31.7.10

Blas de Otero (Connosco)






CON NOSOTROS





En este Café
se sentaba don Antonio Machado.


Silencioso


y misterioso, se incorporó al pueblo,
blandió la pluma, sacudió
la ceniza,
y se fue ...


Blas de Otero







Neste café
sentava-se don Antonio Machado.


Silencioso


e misterioso, juntou-se ao povo,
brandiu a pluma, sacudiu
a cinza
e foi-se...



(Trad. A.M.)

.

29.7.10

Eugénio de Andrade (A poesia não vai à missa)






A poesia não vai à missa,
não obedece ao sino da paróquia,
prefere atiçar os seus cães
às pernas de deus e dos cobradores
de impostos.
Língua de fogo do não,
caminho estreito
e surdo da abdicação, a poesia
é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão
que o chama.
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável,
quase sempre paciente e sem piedade.
A poesia adora
andar descalça nas areias do Verão.




Eugénio de Andrade

.

28.7.10

César Vallejo (No momento em que)








En el momento en que el tenista lanza magistralmente
su bala, le posee una inocencia totalmente animal;
en el momento
en que el filósofo sorprende una nueva verdad
es una bestia completa.
Anatole France afirmaba
que el sentimiento religioso
es la función de un órgano especial del cuerpo humano
hasta ahora ignorado y se podría
decir también, entonces
que, en el momento exacto en que un tal órgano
funciona plenamente,
tan puro de malicia está el creyente,
que se diría casi un vegetal.
¡Oh alma! ¡Oh pensamiento! ¡Oh Marx! ¡Oh Feüerbach!



César Vallejo







No momento em que o tenista lança a sua bola magistralmente,
é possuído por uma inocência toda animal;
no momento
em que o filósofo surpreende uma nova verdade
é uma perfeita besta.
Anatole France dizia
que o sentimento religioso
é função de um órgão especial do corpo humano
ignorado até hoje e assim podia
mesmo dizer-se, então, que, no momento exacto em que tal órgão
funciona plenamente,
tão puro de malícia está o crente,
que quase se diria um vegetal.
Ó alma! Ó pensamento! Ó Marx! Ó Feüerbach!


(Trad. A.M.)



>>  Poesi.as (254p)  /  A media voz (45p)


.

27.7.10

Cecília Meireles (Motivo)








MOTIVO




Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.


Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.


Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou se desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.


Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.



Cecília Meireles

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26.7.10

Cesare Pavese (Criação)






CREAZIONE





Sono vivo e ho sorpreso nell'alba le stelle.
La compagna continua a dormire e non sa.
Dormon tutti, i compagni. La chiara giornata
mi sta innanzi più netta dei volti sommersi.


Passa un vecchio in distanza, che va a lavorare
o a godere il mattino. Non siamo diversi,
tutti e due respiriamo lo stesso chiarore
e fumiamo tranquilli a ingannare la fame.
Anche il corpo del vecchio dev'essere schietto
e vibrante - dovrebbe esser nudo davanti al mattino.


Stamattina la vita ci scorre sull'acqua
e nel sole: c'è intorno il fulgore dell'acqua
sempre giovane, i corpi di tutti saranno scoperti.
Ci sarà il grande sole e l'asprezza del largo
e la rude stanchezza che abbatte nel sole
e l'immobilità. Ci sarà la compagna
- un segreto di corpi. Ciascuno darà una sua voce.


Non c'è voce che rompe il silenzio dell'acqua
sotto l'alba. E nemmeno qualcosa trasale
sotto il cielo. C'è solo un tepore che scioglie le stelle.
Fa tremare sentire il mattino che vibra
tutto vergine, quasi nessuno di noi fosse sveglio.



Cesare Pavese







Estou vivo e de manhã surpreendi as estrelas.
A companheira dorme ainda e não sabe.
Dormem todos, os companheiros. O claro dia
vejo mais nítido que os rostos submersos.


Passa um velho à distância, a caminho do trabalho
ou a gozar a manhã. Não somos diferentes,
ambos respiramos o mesmo esplendor
e fumamos tranquilos para enganar a fome.
Também o corpo do velho deve ser puro
e vibrante – deveria estar nu ante a manhã.


Esta manhã a vida escorre-nos na água
e em terra: em torno o fulgor da água
sempre jovem e a descoberto os corpos de todos.
Haverá o grande sol e a aspereza da praça
e o rude cansaço que nos verga para o chão
e a imobilidade. Estará a companheira
- um segredo de corpos. E cada um dará sua coisa.


Não há voz que rompa o silêncio da água
de manhã. Nem nada vibrando sob o céu.
Apenas um calor que dissolve as estrelas.
Treme-se ouvindo vibrar a manhã virginal,
como se nenhum de nós estivesse acordado.



(Trad. A.M.)

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25.7.10

Antonio Orihuela (Minha mãe)






Mi madre me estaba dando el pecho
cuando mi padre consiguió un trabajo
del que no se movió en treinta años.


Imaginó que, a cambio de su fidelidad,
la empresa le gratificaría, cerca de su jubilación,
con un reloj de oro, una placa, o un viaje a Torremolinos,
pero no, le dieron una patada en el culo
y a base de cambiarse el nombre,
resultó que, después de treinta años,
mi padre no había trabajado allí ni treinta días.


Cada mañana, para el control de parados,
nos presentamos juntos en el INEM,


primero lo nombran a él
y después me nombran a mí.


Hay gente que se siente satisfecha viendo a sus hijos imitarles,


me pregunto qué opinará él de todo esto.



ANTONIO ORIHUELA
Edad de Hierro
(1997)







Minha mãe estava a dar-me o peito
quando o meu pai conseguiu um trabalho
em que se manteve durante trinta anos.


Pensava ele que, em troca da sua fidelidade,
a empresa havia de o premiar, perto da reforma,
com um relógio de ouro, uma medalha ou uma viagem a Torremolinos,
mas não, deram-lhe mas é um pontapé no cu
e, com base em mudança da firma, deu-se que,
ao fim de trinta anos,
meu pai não tinha trabalhado ali sequer trinta dias.


Cada manhã, para o controlo,
apresentamo-nos ambos no serviço de emprego,


primeiro chamam-no a ele
e depois chamam-me a mim.


Há gente que fica satisfeita ao ver os filhos seguir-lhe as pisadas,


eu interrogo-me o que pensará ele de tudo isto.



(Trad. A.M.)

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24.7.10

Carlos Drummond de Andrade (Confidência do itabirano)






CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO





Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.


A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.


De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!



Carlos Drummond de Andrade

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23.7.10

Aldo Luis Novelli (Circo)






CIRCO




La elefanta,
con la mujer en su lomo,
alzó su cuerpo
apoyándose en una sola pata.
A mí
aún me duelen los hombros
del peso de este día.



Aldo Luis Novelli







A elefanta,
com a mulher em cima,
levantou o corpo
apoiando-se numa só pata.
A mim
ainda me doem os ombros
do peso do dia de hoje.


(Trad. A.M.)



>>  Arte Poetica (antologia)  /  Poeticas-Ar (14p)

.

22.7.10

Ana Hatherly (Mais-menos)






MAIS-MENOS




Quero dizer mais
e digo: mais


Mas cada vez
digo menos
o mais que sei
e sinto



Ana Hatherly

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21.7.10

Alexandre O'Neill (Meditação na pastelaria)






MEDITAÇÃO NA PASTELARIA




Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.



Nunca se sabe quando começa a insolência!
Que tempo este, meu Deus, uma senhora
Está sempre em perigo e o perigo
Em cada rua, em cada olhar,
Em cada sorriso ou gesto
De boa educação!


A inspecção irónica das pernas,
Eis o que os homens sabem oferecer-nos,
Inspecção demorada e ascendente,
Acompanhada de assobios
E de sorrisos que se abrem e se fecham
Procurando uma fresta, uma fraqueza
Qualquer da nossa parte...

          *


Mas uma senhora é uma senhora.
Só vê a malícia quem a tem.
Uma senhora passa
E ladrar é o seu dever – se tanto for preciso!


O pó de arroz:
Horrível!
O bâton:
Igual!


O amor de Raul é já uma saudade,
Foi sempre uma saudade…


(O escritório
Toma-lhe todo o tempo?
Desconfio que não…)


Filhos tivemos um:
Desapareceu…
E já nem sei chorar!

          *


Chorar...
Como eu queria poder chorar!


Chorar encostada a uma saudade
Bem maior do que eu,
Que não fosse esta tristeza
Absurda de cada dia:
Unha
Quebrada de melancolia...


Perdi tudo, quase tudo...


Hoje,
Resta-me a devoção
E este pequeno inteligente cão.


Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.




ALEXANDRE O'NEILL
No Reino da Dinamarca
(1958)


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20.7.10

José Luis García Martín (Poética para desanimar os leitores)







POÉTICA PARA DESANIMAR OS LEITORES





Não digo nada que não tenha sido dito.
Não procures novidades no meu verso.
Amei sem ser amado, como tantos.
Fui jovem, como todos, sem sabê-lo.
Pedi à arte coisas que esqueci.
Apenas sei que de nada me serviram.
Tive um tesouro nas mãos, tive
ouro e areia, luz e desconsolo.
Não procures novidades. O que digo
já tu o pensaste e outros o disseram
com palavras mais belas do que as minhas.
Apenas escrevo para matar o tempo.




José Luis García Martín


(Trad. J.M. Magalhães)

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19.7.10

Alda Merini (Também tu és um homem)






Anche tu sei un uomo, ma non solo un uomo,
un giardino:
ti fanno compagnia le lunghe amache
i caldi tropicali, le Azzorre.
Ma tutto in te è magnifica Grecia,
non hai la perspicacia di Ulisse
non hai la malizia degli uomini,
ma sei silenzioso e caldo
come la matrice di un giunco.



Alda Merini






Também tu és um homem, não só um homem,
um jardim:
acompanham-te as longas redes
os calores tropicais, os Açores.
Mas tudo em ti é Grécia magnífica,
não tens a perspicácia de Ulisses
nem a humana malícia,
és antes calado e quente
como a matriz do junco.


(Trad. A.M.)

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18.7.10

A.M.Pires Cabral (Um dia, será contra mim)






Um dia, será contra mim
que toda esta gente
encostada ao medo
voltará a sua solidariedade.


Alguns, é certo, mais impacientes,
ao minuto dez perderão todo o interesse
na morte que ali os trouxe,
farão uma roda cúmplice, contarão
anedotas de alentejanos e louras,
entre olhadelas ao relógio,
faz-se-me tarde, o diabo do padre
nunca mais vem.


Pelo contrário, aqueles que se perfilam
logo atrás de mim na desapiedada
cronologia da morte
manipularão preces sem pressa
tementes ao aviso: cras tibi.


Entalado entre as minhas tábuas
não hei-de eu estar feliz?



A.M. Pires Cabral

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17.7.10

Evaristo Carriego (Quando o velho entra)






CUANDO LLEGA EL VIEJO




Todos están callados ahora. El desaliento,
que repentinamente siguiera al comentario
de esa duda, persiste como un presentimiento.
El hermano recorre las noticias del diario


que está sobre la mesa. La abuela se ha dormido
y los demás aguardan con el oído alerta
a los ruidos de afuera, y apenas se oye un ruido
las miradas ansiosas se clavan en la puerta.


El silencio se vuelve cada vez más molesto:
una frase que empieza se traduce en un gesto
de impaciencia. ¡La espina de esa preocupación!


Y cuando llega el viejo, que salió hace un instante,
todas las miradas fijas en su semblante
hay una temerosa, larga interrogación.



Evaristo Carriego






Todos estão calados agora. O desalento,
que de repente se seguiu ao comentário
dessa dúvida, persiste como pressentimento.
O irmão percorre as notícias do diário


que está sobre a mesa. A avó adormeceu
e os outros aguardam de ouvido atento
aos ruídos de fora, e mal se ouve um ruído
cravam-se na porta os olhares ansiosos.


O silêncio torna-se cada vez mais incómodo,
uma frase que começa traduz-se num gesto
de impaciência. O espinho da preocupação!


E quando o velho entra, depois de sair um instante,
todos os olhares lhe recaem no semblante
e há uma temerosa, longa interrogação.


(Trad. A.M.)



>>  Amediavoz (35p)  /  Poesi.as (89p)

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Ver (52)











São Lourenço > Santa Maria


[Nuno Barata]

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16.7.10

Vinicius de Moraes (Poema a Santa Teresa)






POEMA FEITO PARA CHEGAR AOS OUVIDOS DE SANTA TERESA




Não quero ir pro inferno
Santa Teresinha
Quero é ir pro céu
Que é boa terrinha
Mas se eu for pro céu
Você me procura?
Você me namora,
Santa Teresinha?
Você me namora, hein, Santa Teresinha?


Vinicius de Moraes


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José Antonio Muñoz Rojas (Amor)






Amor, es necesario desear algo,
aunque sea la lluvia o la escarcha;
lo que no puede ser
es permanecer ante las montañas
sin dirigirles palabras cariñosas,
ver los ríos viajar continuamente
sin desearles buen viaje.


Hay que ser complaciente con todas las cosas,
las que existen y las que no existen.


No olvidar cuando salgamos
que no sabemos cuándo será el retorno,
y que puede presentarse la ocasión
de convidar a migajas de pan a los gorriones,
a pan y sal a los borregos,
que podemos ir a parar a la Arabia,
donde los camellos se mueren de sed,
y les salvaríamos la vida
si con la cartera y el portamonedas
hubiéramos puesto en nuestro bolsillo
un vaso,
que el agua ya se encargarán los cielos
de que no falte.



José Antonio Muñoz Rojas







Amor, é preciso desejar algo,
mesmo que seja a chuva ou a geada;
o que não pode ser
é parar diante dos montes
sem lhes dar palavras de carinho,
ver os rios passar continuamente
e não lhes desejar boa viagem.


Temos de ser complacentes com todas as coisas,
as que existem e as que não.


Quando sairmos não esquecer
que ignoramos quando será o regresso
e que pode deparar-se a ocasião
de convidar os pássaros com migalhas de pão,
ou os borregos com pão e sal,
que podemos ir parar à Arábia,
onde morrem de sede os camelos
e a vida lhes salvaríamos
se junto à carteira e porta-moedas
tivéssemos metido no bolso um copo,
que a água o céu se encarregará
de que não falte.



(Trad. A.M.)

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15.7.10

Jorge de Sena (A canalha)






A CANALHA




Como esta gente odeia, como espuma
por entre os dentes podres a sua baba
de tudo sujo nem sequer prazer!
Como se querem reles e mesquinhos,
piolhosos, fétidos e promíscuos
na sarna vergonhosa e pustulenta!
Como se rabialçam de importantes,
fingindo-se de vítimas, vestais,
piedosas prostitutas delicadas!
Como se querem torpes e venais
palhaços pagos da miséria rasca
de seus cafés, popós e brilhantinas!
Há que esmagar a DDT, penicilina
e pau pelos costados tal canalha
de coxos, vesgos, e ladrões e pulhas,
tratá-los como lixo de oito séculos
de um povo que merece melhor gente
para salvá-lo de si mesmo e de outrem.



Jorge de Sena

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Robert Crawford (Olhando)






THE LOOK-IN




One day when I was skiving off my day-job,
sitting writing at my black-ash desk,

eyes down, intent, you came and stood outside
the French windows my son likes to look out of

at age six months. You told me later
how you'd stayed a moment, unseen, watching me

at work in this new house, this warm room,
I imagine, Dad,

you leaning on your stick, eighty years old,
visiting for an instant and then gone.

I want to sit here pressing forward
into the daydream that's the real work,

my job to know you there and know the knowledge
doesn't interrupt me, nourishes what I do

subliminally, not raising my head,
like someone praying: a seventh sense, an eighth.


Robert Crawford



[Marcelo Leites]






Um dia em que eu fiz gazeta ao trabalho
e estava sentado a escrever à secretária,

de olhos baixos, concentrado, tu apareceste e paraste
em frente à janela preferida do meu filho

de seis meses. Contaste-me depois
como te detiveste um momento, sem ser visto, olhando-me

a trabalhar nesta nova casa, neste quarto acolhedor.
Imagino-te, papá,

apoiado na bengala, com teus oitenta anos,
de visita por um instante e a seguir retirado.

Eu quero ficar aqui sentado e insistir
no sonho diurno que é o trabalho real,

que meu papel seja saber-te aí, sabendo que isso
não me atrapalha, alimenta o que faço

subliminarmente, sem erguer a cabeça,
como quem reza: um sétimo sentido, ou oitavo.



(Trad. A.M.)



>>  British Council (sobre)


.

14.7.10

José Agustín Goytisolo (Segredo)






SECRETO




Antes yo no sabía
por qué debemos todos
- día tras día -


seguir siempre adelante
hasta como se dice
que el cuerpo aguante.


Ahora lo sé.
Si te vienes conmigo
te lo diré.



José Agustin Goytisolo







Antes eu não sabia
porque é que se deve
- dia após dia –


andar sempre em frente
até como se diz
o corpo aguentar.


Agora sei.
Se vieres comigo
digo-te.



(Trad. A.M.)

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Sophia de Mello Breyner Andresen (Deserto)






DESERTO




Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua


Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.



Sophia de Mello Breyner Andresen

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13.7.10

Rui Pires Cabral (Big night)






BIG NIGHT




A noite em que nos sentámos no muro
entre os quintais. O mundo estava aninhado
sob o tecto dos teus sentidos, recuava
à posição pouco óbvia
de um jardim.


Vinhas com o tempo certo sobre
as silvas, já punhas o amor a arder
nos canteiros. Não valia a pena explicar
uma coisa tão rara.



Rui Pires Cabral

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Mario Benedetti (Onze)






ONCE




Ningún padre de la iglesia
ha sabido explicar
por qué no existe
un mandamiento once
que ordene a la mujer
no codiciar al hombre
de su prójima.


Mario Benedetti







Nenhum padre da igreja
soube até hoje explicar
porque é que não existe
um mandamento 11.º
ordenando à mulher
não cobiçar
o homem da próxima.


(Trad. A.M.)

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12.7.10

Raul de Carvalho (Isso até me agrada)






Isso até me agrada. Que me deitem fora
Que me deixem livre de compromissos afectivos.
Ficar ligeiro por dentro; ser como casca só.
Não tropeçar nos detritos humanos
Que me cercam,
Não ter altivez nenhuma nisso.
Ser simplesmente um andante.
Ter o caminho livre.



Raul de Carvalho

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Rabindranath Tagore (Julgamento)


JULGAMENTO




Não julgues...
Habitas num recanto mínimo desta terra.
Os teus olhos chegam
Até onde alcançam muito pouco...
Ao pouco que ouves
Acrescentas a tua própria voz.
Mantém o bem e o mal, o branco e o negro,
Cuidadosamente separados.
Em vão traças uma linha
Para estabelecer um limite.


Se houver uma melodia escondida no teu interior,
Desperta-a quando percorreres o caminho.
Na canção não há argumento,
Nem o apelo do trabalho...
A quem lhe agradar responderá,
A quem lhe agradar não ficará impassível.
Que importa que uns homens sejam bons
E outros não o sejam?
São viajantes do mesmo caminho.
Não julgues,
Ah, o tempo voa
E toda a discussão é inútil.


Olha, as flores florescem à beira do bosque,
Trazendo uma mensagem do céu,
Porque é um amigo da terra;
Com as chuvas de Julho
A erva inunda a terra de verde,
e enche a sua taça até à borda.
Esquecendo a identidade,
Enche o teu coração de simples alegria.
Viajante,
Disperso ao longo do caminho,
O tesouro amontoa-se à medida que caminhas.



RABINDRANATH TAGORE
Poesia
(Trad. José Agostinho Baptista)
Assírio & Alvim, 2004

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11.7.10

José Ángel Barrueco (A fonte da vida)






LA FUENTE DE LA VIDA




lluvia, frío, viento
y a veces algo de nieve


ese era el panorama
del que disfrutamos
hace poco en Praga,
mi chica y yo


errábamos por
calles con aristas kafkianas
y yo iba hundido:
las noticias no eran buenas


durante aquellos paseos
luchaba por no desmoronarme


sólo podía pensar en
algunos versos sueltos
de javier das y de
ana pérez cañamares


no dejaba de imaginar
qué aspecto tendría ella
cuando se quedara sin pelo
y sin fuerzas por la quimio


ella:
me refiero a mi madre,
la que me dio la vida


esta vida que aún sufre,
este corazón hecho jirones
allá, perdido en algún rincón
de las calles grises de Praga.



José Ángel Barrueco



[Escrito en el viento]






chuva, frio, vento
e por vezes alguma neve


esse era o panorama
que desfrutámos
há pouco em Praga,
a minha miúda e eu


errávamos por
ruas de arestas kafkianas
e eu ia aborrecido:
as notícias não eram boas


nesses passeios eu
fazia por não desmoronar


podia só pensar em
alguns versos soltos
de javier das e de
ana pérez cañamares


e não deixava de imaginar
que aspecto ela teria
quando ficasse sem forças
e sem cabelo por causa da quimio


ela:
quero dizer, a minha mãe,
aquela que me deu a vida


esta vida que sofre ainda,
este coração feito em farrapos
ali, perdido num canto qualquer
das ruas cinzentas de Praga.


(Trad. A.M.)




>>  Kankel (sítio pessoal)  /  The kankel (blogue)  /  Matematicas y poesia (bio+3p)

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Pedro Mexia (Os meus demónios)






OS MEUS DEMÓNIOS





Os meus demónios
tratam-me pelo nome.
Os meus demónios
são legião e não desertam.
Os meus demónios
obedecem a todas as ordens
e a nenhuma vontade.
Os meus demónios
começaram por ser meus
por afinidade e agora
são parentes de sangue.
Os meus demónios
é que escrevem os poemas.



PEDRO MEXIA
Vida Oculta
(2004)

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10.7.10

Ver (51)








Hisaronu / Ovacik


(Turquia)


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Jorge Teillier (Despedida)






DESPEDIDA




Me despido de mi mano
que pudo mostrar el paso del rayo
o la quietud de las piedras
bajo las nieves de antaño.


Para que vuelvan a ser bosques y arenas
me despido del papel blanco y de la tinta azul
de donde surgían los ríos perezosos,
cerdos en las calles, molinos vacíos.


Me despido de los amigos
en quienes más he confiado:
los conejos y las polillas,
las nubes harapientas del verano,
mi sombra que solía hablarme en voz baja.


Me despido de las Virtudes y de las Gracias del planeta:
Los fracasados, las cajas de música,
los murciélagos que al atardecer se deshojan
de los bosques de casas de madera.


Me despido de los amigos silenciosos
a los que sólo les importa saber
dónde se puede beber algo de vino,
y para los cuales todos los días
no son sino un pretexto
para entonar canciones pasadas de moda.


Me despido de una muchacha
que sin preguntarme si la amaba o no la amaba
caminó conmigo y se acostó conmigo
cualquiera tarde de esas que se llenan
de humaredas de hojas quemándose en las acequias.
Me despido de una muchacha
cuyo rostro suelo ver en sueños
iluminado por la triste mirada
de trenes que parten bajo la lluvia.


Me despido de la memoria
y me despido de la nostalgia
-la sal y el agua
de mis días sin objeto -


y me despido de estos poemas:
palabras, palabras -un poco de aire
movido por los labios- palabras
para ocultar quizás lo único verdadero:
que respiramos y dejamos de respirar.



Jorge Teillier







Despeço-me da minha mão
que pôde apontar a passagem do raio
ou a quietude das pedras
sob as neves de antanho.


Para que voltem a ser bosques e areias
digo adeus ao papel branco e tinta azul
donde surgiam os rios indolentes,
porcos na rua, moinhos vazios.


Despeço-me dos amigos
em que mais confiei:
os coelhos e as mariposas,
as nuvens de farrapos do verão,
minha sombra que soía falar-me em voz baixa.


Despeço-me das Virtudes e Graças do planeta:
Os fracassados, as caixas de música,
os morcegos que ao anoitecer se desfolham
dos bosques de casas de madeira.


Digo adeus aos amigos silenciosos
que só querem saber onde
podem beber um copo de vinho,
para quem os dias são pretexto apenas
para entoar canções fora de moda.


Despeço-me duma rapariga
que sem me perguntar se a amava ou não amava
andou comigo e deitou-se comigo
numa tarde dessas cheias de fumo
de folhas a arder nas bermas
Despeço-me duma rapariga
cujo rosto vejo em sonhos
iluminada pelo olhar triste
de comboios partindo sob a chuva.


Despeço-me da lembrança
e também da saudade
- água e sal de meus dias vazios –


e bem assim me despeço destes poemas:
palavras, palavras – um pouco de ar
movido pelos lábios – palavras
para ocultar quiçá a única verdade:
que respiramos e deixamos de respirar.


(Trad. A.M.)

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9.7.10

Nuno Júdice (Pedra)






PEDRA




A pedra escreve-se em torno
do nome. Um banco de pedra serve
de assento a quem escreve,
com esse nome, a pedra. Os lábios
não a atiram quando dizem:
pedra. Nem a pedra rola
na boca, como a palavra.




NUNO JÚDICE
Meditação sobre Ruínas
(1994)

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Mário de Andrade (Moça linda)






MOÇA LINDA BEM TRATADA




Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.


Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.


Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...


Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.



Mário de Andrade



>>  As Tormentas (12p)  /  Jornal de Poesia (8p+crítica+bio-biblio)  /  Alguma poesia (8p)  /  Wikipedia



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8.7.10

Kutxi Romero (Alguma coisa tremula)






Hay algo que se tambalea
en las mentes de los

                   GENIOS

                                 ONANISTAS

                                                 LITERARIOS

cuando afirman que su escritura
se debe
al reclamo de que vuelvan los Dioses.
Hijos de perra.
Yo escribo para que mueran
definitivamente.



Kutxi Romero






Alguma coisa tremula
na mente desses

                 GÉNIOS

                                ONANISTAS

                                                     LITERÁRIOS

ao afirmarem que a sua escrita
se prende
com o apelo ao regresso dos Deuses.
Filhos de uma cadela.
Eu cá escrevo para que morram
definitivamente.


(Trad. A.M.)



>>  La quimera de oro (5p)  /  Taringa (5p)  /  Wikipedia

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Manuel de Freitas (Supermercado)






SUPERMERCADO


                      para a Ana Paula Inácio


Tenho 35 anos e sei finalmente o que
quero. Basta olhar para o cesto
de compras: bolachas Leibniz, papel
higiénico Renova, leite com chocolate
Agros e, claro, uma garrafa de Famous
Grouse e pelo menos seis latas de Super Bock.
Discos já tenho que cheguem, por muito
que me desminta, e não viverei o suficiente
para ler todos os livros que me ocuparam a casa.


É um bocadinho banal, eu sei, mas é a minha
prestação diária enquanto consumidor, o meu fado
simples, enxuto, quase isento de lágrimas & remorsos.
Acordo para almoçar no Doce Lindo (ou Doce Belo, ainda
não houve rotina que me fizesse decorar o nome),
passo pelo supermercado, onde desejo ou nem por isso
todas as ternas e voláteis isildas deste mundo perfeito
– e volto a subir devagar as escadas de madeira rombas.


Só muitas horas depois, quando as luzes
me garantem que o bairro inteiro dorme,
escrevo poemas como este, versos em que
inutilmente vos digo que sou um homem feliz,
un roseau pensant, o mais belo cadáver de Lisboa.



- Telhados de Vidro, n.º 10, Averno, Lisboa, 2008.


[Hospedaria Camões]

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7.7.10

Manuel Bandeira (Madrigal melancólico)






MADRIGAL MELANCÓLICO





O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.


O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito subtil,
Tão ágil, tão luminoso,
-Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.


O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.


O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.


O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.


Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.




Manuel Bandeira




[Direito e avesso]

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Jorge Luis Borges (A lua)






A LUA



                                                   A Maria Kodama





Há tanta solidão nesse ouro.
A lua das noites não é a lua
do primeiro Adão. Os longos séculos
da vigília humana encheram-na
de antigo pranto. Olha para ela. É o teu espelho.






JORGE LUIS BORGES
La moneda de hierro
(1976)



(Trad. A.M.)


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6.7.10

Ana Blandiana (Sobre o país donde vimos)






Vamos, falemos
do país donde vimos.
Eu venho do Verão,
uma pátria frágil
que qualquer folha,
ao cair, pode bem extinguir.
E o céu é tão cheio de estrelas
que às vezes pendem até ao chão,
e tu, aproximando-te, podes ouvir a erva
a fazer cócegas às estrelas que riem,
e são tantas as flores
que os olhos doem
deslumbrados pelo sol,
e redondos sóis pendem
de cada árvore;
Donde eu venho
falta apenas a morte
e é tanta a felicidade
que até dá para dormir.



(Trad. A.M.)




[Noctambulario]



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Ver (50)








[La Toscana]



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