30.6.10

Ver (49)










Marmaris

(Turquia)

.

Jaime Gil de Biedma (Do ano mau)






DEL AÑO MALO




Diciembre es esta imagen
de la lluvia cayendo con rumor de tren,
con un olor difuso a carbonilla y campo.
Diciembre es un jardín, es una plaza
hundida en la ciudad,
al final de una noche,
y la visión en fuga de unos soportales.


Y los ojos inmensos
-tizones agrandados-
en la cara morena de una cría
temblando igual que un gorrión mojado.
En la mano sostiene unos zapatos rojos,
elegantes, flamantes como un pájaro exótico.


El cielo es negro y gris
y rosa en sus extremos,
la luz de las farolas un resto amarillento.
Bajo un golpe de lluvia, llorando, yo atravieso,
innoble como un trapo, mojado hasta los cuernos.


Jaime Gil de Biedma


[Marcelo Leites]





Dezembro é esta imagem
da chuva caindo com rumor de comboio,
um cheiro difuso a carvão e a campo.
Dezembro é um jardim, uma praça
afundada na cidade,
ao fim de uma noite,
a visão fugitiva de alguns portais.


E uns olhos imensos
- tições aumentados –
na cara morena de uma criança
a tremer como um pássaro molhado.
Segura na mão uns sapatos elegantes,
vermelhos, flamantes como um pássaro exótico.


O céu está negro e cinza,
rosado nos extremos,
a luz dos candeeiros um resto amarelado.
Debaixo de chuva grossa, atravesso,
chorando, ignóbil como um trapo,
molhado até aos cornos.


(Trad. A.M.)

.

29.6.10

Manoel de Barros (Se achante)






SE ACHANTE




Era um caranguejo muito se achante.
Ele se achava idôneo para flor.
Passava por nossa casa
Sem nem olhar de lado.
Parece que estava montado num coche
de princesa.
Ia bem devagar
Conforme o protocolo
A fim de receber aplausos.
Muito achante demais.
Nem parou para comer goiaba.
(Acho que quem anda de coche não come
goiaba).
Ia como se fosse tomar posse de deputado.
Mas o coche quebrou
E o caranguejo voltou a ser idôneo para
mangue.



MANOEL DE BARROS
Compêndio para uso dos pássaros
(Poesia reunida 1937-2004)
Quasi Edições, 2007

.

Luís Miguel Nava (Sem outro intuito)






SEM OUTRO INTUITO



Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.



Luís Miguel Nava

.

28.6.10

Oliverio Girondo (Não me importa peva)






NO SE ME IMPORTA UN PITO





No se me importa un pito que las mujeres
tengan los senos como magnolias o como pasas de higo;
un cutis de durazno o de papel de lija.
Le doy una importancia igual a cero,
al hecho de que amanezcan con un aliento afrodisíaco
o con un aliento insecticida.
Soy perfectamente capaz de soportarles
una nariz que sacaría el primer premio
en una exposición de zanahorias;
¡pero eso sí! -y en esto soy irreductible- no les perdono,
bajo ningún pretexto, que no sepan volar.
Si no saben volar ¡pierden el tiempo las que pretendan seducirme!
Ésta fue -y no otra- la razón de que me enamorase,
tan locamente, de María Luisa.
¿Qué me importaban sus labios por entregas y sus encelos sulfurosos?
¿Qué me importaban sus extremidades de palmípedo
y sus miradas de pronóstico reservado?
¡María Luisa era una verdadera pluma!
Desde el amanecer volaba del dormitorio a la cocina,
volaba del comedor a la despensa.
Volando me preparaba el baño, la camisa.
Volando realizaba sus compras, sus quehaceres...
¡Con qué impaciencia yo esperaba que volviese, volando,
de algún paseo por los alrededores!
Allí lejos, perdido entre las nubes, un puntito rosado.
"¡María Luisa! ¡María Luisa!"... y a los pocos segundos,
ya me abrazaba con sus piernas de pluma,
para llevarme, volando, a cualquier parte.
Durante kilómetros de silencio planeábamos una caricia
que nos aproximaba al paraíso;
durante horas enteras nos anidábamos en una nube,
como dos ángeles, y de repente,
en tirabuzón, en hoja muerta,
el aterrizaje forzoso de un espasmo.
¡Qué delicia la de tener una mujer tan ligera...,
aunque nos haga ver, de vez en cuando, las estrellas!
¡Que voluptuosidad la de pasarse los días entre las nubes...
la de pasarse las noches de un solo vuelo!
Después de conocer una mujer etérea,
¿puede brindarnos alguna clase de atractivos una mujer terrestre?
¿Verdad que no hay diferencia sustancial
entre vivir con una vaca o con una mujer
que tenga las nalgas a setenta y ocho centímetros del suelo?
Yo, por lo menos, soy incapaz de comprender
la seducción de una mujer pedestre,
y por más empeño que ponga en concebirlo,
no me es posible ni tan siquiera imaginar
que pueda hacerse el amor más que volando.



Oliverio Girondo






Não me importa peva que as mulheres
tenham os seios como magnólias ou como passas de figo;
uma pele de ananás ou de papel de lixa.
Dou tanta importância como zero
a que elas amanheçam com hálito afrodisíaco
ou com hálito insecticida.
Sou perfeitamente capaz de suportar-lhes
um nariz que tiraria o primeiro prémio
numa exposição de cenouras;
mas isso sim – aqui sou irredutível – não lhes perdoo,
sob nenhum pretexto, que não saibam voar.
Não sabendo voar, perdem o seu tempo as que quiserem seduzir-me!
Esta – e não outra – foi a razão de me apaixonar,
tão loucamente, por María Luísa.
Que me importavam seus lábios em fascículos e seus ciúmes sulfurosos?
Que me importavam suas extremidades de palmípede
e seus olhares de prognóstico reservado?
María Luísa era uma verdadeira pluma!
Logo de manhãzinha voava do quarto para a cozinha
e da sala para a despensa.
Voando, arranjava-me o banho e a camisa.
Voando, fazia as suas compras e restantes tarefas...
Com que impaciência eu esperava que voltasse, voando,
de algum passeio pelas redondezas!
Lá longe, perdido entre as nuvens, um pontinho cor de rosa.
“María Luísa! María Luísa!”... e em poucos segundos
abraçava-me já com suas pernas de pluma,
para levar-me a voar a qualquer sítio.
Durante quilómetros de silêncio
planeávamos uma carícia
que nos levava ao paraíso;
horas inteiras aninhávamo-nos numa nuvem,
como dois anjos, e de repente
em saca-rolhas, em folha morta,
a aterragem forçada de um espasmo.
Que delícia ter uma mulher tão ligeira...
embora de vez em quando nos faça ver as estrelas!
Que volúpia passar o dia entre as nuvens...
e passar as noites de um voo!
Depois de conhecer uma mulher etérea,
pode ter algum atractivo uma mulher terrestre?
Não haverá deveras diferença de tomo
entre viver com uma vaca ou com uma mulher
com as nádegas a setenta e oito centímetros do chão?
Eu, pelo menos, sou incapaz de compreender
a sedução de uma mulher pedestre,
e por mais que me empenhe em concebê-lo
não consigo sequer imaginar
que se possa fazer amor senão a voar.


(Trad. A.M.)



>>  Amediavoz (40p)  /  Poesi.as (83p)  /  Cervantes (tudo+algo)

.

José Miguel Silva (Já os pesadelos)





JÁ OS PESADELOS




Os sonhos dos homens assemelham-se entre si.
Já os pesadelos, cada um tem o seu.
Durante muitos anos eu fui hóspede do frio.
Enrolava cigarros para depois da chuva
e não tinha sonhos, somente pesadelos.


O mais recorrente era o do nevoeiro:
ninguém me via, era inútil mandar vir
uma caneca de cerveja, no café.
O meu dinheiro ninguém o aceitava,
ficava parado, fazia de mim um acumulador.


Como nunca saía de casa, não sabia falar
senão com mortos. Parecia-me magia
saber responder boa tarde como vai
à saudação dos vizinhos, pedir do vazio
ao homem do talho, perguntar as horas.


Tempos amargos esses, e hoje,
a mesma coisa, a mesma solidão.
Com a diferença de que sou mais forte agora,
vou à piscina duas vezes por semana,
escrevo poemas para não adormecer.




JOSÉ MIGUEL SILVA
Vista para um pátio
(2003)

.

27.6.10

Sophia de Mello Breyner Andresen (Este é o tempo)






ESTE É O TEMPO




Este é o tempo
Da selva mais obscura


Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura


Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura


Este é o tempo em que os homens renunciam.



SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Mar Novo
(1958)


[Ecos e memórias]



>>  É este o meu tempo (Antonio Orihuela)

.

Íker Biguri (Assim é a superfície)






assim é a superfície do meu coração
esquartelada, tem bichos e um arbusto


tivesse eu um coração como Deus manda
seria vermelho como um tomate
brilhante como um ferrari
e aguçado como um palito


mas a mim Deus não me dá ordens
era o que mais faltava!


esse velho verde que me deixe em paz



Íker Biguri



[Poejos]




(Trad. A.M.)

.

26.6.10

José Mário Silva (Magnum opus)






MAGNUM OPUS




Um verso apenas
- ou menos ainda.





José Mário Silva


.

José Agostinho Baptista (Da nossa morte)






DA NOSSA MORTE




Agora é tarde.
Ninguém responde às cartas que escrevi e
atirei ao mar,
quando pensei que um dia serias como esse
marinheiro que num sonho antigo abençoava
o filho e depois partia nas asas do albatroz.
Agora é tarde.
Ninguém responde à sombria música dos meus
punhos golpeando a cadeira vazia, a mesa, as
folhas em branco onde uma única palavra se
aproxima,
manejando as suas armas -
três letras, três sinais de fogo.
Agora é tarde.
Ninguém cala os tempestuosos rios no fundo
dos meus olhos,
quando penso nos vermes, nas viscosidades
que te procuram através do cetim.



José Agostinho Baptista

.

25.6.10

Blas de Otero (Deus nos livre dos livros maus)






DIOS NOS LIBRE DE LOS LIBROS MALOS
QUE DE LOS BUENOS YA ME LIBRARÉ YO

                                (En un homenaje a Gerardo Diego)



Para qué tantos libros, tantos papeles, tantas pamplinas.
Lo bonito es una pierna de mujer
—la izquierda a ser posible—,
un bosque bajo la lluvia, un buque norteamericano caído en manos del enemigo,
hay tanto que contemplar,
excepto la televisión,
cómo perder el tiempo en leer, pasar la página, cuidarse las anginas,
cuánto mejor callejear a la deriva,
esto sí que es un libro lo que se dice un libro de tamaño natural,
lleno de gente, tiendas, puestos de periódicos, casas en construcción
y otros versos.


Blas de Otero


[Cómo cantaba mayo]






Para quê tantos livros, tantos papéis e ninharias
O belo é uma perna de mulher
- a esquerda, se possível -
um bosque à chuva, um navio americano caído em mãos do inimigo,
há tanto para ver,
menos televisão,
como perder tempo a ler, virar a página, tratar as anginas,
muito melhor caminhar à deriva,
isso sim é que é um livro, como dizer, um livro em tamanho natural,
cheio de gente, lojas, quiosques, casas em construção
e outros versos.


(Trad. A.M.)



>>  Fundación B.O. (tudo+algo)  /  A media voz (29p)  /  Arte poetica (19p)  /  Tinet (18p)  /Poesi.as (13p)



.

João Miguel Fernandes Jorge (O comboio correio)






(31)




O comboio correio das 10 da noite partia da
minha terra para Lisboa. Fui tantas vezes
com o meu pai levar as cartas. Esperávamos
na gare. Se havia chuva ouvíamos o apito
quando passava à Granja vindo de Óbidos e


depois de correr o vale de S. Mamede.
O que mais me seduzia era o seu peso o negro
da máquina o movimento do êmbolo a nuvem de vapor
correndo toda a gare. Chegava entre videiras e
pântanos. O chefe da estação de


bandeirinha verde dava o sinal de entrada. Era
o intenso barulho os ferros da travagem
o bater das portas as carruagens verdes
enegrecidas, os castanhos wagons. Máquinas de carvão,
a diesel depois. O degrau de madeira ao


longo da carruagem, o romano nas portas I, II, e III.
Anos depois, já de mim se dizia «um homenzinho»
viajei nesse comboio das 10. Partia de
Coimbra, às cinco horas. Pelos campos do Mondego


a água, a matéria do ferro, confundi
com o caos. Reconheço neste comboio a forma
obscura, a intuição ridícula das imagens. A noite
corria de mistura com a triste lâmpada do
corredor, benefício do mistério, fogo fechado pela


trovoada sobre os campos do arroz, sobre o pinhal de Leiria.
Viajava em segunda. Vinha para casa no natal.
Eu tinha um emblema, vermelho e branco dos suíços,
na lapela do sobretudo. O meu irmão, as mãos
gretadas das frieiras sob umas luvas azuis. No


banco em frente,
uma professora de geografia rezava o terço
atenta à formação do espírito científico nascente.
Descolorido amor humano,
fornalha de comboio, coração das coisas a noite
corria fora e dentro da carruagem verde.


Meu pai estava na gare.
A longa fita de cabedal para fechar, abrir as
janelas. A rede onde pousava as malas.
Os corridos bancos de madeira ficavam na III.
Um guarda republicano cerrava todas as


noites sobre o azul do capote a portinhola.
O traço do comboio separa o céu da terra sob as estrelas
sob o limite da chama
a arte imita tanta vez a natureza.



João Miguel Fernandes Jorge

.

24.6.10

Ver (48)




[Marciano]


.

Alejandra Pizarnik (Amantes)






AMANTES




una flor
no lejos de la noche
mi cuerpo mudo
se abre
a la delicada urgencia del rocío



Alejandra Pizarnik







uma flor
não longe da noite
meu corpo mudo
se abre
à delicada urgência do orvalho



(Trad. A.M.)

.

23.6.10

Herberto Helder (Fonte-VI)






FONTE-VI




Estás verdadeiramente deitada. É impossível gritar sobre esse abismo
onde rolam os cálices transparentes da primavera
de há vinte e dois anos. Quando aperto as pálpebras
ou descubro o teu nome como uma paisagem,
só há grutas virgens onde os candelabros se apagam.
Mãe, pouco resta de ti na exaltação deste mundo. Às vezes
misturas-te um pouco nos terrores da noite ou olhas-me,
vertiginosa e triste,
através das palavras impuras da minha vida
de poeta.


No outro lado da mesa estás inteiramente
morta. Parece que sorris de leve ao meu
pensamento, mas sei que é apenas
a solidão espantada. Como pudeste morrer assim
tão violenta e fria,
quando ainda meus dedos começavam a agarrar-te
a cabeça inclinada dentro
das luzes? Não podes levantar-te dos retratos antigos
onde procuro afogar-me como uma criança
nocturna. E não atravessaremos juntos as cidades redentoras,
perdidos um no outro, sorrindo,
como se estivéssemos debaixo de uma árvore inspirada e eterna.


Conheço algumas cidades da europa e a fantasia vagarosa
da cidade da minha infância.
Tu desapareceste. É um erro
das musas distraídas. Não há guindaste que te levante
do coração das águas,
onde apodreceste envolvida no halo do teu amor invisível,
ou recolhida na tua carne rápida, ou ainda
ligeiramente tocada pelo ardor
de uma existência pura. Conheço grandes casas
onde não habitas, flores que cheiro, tarefas
silenciosas que cumpro humildemente, e luzes,
instrumentos de música,
laranjas que devoro sentindo o gosto da vida, desde a garganta
às mais finas raízes das vísceras. Tu
desapareceste.


Imagino que seria possível tocares porventura
a minha boca. Tocares-me tão viva ou tão misteriosamente
que eu estremecesse nas trevas
da cega inspiração. Poderias estar vergada sobre os meus
ombros, até que as lágrimas
na minha boca se confundissem com a ansiosa subtileza
dos teus dedos, e eu me sentisse
perdido entre os pilares e os túneis das cidades
ressoantes.


-Depois talvez pudesses vir com o rosto um pouco coberto de poeira,
e os olhos delicados de mulher restituída,
e os pés brilhando sobre os caminhos do meu silêncio exaltado,
-talvez
pudesses salvar-me, como uma palavra pode
salvar um pensamento, ou uma
breve música pode acordar do abismo inocente
da noite
um instrumento encerrado em suas cordas extenuadas
- e firmes.




HERBERTO HELDER
A Colher na Boca
(1961)

.

Fernando Pessoa (Todo começo é involuntário)






Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.


À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
«Que farei eu com esta espada?»
Ergueste-a, e fez-se.




FERNANDO PESSOA
Mensagem
(1934)

.

22.6.10

Julián Bejarano (A planta de interior)






LA PLANTA INTERNA QUE LE REGALÉ A MI NOVIA PARA SU CUMPLEAÑOS




Con unas monedas que tenía ahorradas
de algún trabajo anterior,
salí a comprarte una planta interna
para que sea de compañía en tu pieza.
Ella no necesita demasiada luz
la podés poner cerca de la ventana
si es que esa es tu voluntad.
Quizás el nombre ayude para que se aferre
bien en su yo. Agua, toma como nosotros
un vasito a la mañana y otro a la noche.
Cuando la veas triste, con sus hojas caídas,
un sol pequeño la pondrá de vuelta en orden.
Ya no somos niños ni queremos serlo
no tengamos hijos, pero por lo menos
que haya algo con vida entre nosotros.


JULIÁN BEJARANO
La Prefabricada
(2009)



[Marcelo Leites]







Com alguns trocos que poupei
de um trabalho anterior,
saí para comprar-te uma planta de interior
que te sirva de companhia em casa.
Não precisa de muita luz
podes pô-la junto da janela
se assim quiseres.
Talvez o nome ajude para se agarrar
bem ao seu eu. Água, quer como nós
um copinho de manhã e outro à noite.
Quando a vires triste, de folhas caídas,
um pouco de sol tornará a pô-la em ordem.
Já não somos crianças, nós, nem queremos ser,
filhos não teremos, mas ao menos que haja
entre nós algo com vida.


(Trad. A.M.)



>>  Cultura Parana (entrevista)

.

21.6.10

20.6.10

Gabriel Zaíd (Pour Marx)







POUR MARX





Querida:

           Qué bien nadas,
sin nada que te vista,
en las aguas heladas
del cálculo egoísta.



Gabriel Zaíd

.

Clarice Lispector (Precisão)






PRECISÃO




O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.


Clarice Lispector

.

19.6.10

Ana Hatherly (Que é voar?)






QUE É VOAR?




Que é voar?
É só subir no ar,
levantar da terra o corpo, os pés?
Isso é que é voar?
Não.


Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre, leve, independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não-vivência.
E isso é voar?
Não.


Voar é humano
é transitório, momentâneo...
Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:
isso é partir
e não voltar.



Ana Hatherly

.

Antonio Orihuela (Os olvidados)






LOS OLVIDADOS




En estos años difíciles,
veo la flor de mi generación
delante de las puertas cerradas.
Florecen, a cambio, las ideas muertas,
y los hombres no son sino sombras de hombres.
Éste
es mi tiempo.


Antonio Orihuela







Nestes anos difíceis,
vejo a flor da minha geração
diante de portas fechadas.
Florescem, em troca, as ideias mortas
e os homens são apenas sombras de homens.
É este
o meu tempo.


(Trad. A.M.)



>>  BABAB (antologia)  /  NODO (outra)  /  Wikipedia



.

18.6.10

Olhar (78)









Nomadização

           (Montalegre>Pitões>Sanabria)


.

Cecília Meireles (Canção)






CANÇÃO




Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para meu sonho naufragar.


Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.


O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...


Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.


Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e minhas duas mãos quebradas.



Cecília Meireles

.

17.6.10

Gabriel Celaya (Despedida)






DESPEDIDA




Quizás, cuando me muera,
dirán: «Era un poeta».
Y el mundo, siempre bello, brillará sin conciencia.


Quizás tú no recuerdes
quién fui, mas en ti suenen
los anónimos versos que un día puse en ciernes.


Quizás no quede nada
de mí, ni una palabra,
ni una de estas palabras que hoy sueño en el mañana.


Pero visto o no visto,
pero dicho o no dicho,
yo estaré en vuestra sombra, ¡oh hermosamente vivos!


Yo seguiré siguiendo,
yo seguiré muriendo,
seré, no sé bien cómo, parte del gran concierto.



Gabriel Celaya



[Cervantes]






Talvez digam, quando eu
morrer: “Era um poeta”.
E o mundo, belo sempre, brilhará sem consciência.


Talvez tu não lembres
quem eu fui, mas soe em ti
o verso anónimo que um dia pus em tosco.


Talvez não reste nada
de mim, nem uma palavra,
nem uma destas palavras que sonho hoje pela manhã.


Mas visto ou não visto,
mas dito ou não dito,
eu estarei na sombra vossa, ó formosamente vivos!


Eu continuarei a continuar,
eu continuarei morrendo,
serei, não sei bem como, parte do grande concerto.


(Trad. A.M.)

.

Alberto Nessi (Rosa de bar)






ROSA DI BAR




Nel secchio nascosto dai pinastri
la rosa ascolta
le voci, l’urto del sacco nel container
le scarpe di chi cerca sull’asfalto
chissà che cosa.
Rosa curiosa.


La rosa guarda
col suo occhio di fragile sorella
dei poeti, chi passa per strada,
senza essere vista, vicina
e lontana dalla gente.
Rosa paziente.



Alberto Nessi






No balde oculto pelos pinheiros
a rosa escuta
as vozes, o choque do saco no contentor
os sapatos de quem busca no chão
sabe-se lá o quê.
Rosa curiosa.


A rosa olha com seu olho de frágil irmã
dos poetas, quem passa na estrada,
sem ser vista, perto
e longe da gente.
Rosa paciente.


(Trad. A.M.)

.

16.6.10

Fernando Assis Pacheco (Bah!)






BAH!




Fora os livros não vejo
muita outra coisa
a que possa chamar
minha propriedade


a gilete? o pente
imitação tartaruga? a tesoura
das unhas?


nem mesmo a roupa
enchendo todo o armário
que se queima com o suor
gasta rasga
desfia em pouco tempo
condenada
por um corpo infeliz
e quando a nova a estrear
faria talvez já
as delícias do adelo


álbuns de fotos?
estojo caneta-lapiseira?
pesa-papéis
deitando a sua neve falsa
sobre o castelo alemão?


inclusive o carro
envelhece mês a mês
sem uso: o prazer de guiar
é coisa dos anúncios
e a gasolina cara
e para quê tirá-lo da rua
para arrumá-lo aonde?
guiem agora as filhas



FERNANDO ASSIS PACHECO
Respiração Assistida
(2003)


.

Javier Galarza (Arquitecta)






ARQUITECTA




como duele
esta impensada calma
esta perfecta geometría
esta arquitectura
esta precisión
con la que lentamente
construyes
un mundo sin mí


Javier Galarza



[Marcelo Leites]






como dói
esta calma impensada
esta perfeita geometria
esta arquitectura
esta precisão
com que lentamente
constróis
um mundo sem mim


(Trad. A.M.)



>>  Javier Galarza-1 + Javier Galarza-2 + Javier Galarza-3 (blogues)  /  Marcelo Leites (4p+nota)



.

15.6.10

Paul Éluard (Tu tapas-te)






Tu te couvres tu t'éclaires
Tu t'endors et tu t'éveilles
Au long des saisons fidèles


Tu bâtis une maison
Et ton coeur la mûrit
Comme un lit comme un fruit


Et ton corps s'y réfugie
Et tes rêves s'y prolongent
C´est la maison des fruits tendres


Et des baisers dans la nuit


Il ne faut pas voir la réalité telle que je suis



PAUL ÉLUARD
Poèmes
(1963)



[Poesia dos dias úteis]






Tu tapas-te tu iluminas-te
Tu adormeces e tu acordas
Ao longo das fiéis estações


Tu fazes uma casa
E teu coração amadurece-a
Como um leito como um fruto


E teu corpo ali se acolhe
E teus sonhos se estendem
É a casa dos frutos doces


E dos beijos durante a noite


Não há que ver a realidade tal como eu sou



(Trad. A.M.)

.

Ruy Belo (Uma forma de me despedir)






UMA FORMA DE ME DESPEDIR




Há o mar há a mulher
quer um quer o outro me chegam em acessíveis baías
abertas talvez no adro amplo das tardes dos domingos
Oiço chamar mas não de uma forma qualquer
chamar mas de uma certa maneira
talvez um apelo ou uma presença ou um sofrimento
Ora eu que no fundo
apesar das muitas palavras vindas nas muitas páginas dos dicionários
bem vistas as coisas dispondo somente de duas palavras
desde a primeira manhã do mundo
para nomear só duas coisas
apenas preciso de as atribuir
Não sei se gosto mais do mar
se gosto mais da mulher
Sei que gosto do mar sei que gosto da mulher
e quando digo o mar a mulher
não digo mar ou mulher só por dizer
Ao dizer o mar a mulher
há penso eu um certo tom na minha voz sinto um certo travo na boca
que mostram que mais que palavras usadas para falar
dizer como eu digo a mulher e o mar
mar mulher assim ditos
são uma maneira talvez de gostar
e a consciência de que se gosta



Ruy Belo

.

14.6.10

Francisco Brines (Causa do amor)






CAUSA DEL AMOR




Cuando me han preguntado la causa de mi amor
yo nunca he respondido: Ya conocéis su gran belleza.
(Y aún es posible que existan rostros más hermosos).
Ni tampoco he descrito las cualidades ciertas de su espíritu
que siempre me mostraba en sus costumbres,
o en la disposición para el silencio o la sonrisa
según lo demandara mi secreto.
Eran cosas del alma, y nada dije de ella.
(Y aún debiera añadir que he conocido almas superiores).


La verdad de mi amor ahora la sé:
vencía su presencia la imperfección del hombre,
pues es atroz pensar
que no se corresponden en nosotros los cuerpos con las almas,
y así ciegan los cuerpos la gracia del espíritu,
su claridad, la dolorida flor de la experiencia,
la bondad misma.
Importantes sucesos que nunca descubrimos,
o descubrimos tarde.
Mienten los cuerpos, otras veces, un airoso calor,
movida luz, honda frescura;
y el daño nos descubre su seca falsedad.


La verdad de mi amor sabedla ahora:
la materia y el soplo se unieron en su vida
como la luz que posa en el espejo
(era pequeña luz, espejo diminuto);
era azarosa creación perfecta.
Un ser en orden crecía junto a mí,
y mi desorden serenaba.
Amé su limitada perfección.



Francisco Brines






Quando me perguntam a causa do meu amor
eu nunca respondo: Sua grande beleza, já a conheceis.
(E depois é possível que haja rostos mais lindos).
Nem tão pouco descrevo as qualidades certas do seu espírito,
que punha à mostra com seus gestos
ou na disposição ao silêncio ou ao sorriso
conforme o pedido do meu segredo.
Eram coisas da alma e dela nada disse.
(Aliás, devia acrescentar que conheci almas superiores).


A verdade do meu amor sei-a agora:
sua presença vencia a humana imperfeição,
pois é terrível pensar
que não dizem em nós os corpos com as almas,
assim cegando os corpos a graça do espírito,
sua claridade, a dorida flor da experiência,
a própria bondade.
Coisas importantes que nunca descobrimos
ou descobrimos tarde.
Mentem os corpos, outras vezes, um calor airoso,
movida luz, frescura profunda;
e o mal mostra-nos sua seca falsidade.


A verdade do meu amor agora a sabeis:
a matéria e o sopro uniram-se em sua vida
tal como a luz que pousa no espelho
(pequena luz, espelho diminuto);
era desgraçada criação perfeita.
Um ser em ordem crescia a meu lado
e serenava minha desordem.
Amei a sua limitada perfeição.


(Trad. A.M.)

.

Rui Knopfli (Naturalidade)






NATURALIDADE




Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.


Não sei se o que escrevo tem raiz a raiz de algum
pensamento europeu.
É provável ... Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.


Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.



Rui Knopfli

.

13.6.10

Ver (47)













>>  Zahara+Olvera(Cádiz)


[El hilo invisible]

.

Fernando Ortiz (A altas horas)






A ALTAS HORAS




En estas horas de noviembre y frío,
inacabable, porque el sueño tarda,
muy avanzada ya la madrugada,
a los cuarenta años de mi vida,
quiero dejarme de literaturas
para contar al fin lo que me importa.

Quedarme sin tabaco, qué fastidio.



FERNANDO ORTIZ
Recado de Escribir
(1990)







Nestas horas de Novembro e frio,
interminável, porque o sono tarda,
madrugada alta,
aos meus quarenta anos de vida,
quero deixar-me de literaturas
para contar por fim o que me importa.

Ficar eu sem tabaco, que chatice.


(Trad. A.M.)

.

12.6.10

Raul de Carvalho (Coração sem imagens)






CORAÇÃO SEM IMAGENS




Deito fora as imagens,
Sem ti para que me servem
as imagens?


Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em toda a parte
e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.


Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.


Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.


Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.


Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.


Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.


E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.



Raul de Carvalho

.

Nuno Júdice (Poema)






POEMA




Quero escrever-te um poema que
tenha um sentido claro como o
que os teus olhos me disseram.


Poderia ser um poema de amor,
tão breve como o instante em
que me deixaste ver os teus olhos.


Mas o que os olhos dizem não cabe
num poema, nem eu sei como se diz
o amor que só os olhos conhecem.



NUNO JÚDICE
O Movimento do Mundo
(1996)

.

11.6.10

Felipe Benítez Reyes (Advertência)






ADVERTENCIA




Si alguna vez sufres — y lo harás —
por alguien que te amó y que te abandona,
no le guardes rencor ni le perdones:
deforma su memoria el rencoroso
y en amor el perdón es sólo una palabra
que no se aviene nunca a un sentimiento.
Soporta tu dolor en soledad,
porque el merecimiento aun de la adversidad mayor
está justificado si fuiste
desleal a tu conciencia, no apostando
sólo por el amor que te entregaba
su esplendor inocente, sus intocados mundos.


Así que cuando sufras — y lo harás —
por alguien que te amó, procura siempre
acusarte a ti mismo de su olvido
porque fuiste cobarde o quizá fuiste ingrato.
Y aprende que la vida tiene un precio
que no puedes pagar continuamente.
Y aprende dignidad en tu derrota,
agradeciendo a quien te quiso
el regalo fugaz de su hermosura.



FELIPE BENÍTEZ REYES, Los Vanos Mundos,
in Trama de Niebla (Poesia Reunida 1978-2002),
Tusquets Editores, Barcelona, 2003







Se algum dia sofreres – e hás-de sofrer –
por alguém que te amou e te abandona,
não lhe guardes rancor nem lhe perdoes:
o rancor deforma a memória
e o perdão no amor é só uma palavra
que não diz jamais com um sentimento.
Suporta a tua dor na solidão,
porque o merecimento mesmo da maior adversidade
é justificado se acaso foste
desleal à tua consciência, não apostando
no amor que te entregava
seu esplendor inocente, seus intocados mundos.


Por isso quando sofreres – e hás-de sofrer –
por alguém que te amou, procura sempre
acusar-te a ti mesmo do seu olvido
porque foste cobarde ou foste talvez ingrato.
E aprende que a vida tem um preço
que não podes pagar continuamente.
E aprende a dignidade em tua derrota,
agradecendo a quem te amou
o presente fugaz da sua beleza.


(Trad. A.M.)

.