogo, não
convém respirar com muita força; evitemos
os gestos bruscos, os que deitam tudo abaixo,
de súbito; e espreitemos o olhar de cada um de nós,
quando nos preparamos para fazer subir o castelo.



Assim, ponho a minha emoção sobre o sentimento
que me confessas. Não precisas de mo dizer;
basta que eu saiba que os teus dedos brincam
entre corações e manilhas; que a tua voz treme
quando o edifício se parece com um labirinto;
e que ambos descobrimos uma saída, para um lado ou outro
da toalha. Na mesa, com efeito, podem já
nascer as flores, cantar as aves que brotam
de uma ilusão de primavera, ou morrerem frases
e borboletas que esvoaçam numa corrente de ar.



Por que abriste a janela? Agoira que tudo caiu,
sem que um nem o outro tivéssemos feito alguma coisa
para isso, de quem é a culpa? Então,
aproveitemos este silêncio breve, enquanto a tarde
não chega, e recomecemos o jogo.



NUNO JÚDICE
A Fonte da Vida
(1997)


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24.9.10

Eloy Sánchez Rosillo (Caminho do silêncio)






CAMINO DEL SILENCIO





Y ahora cállate. No dejes que a tus labios
se asomen nunca más las palabras que hoy
has dicho por vez última. Guarda la voz
para tu soledad. Que tu trabajo
sea el silencio, el gozo o el dolor de callar
lo que las horas te dieran, lo que aprendiste
en los días luminosos que se fueron.



Eloy Sánchez Rosillo






E agora cala-te. Não deixes que aos lábios
te assomem jamais as palavras que hoje
disseste pela última vez. Guarda a voz
para a tua solidão. Que o teu labor
seja o silêncio, o gozo ou a dor de calar
o que te deram as horas, o que aprendeste
nos dias luminosos que se foram.


(Trad. A.M.)


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José Carlos Barros (O amor maior)






O AMOR MAIOR




por ti eu fazia tudo meu amor
eu candidatava-me às autárquicas
eu via um filme do zefirelli
eu até corria a
filha da puta da meia
maratona da nazaré
a pé coxinho


José Carlos Barros



[As folhas ardem]

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23.9.10

Gonçalo M. Tavares (Palavras, actos)






PALAVRAS, ACTOS




A ironia ensina a sabotar uma frase
Como se faz a um motor de automóvel:
Se retirares uma peça a máquina não anda, se mexeres
No verbo ou numa letra do substantivo
A frase trágica torna-se divertida,
E a divertida, trágica.
Este quase instinto de rasteirar as frases protegeu-me,
Desde novo, daquilo que ainda hoje receio: transformar
A linguagem num Deus que salve, e cada frase num anjo
Portador da verdade. Tirar seriedade ao acto da escrita
Aprendi-o na infância, tirar seriedade aos actos da vida
Comecei a aprender apenas depois de sair dela, e espero
Envelhecer aperfeiçoando esta desilusão.


Gonçalo M. Tavares


[As folhas ardem]

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David González (Pó de estrelas)






POLVO DE ESTRELLAS




A él se lo escuché:
al científico, al escritor:
a John Gibbin:

Básicamente, dijo,
somos polvo de estrellas.

Sí, repitió, eso es lo que
somos: polvo de estrellas.

Convendría no olvidarlo.
Tenerlo siempre presente.

Polvo.

No estrellas.


David González





Ouvi-lho a ele,
o cientista, o escritor,
John Gibbin:

Basicamente, afirmou:
somos pó de estrelas.

Sim, repetiu, é isso que
somos: pó de estrelas.

Convirá não esquecer,
tê-lo sempre presente.

Pó.

Não estrelas.


(Trad. A.M.)

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22.9.10

José Rentes de Carvalho (Deus criou o mundo)






Deus criou o mundo em Vila Nova de Gaia, numa tarde quente de Maio em 1930.

E eu, quando uns quatro anos depois comecei a observar conscientemente a Sua criação, não o fiz, como seria de esperar, apenas com os olhos que ele me tinha dado à nascença, mas quase exclusivamente através dum binóculo.

Esse irresistível e constante desejo de querer ver tudo de mais perto foi causa de grandes desesperos familiares, gritarias e alguns tabefes.

Minha mãe era obrigada a puxar às mãos ambas para me desgrudar da janela onde eu, horas imóvel a gozar a agitação do rio e do Porto, corria o risco de ficar raquítico.

Mas se me obrigavam a movimentar-me o perigo era ainda maior, porque poucos passos dava sem ter o aparelho apertado contra os olhos, perdendo-se a conta das vezes que caí por erro de cálculo ou pelo fascínio de ver que, sem dor, conseguia amputar as pernas e fazer com que os pés me saíssem do peito



- J. RENTES DE CARVALHO, Ernestina, Ed. Escritor, Lx. 2001, p. 9.



>>  J. Rentes Carvalho (sítio)  /  Eito Fora (entrevista)  /  Tempo contado (blogue)

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Manuel de Freitas (Duas vezes nada)






DUAS VEZES NADA




É assim, amiga. Encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente,
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.


Constatamos o pior, os seus aspectos.
Corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
De facto, crescemos em alcoolémia,
acordamos tarde, em pânico,
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
Não temos, ao que parece, serventia.


Sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte,
seus gestos de ternura ou de exuberância.
Talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.


Mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor,
o desejo, até o onanismo da destruição.
Antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:


não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas,
mas duas vezes nada, ninguém,
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.



Manuel de Freitas

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21.9.10

Rafael Alberti (Balada para los poetas andaluces de hoy)








BALADA PARA LOS POETAS ANDALUCES DE HOY




¿Qué cantan los poetas andaluces de ahora?
¿Qué miran los poetas andaluces de ahora?
¿Qué sienten los poetas andaluces de ahora?


Cantan con voz de hombre, ¿pero dónde los hombres?
Con ojos de hombre miran, ¿pero dónde los hombres?
Con pecho de hombre sienten, ¿pero dónde los hombres?


Cantan, y cuando cantan parece que están solos.
Miran, y cuando miran parece que están solos.
Sienten, y cuando sienten parece que están solos.


¿Es que ya Andalucía se ha quedado sin nadie?
¿Es que acaso en los montes andaluces no hay nadie?
¿Que en los mares y campos andaluces no hay nadie?


¿No habrá ya quien responda a la voz del poeta?
¿Quien mire al corazón sin muros del poeta?
¿Tantas cosas han muerto que no hay más que el poeta?


Cantad alto. Oiréis que oyen otros oídos.
Mirad alto. Veréis que miran otros ojos.
Latid alto. Sabréis que palpita otra sangre.


No es más hondo el poeta en su oscuro subsuelo
encerrado. Su canto asciende a más profundo
cuando, abierto en el aire, ya es de todos los hombres.



Rafael Alberti




Que cantam os poetas andaluzes de agora?
Que olham os poetas andaluzes de agora?
Que sentem os poetas andaluzes de agora?


Cantam com voz de homem, mas onde os homens?
Com olhos de homem olham, mas onde os homens?
Com peito de homem sentem, mas onde os homens?


Cantam, e quando cantam parece que estão sós.
Olham, e quando olham parece que estão sós.
Sentem, e quando sentem parece que estão sós.


Será que Andaluzia ficou sem ninguém?
Acaso nos montes andaluzes não haverá ninguém?
Que nos mares e campos andaluzes não haverá ninguém?


Não haverá quem responda à voz do poeta?
Quem olhe para o coração sem muros do poeta?
Tantas coisas terão morrido que só ficou o poeta?


Cantai alto, ouvireis que ouvem outros ouvidos.
Olhai alto, vereis que olham outros olhos.
Lati alto, sabereis que palpita outro sangue.


Não é mais fundo o poeta em seu terrão escuro
enterrado. Seu canto se ergue mais profundo
quando, aberto no ar, é já de todos os homens.


(Trad. A.M.)



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Ferreira Gullar (Ovni)





OVNI




Sou uma coisa entre coisas
O espelho me reflete
Eu (meus
olhos)
reflito o espelho
Se me afasto um passo
o espelho me esquece:
– reflete a parede
a janela aberta
Eu guardo o espelho
o espelho não me guarda
(eu guardo o espelho
a janela a parede
rosa
eu guardo a mim mesmo
refletido nele):
sou possivelmente
uma coisa onde o tempo
deu defeito



Ferreira Gullar



[Bibliotecário de Babel]


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20.9.10

Ver (57)








[Diego Zapatero]

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Angel González (O Outono aproxima-se)






EL OTOÑO SE ACERCA




El otoño se acerca com muy poco ruido:
apagadas cigarras, unos grillos apenas,
defienden el reducto
de un verano obstinado em perpetuarse,
cuya suntuosa cola aún brilla hacia el oeste.
Se diría que aquí no pasa nada,
pero un silencio súbito ilumina el prodigio:
ha passado
un ángel
que se llamaba luz, o fuego, o vida.
Y lo perdimos para siempre.



Angel González





O Outono aproxima-se quase sem ruído:
apagadas cigarras, alguns grilos,
defendem o reduto
de um verão obstinado em perpetuar-se
cuja sumptuosa cauda ainda brilha lá para oeste.
Dir-se-ia que aqui não se passa nada,
mas um silêncio súbito ilumina o prodígio:
Passou
um anjo
que se chamava luz, ou fogo, ou vida.
E perdemo-lo para sempre.



(Trad. M.C.R.)

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19.9.10

Mario Quintana (Um poema)






UM POEMA?




No mundo não há nada mais triste do que uma boneca morta...
Talvez porque sua mãezinha tenha morrido de parto!
Ou encontrar um vestido de noiva numa casa de penhores
Ou começar cheio de rimas quando se escreve em prosa
Ou não encontrar rimas quando se escreve em verso
(Também, quem me mandou escrever clássico?!)
Bendita seja a Isadora Duncan, que inventou o verso livre da dança!
Só não sei,
Mesmo,
O que eu queria dizer com tudo isso...



MARIO QUINTANA
Velório sem defunto
(1990)

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Manuel António Pina (Luz)




LUZ



Talvez que noutro mundo, noutro livro,
tu não tenhas morrido
e talvez nesse livro não escrito
nem tu nem eu tenhamos existido


e tenham sido outros dois aqueles
que a morte separou e um deles
escreva agora isto como se
acordasse de um sonho que


um outro sonhasse (talvez eu),
e talvez então tu, eu, esta impressão
de estranhidão, de que tudo perdeu
de súbito existência e dimensão,


e peso, e se ausentou,
seja um sonho suspenso que sonhou
alguém que despertou e paira agora
como uma luz algures do lado de fora.


MANUEL ANTÓNIO PINA
Os Livros
Assírio & Alvim
(2003)


[Lugares Mal Situados]

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18.9.10

Ana Pérez Cañamares (Se eu dissesse)






SI DIJERA




Si dijera que nunca quise a nadie así
sería terriblemente injusta con el pasado y sus pobladores.
Si lo dijera sería de una precisión
cruel, innecesaria.
Pero lo digo: nunca quise a nadie así,
porque ser honesta está en mi temperamento
porque añoro la linealidad de las fórmulas
los índices de los libros de instrucciones.
Porque sé que te gusta
que resurja del lodo de las dudas
y juegue a ser diosa
que ha bajado del cielo a follarse a un humano.



ANA PÉREZ CAÑAMARES
La alambrada de mi boca
(2008)


[Escomberoides]








Se eu dissesse que nunca amei ninguém assim
seria terrivelmente injusta com o passado e seus povoadores.
Se o dissesse seria de uma precisão
cruel, desnecessária.
Mas digo: nunca amei ninguém assim,
porque a honestidade está-me no feitio
porque aprecio as fórmulas lineares
os índices dos livros de instruções.
Porque sei que tu gostas
que eu ressurja do lodo das dúvidas
e brinque a ser deusa
descida do céu para foder com humano.


(Trad. A.M.)

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17.9.10

Lawrence Durrell (Rua de meretrizes)






A rua era de terra barrenta e perfumada, doce depois da chuva, mas não húmida.

De ambos os lados havia casas de meretrizes cujos corpos de um mármore comovente se conservavam modestamente postados diante das suas respectivas portas, como no limiar de um santuário.

Sentavam-se em tripeças, colocadas em plena rua, como as pitonisas, os pés ocultos nas pantufas de cor viva.

A originalidade da iluminação dava a toda a cena as tintas de uma fábula eterna: em vez de ser iluminada do alto, toda a rua recebia a luz de uma série de lâmpadas de carbureto, de chama radiante, pousadas no chão, lançando irreais sombras violetas nas esquinas e sobre as empenas dessas casas de bonecas, nos olhos e nas narinas das locatárias, na submissa doçura dessas trevas de forro de casaco.



- LAWRENCE DURRELL, Justine (3.ª parte), trad. Daniel Gonçalves.


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Manoel de Barros (Desejar ser-9)






DESEJAR SER – 9





A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem
nos encantos de um sabiá.

Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar:
divinare.

Os sabiás divinam.



MANOEL DE BARROS
Compêndio para uso dos pássaros
(Poesia reunida 1937-2004)
Quasi Edições, 2007

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16.9.10

Amalia Bautista (Vamos fazer limpeza geral)






VAMOS A HACER LIMPIEZA GENERAL




Vamos a hacer limpieza general
y vamos a tirar todas las cosas
que no nos sirven para nada, esas
cosas que ya no utilizamos, esas
otras que no hacen más que coger polvo,
las que evitamos encontrarnos porque
nos traen los recuerdos más amargos,
las que nos hacen daño, ocupan sitio
o no quisimos nunca tener cerca.
Vamos a hacer limpieza general
o, mejor todavía, una mudanza
que nos permita abandonar las cosas
sin tocarlas siquiera, sin mancharnos,
dejándolas donde han estado siempre;
vamos a irnos nosotros, vida mía,
para empezar a acumular de nuevo.
O vamos a prenderle fuego a todo
y a quedarnos en paz, con esa imagen
de las brasas del mundo ante los ojos
y con el corazón deshabitado.


Amalia Bautista






Vamos fazer limpeza geral
e deitar fora todas as coisas
que não nos servem para nada, essas
coisas que já não usamos e as
outras que apenas acumulam pó,
as que evitamos encontrar porque
nos trazem lembranças mais amargas,
as que nos ferem ou ocupam espaço
ou nunca quisemos ter ao pé.
Vamos fazer limpeza geral
ou, melhor ainda, uma mudança
que nos permita abandonar as coisas
sem sequer as tocar, sem sujar-nos,
deixando-as onde sempre estiveram;
vamo-nos nós embora, vida minha,
para começar a juntar de novo.
Ou vamos pegar fogo a tudo
e ficar em paz, com a imagem
do braseiro do mundo diante dos olhos
e de coração desabitado.


(Trad. A.M.)

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Ver (56)











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15.9.10

José Miguel Silva (Penélope escreve)






PENÉLOPE ESCREVE





É mais que certo: não sinto a tua falta.
Fiquei a tarde toda a arrumar os teus papéis,
a reler as cinco cartas que me foste endereçando
na semana que perdemos: tu no Alentejo,
eu debaixo de água. Fui depois regar as rosas
que deixaste no quintal. Sempre só e sem
carpir o meu estado (porque não me fazes falta),
pus o disco da Chavela que me deste no Natal
e comecei a preparar o teu prato preferido.
Cozinhar fez-me perder o apetite; por isso
abri uma garrafa de maduro e não me custa
confessar-te que não sinto a tua falta.
Por volta das dez horas, obriguei-me a recusar
dois convites pra sair (aleguei androfobia)
e estou neste momento a recortar a tua imagem
(não me fazes falta) nas fotos que possuo de nós dois,
de maneira a castigar com o cesto dos papéis
a inábil idiota que deixou que tu te fosses.



JOSÉ MIGUEL SILVA
Ulisses já não mora aqui
& etc.

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Vicente Huidobro (Arte poética)






ARTE POETICA



Que el verso sea como una llave
que abra mil puertas.
Una hoja cae; algo pasa volando;
cuanto miren los ojos creado sea,
y el alma del oyente quede temblando.


Inventa mundos nuevos y cuida tu palabra;
el adjetivo, cuando no da vida, mata.


Estamos en el ciclo de los nervios.
El músculo cuelga,
como recuerdo en los museos;
mas no por eso tenemos menos fuerza:
el vigor verdadero
reside en la cabeza.


Por qué cantáis la rosa, ¡oh, Poetas!
Hacedla florecer en el poema.


Sólo para vosotros (*)
viven todas las cosas bajo el Sol.


El Poeta es un pequeño dios.



Vicente Huidobro






Que o verso seja tal uma chave
que abra mil portas.
Uma folha cai, algo passa a voar;
que seja criado quanto os olhos contemplem
e fique tremendo a alma de quem ouve.


Inventa mundos novos e apura tua palavra;
o adjectivo, quando não dá vida, mata.


Estamos no ciclo dos nervos.
O músculo pende,
como recordação nos museus;
mas nem por isso temos menos força,
o vigor verdadeiro
está na cabeça.


Por que cantais a rosa, ó Poetas?
Fazei-a antes florir no poema.


É só para vós que
vivem todas as coisas sob o Sol.


O Poeta é um pequeno deus.



(Trad. A.M.)



Outras versões: Antologia do esquecimento (HMBF)  /  António Miranda (idem)  /   Academia (Carlos Nejar)  /  Mesquita (A.B.Horta)  /  Moving poems  /  Agulha (Afonso Henriques)



(*) Há dúvidas nesta estrofe: ‘vosotros’ ou ‘nosotros’? ‘las cosas’ ou ‘todas las cosas’?

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14.9.10

Um verso (85)




Um verso de Caeiro                                        
        





Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio









Alberto Caeiro

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José Gomes Ferreira (Viver sempre também cansa)






VIVER SEMPRE TAMBÉM CANSA!




Viver sempre também cansa!


O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.


O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.


As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.


Tudo é igual, mecânico e exacto.


Ainda por cima, os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.


E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe, automóveis de corrida...


E obrigam-me a viver até à Morte!


Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?


Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima de um divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas por mim, meu amor do Norte.


Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com o teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."


E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...



José Gomes Ferreira




>>  As Tormentas (9p)  /  Instituto Camões (perfil)  /  TriploV (11p)  /  Luso-poemas (4p)  /  Porto de Abrigo (5p)


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13.9.10

Uberto Stabile (Em pé de paz)






"EN PIE DE PAZ"





Si vivimos en paz
es porque en algún lugar hay una guerra.
Una guerra es siempre fraticida y sucia.
Los hombres empuñan las armas
cuando la razón les falta. Y esto sucede a menudo.
El miedo alimenta todas las guerras
y la guerra alimenta siempre
a los países más ricos y desarrollados.
Con el miedo a la guerra
los gobiernos alimentan nuestra inseguridad
nuestro gasto anual en armamento
para la seguridad nacional,
Todo esto lo pagamos con nuestros impuestos.
La economía que mantiene nuestro sistema de vida
se basa fundamentalmente
en la construcción y venta de armas y políticas
que fomentan las guerras en lugares a los que nunca viajaremos.
Todas las armas se fabrican y se venden para ser utilizadas.
Nuestra indiferencia es sólo miedo a conocer la verdad
y la verdad es la responsabilidad individual
que cada uno tenemos para detener este sistema de cosas.
Todos sabemos que sin la guerra sería difícil vivir
vivir como se vive en Europa, Australia
y América del Norte.
Creo que después de todo
lo único que podemos hacer para detener toda esta locura
será tomar al pie de la letra el valor de las ideas
y declararnos sin más tregua en pie de paz.



Uberto Stabile



[Uberto Stabile]









Se vivemos em paz
é porque há guerra algures.
Uma guerra é sempre suja e fratricida.
Os homens pegam em armas
quando lhes falta a razão. O que sucede amiúde.
O medo alimenta todas as guerras
e a guerra alimenta sempre
os países mais ricos e desenvolvidos.
Com o medo à guerra
alimentam os governos a insegurança,
a despesa anual de armamento
para a segurança nacional.
Pagamos tudo isso com impostos.
A economia do nosso sistema de vida
baseia-se essencialmente
no fabrico e venda de armas e políticas
para fomentar a guerra em lugares onde jamais iremos.
As armas todas fabricam-se e vendem-se para ser usadas.
Nossa indiferença é medo só de conhecer a verdade
e a verdade é a responsabilidade individual nossa
para acabar com tal estado de coisas.
Sem a guerra, como sabemos, seria difícil viver
viver como se vive na Europa, na Austrália,
na América do Norte.
No fim de contas, creio eu,
o que podemos fazer para parar esta loucura
será tomar à letra o valor das ideias
e sem mais trégua declarar-nos em pé de paz.


(Trad. A.M.)

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Lawrence Durrell (Os amantes não se combinam bem)






Os amantes não se combinam bem, não acha?

Um deles lança sempre a sua sombra sobre o outro e impede-o de crescer, de modo que aquele que se sente sufocado procura desesperadamente um meio de evadir-se, para poder crescer sem entraves.

Não é este o drama essencial do amor?



- LAWRENCE DURRELL, Justine (4.ª parte), trad. Daniel Gonçalves.


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12.9.10

José Agostinho Baptista (Comovem-me)






COMOVEM-ME




Comovem-me ainda os dias que se levantam
no deserto das nossas vidas.


Dos belos palácios da saudade
não resta a impressão dos dedos nas colunas
fendidas, e nada cresce nos pátios.


Muito além, depois das casas, o último
marinheiro continua sentado.
Os seus cabelos são brancos, pouco a pouco.


Aqui, tudo se resume a algumas tâmaras que
secaram ao sol,,
longe do orvalho,
das fontes que pareciam nascer de um olhar
turvo sobre a sede da terra.


Comovem-me ainda as palavras que dizias
aos meus ouvidos aprisionados pela música.
Comovem-me as cadeiras vazias, no pátio.


Lembro-me sempre de ti.



JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA
Esta voz é quase o vento
Assírio & Alvim
(2004)

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Rogelio Ramos Signes (Engenharia do coração)






INGENIERÍA DEL CORAZÓN





No todos mis caminos conducen a Roma.
Vientos huracanados
de más de cien desazones por hora
echaron abajo el mejor de mis puentes
(los vecinos más viejos cayeron al vacío).
Lluvias que suceden por debajo de los ojos,
algunos excesos -que fueron muchos-
y esa suerte que siempre está de espaldas
dañaron la carretera más pequeña
(mujeres empantanadas
terminaron desarmándose
en la boca humeante de los lobos).
Pero, aquí me ves
recostado a pesar de la prisa
aguardando la buena voluntad
de obreros que no conozco
y una pizca de miedo.


Dicen que en los caminos
que todavía conducen a Roma
hace mucho calor
y la gente discute sin motivos.


Aquí el frío por momentos es intolerable,
la tinta se cristaliza antes de llegar al papel
y algunas lenguas improvisan saludos.
Hasta donde pude averiguar
nadie sabe quién poda por las noches
el ligustro de los sueños.


El café está prohibido.



Rogelio Ramos Signes






Nem todos os caminhos meus levam a Roma.
Ventos ciclónicos
a mais de cem moléstias à hora
deitaram abaixo a melhor das minhas pontes
(caíram no vazio os moradores mais velhos).
Chuvas que se juntam por baixo dos olhos,
alguns excessos – que foram muitos –
e essa sorte que está sempre de costas
estragaram a estrada pequena
(mulheres atoladas
acabaram por desmontar-se
na boca fumegante dos lobos).
Mas aqui me tens
recostado apesar da pressa
aguardando a boa vontade
de operários que não conheço
e um nadica de medo.


Dizem que nos caminhos
que ainda vão dar a Roma
está muito calor
e as pessoas ralham sem razão.


Aqui às vezes o frio é insuportável,
até a tinta gela antes de tocar no papel
e algumas línguas improvisam saudações.
Até onde pude averiguar
ninguém sabe quem à noite poda
o arbusto dos sonhos.


O café é proibido.



(Trad. A.M.)

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11.9.10

João Miguel Fernandes Jorge (Tenho para mim)





(XIII)



Tenho para mim neste derrotado começo de século
neste farrapo de país em que a própria língua virá em
breve a ser idioma secreto
e a quem ninguém chamará pátria nem tão-pouco
nação, apesar da vigilância sobre a nossa existência
ser matéria autocrática e clerical


tenho para mim que nesta geografia
a casa rural é a expressão mais pura que sobrevive,
qualquer coisa ao alcance entre o castelo e a igreja, entre a cruz e o adro,
ornamento que sustenta o carácter da arte e da paisagem.
Expressão do movimento, de uma cor.


Ao fim do pátio, onde a alma da casa termina, está
uma taça de granito. Bebedouro de pássaros nos meses
quentes, cobre-se de medronhos
pelos cálidos dias outonais do verão de São Martinho.
Em oferta, do áspero amarelo ao quente laranja,
no contraste da pedra o meio dia intensifica de brilho


cambiantes vermelhos – rosa vivíssimo e sangue
esmagado – o calor abre em ouro o corpo do fruto,
insectos despertam de um íntimo, longínquo mundo de
treva, como se subissem da mais antiga morte, da mais profunda vida.



JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE
Mãe-do-Fogo
Relógio d’Água
(2009)



[Achaques e Remoques]


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Olhar (81)










Praia da Barra > S. Jacinto


(9.9.2010)

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10.9.10

Oliverio Girondo (Não sou eu quem escuta)






NO SOY QIUEN ESCUCHA




No soy quien escucha
ese trote llovido que atraviesa mis venas.


No soy quien se pasa la lengua entre los labios,
al sentir que la boca se me llena de arena.


No soy quien espera,
enredado en mis nervios,
que las horas me acerquen el alivio del sueño,
ni el que está con mis manos, de yeso enloquecido,
mirando, entre mis huesos, las áridas paredes.


No soy yo quien escribe estas palabras huérfanas.



Oliverio Girondo







Não sou eu quem escuta
esse trote chovido que me atravessa as veias.


Não sou eu quem passa a língua nos lábios,
ao sentir que a boca se me enche de areia.


Não sou eu quem espera,
embrulhado nos nervos,
que as horas me tragam o alívio do sono,
nem o que está com as mãos, de gesso transviado,
olhando, entre meus ossos, as áridas paredes.


Não sou eu quem escreve estas órfãs palavras.


(Trad. A.M.)

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João Cabral de Melo Neto (A mulher sentada)






A MULHER SENTADA




Mulher. Mulher e pombos.
Mulher entre sonhos.
Nuvens nos seus olhos?
Nuvens sob seus cabelos.
(A visita espera na sala;
a notícia, no telefone;
a morte cresce na hora;
a primavera, além da janela).
Mulher sentada. Tranquila
na sala, como se voasse.



João Cabral de Melo Neto



>>  Releituras (8p+bio+biblio)  /  Casa do Bruxo (15p)  /  António Miranda (Metapoesia) /  Jornal de Poesia (O rio-1953)

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9.9.10

Herberto Helder (Ciclo-IV)






CICLO-IV




Mais uma vez a perdi. Em cada minuto
a perco. Longe revolteiam suas palavras
e seus dedos depositam-se
em qualquer parte.


Se a busco? Esfaimadamente a busco.
Tacteando com a memória a forma com que era
nas noites de amor.
Reconstruindo sua espécie de enorme sorriso.
Busco-a sim, inventando subtilmente
o impudor de cada entrega,
a dádiva sobrenatural da sua carne aberta.
Mais uma vez foi destruída pela vida feroz,
a minha boca não suporta sem palavras
essa coisa mortal.
Sangrentas são as palavras e deixam vestígios
através do tempo.


Longe, naquilo que o acaso teceu,
elaboram-se os gestos. No casulo remoto
forma-se a distância
entre a sua fonte e a minha fonte.
- Com que ser se entende agora seu ser oculto?
E as voltas obscuras e difíceis
dos instintos.


Ela semeia-se. E alguma coisa misteriosamente
a fecunda.
- Ela é colhida por um vento e eu estou bêbedo
de coisas inextricáveis.
Sei que ela acontece. Um círculo de seda
forma-se prementemente,
e ela acontece.


A minha fonte não me dá ironia,
nem um fogo,
uma estrela violenta.
- Fico a saber que ela longe cresce
como outra folha de erva.


Nada em mim suporta. A memória
desimpede-lhe os pés, e beija-os.
Minhas pálpebras exaltam-na.
E a fonte, essa, recusa-a arduamente.


Recebo humildemente esta desordem
da carne, das palavras,
dos dedos bruscos do tempo.
- Recebo tudo, e canto como quem deixa um sinal
maravilhoso.



HERBERTO HELDER
A Colher na Boca
(1961)

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Evaristo Carriego (A cadeira vazia)






LA SILLA QUE AHORA NADIE OCUPA




Con la vista clavada sobre la copa
se halla abstraído el padre desde hace rato:
pocos momentos hace rechazó el plato
del cual apenas quiso probar la sopa.
De tiempo en tiempo, casi furtivamente,
llega en silencio alguna que otra mirada
hasta la vieja silla desocupada
que alguien, de olvidadizo, colocó en frente.
Y mientras se ensombrecen todas las caras,
cesa de pronto el ruido de las cucharas
porque insistentemente, como empujado
por esa idea fija que no se va,
el menor de los chicos ha preguntado
cuándo será el regreso de la mamá.



Evaristo Carriego



[Marcelo Leites]






Com o olhar cravado no copo
o pai está abstraído há um bocado:
há momentos recusou a comida
e mal quis provar a sopa.
De quando em quando, quase a furto,
volve em silêncio um olhar ou outro
para a velha cadeira vazia
que alguém lhe pôs à frente, por esquecimento.
E enquanto escurecem as caras todas,
cessa de repente o ruído das colheres,
porque insistentemente, como empurrado
por uma ideia fixa teimosa,
o miúdo mais novo pergunta
quando é que a mãe voltará.


(Trad. A.M.)


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8.9.10

Florbela Espanca (Amar)






AMAR!



Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!


Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!


Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!


E se um dia hei-se ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...



FLORBELA ESPANCA
Charneca em Flor
(1930)

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W. B. Yeats (Quando fores velha)






WHEN YOU ARE OLD




When you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;


How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;


And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.



W. B. Yeats






Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;


Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;


Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.



(Trad. J.A.Baptista)

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