28.2.10

Jorge Luis Borges (Tríade)






TRÍADE



O alívio que César terá sentido na manhã de Farsália,
ao pensar: É hoje a batalha.
O alívio que terá sentido Carlos I ao ver a alva no postigo
e pensar: É hoje o dia do patíbulo, da coragem e do cutelo.
O alívio que tu e eu sentiremos no instante que precede a morte,
quando a sorte nos livrar do triste costume de ser alguém
e do peso do universo.


JORGE LUÍS BORGES
Los Conjurados
(1985)


(Trad. A.M.)

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Manuel da Fonseca (Maria Campaniça)






MARIA CAMPANIÇA




Debaixo do lenço azul com sua barra amarela
os lindos olhos que tem!
Mas o rosto macerado
de andar na ceifa e na monda
desde manhã ao sol-posto,
mas o jeito
de mãos torcendo o xaile nos dedos
é de mágoa e abandono...
Ai Maria Campaniça,
levanta os olhos do chão
que eu quero ver nascer o sol!



Manuel da Fonseca

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27.2.10

Manuel António Pina (Esplanada)






ESPLANADA




Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,


agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.


O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.



Manuel António Pina

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26.2.10

Olhar (69)










[Correntes D'Escritas]


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Felipe Benítez Reyes (As meninas)






LAS NIÑAS




Llegan con los tacones sucios del barro de los parques,
con un perfume espeso de flores venenosas.
Llegan con gafas negras, radiantes, despeinadas;
la noche las recubre con un palio morado.
Toman licores densos con aires de tragedia.
Tienen nombres de diosa, de colonia o de gato.
No son invulnerables a las historias tristes
y huyen de madrugada, como lunas esquivas.



Felipe Benítez Reyes








Chegam com os saltos sujos da lama dos parques,
um perfume espesso de flores venenosas.
Chegam de óculos escuros, radiantes, despenteadas;
a noite cobre-as com um manto escarlate.
Tomam licores densos com ares de tragédia.
Têm nomes de deusa, de colónia ou de gato.
Não são invulneráveis a histórias tristes
e fogem de madrugada, como luas esquivas.


(Trad. A.M.)

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Manuel Alegre (Flores para Coimbra)






FLORES PARA COIMBRA



Que mil flores desabrochem. Que mil flores
(outras nenhumas) onde amores fenecem
que mil flores floresçam onde só dores
florescem.


Que mil flores desabrochem. Que mil espadas
(outras nenhumas não)
onde mil flores com espadas são cortadas
que mil espadas floresçam em cada mão.


Que mil espadas floresçam
onde só penas são.
Antes que amores feneçam
que mil flores desabrochem. E outras nenhumas não.



Manuel Alegre

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25.2.10

Luiza Neto Jorge (As sofridas amoras)






AS SOFRIDAS AMORAS




As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos


Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.



Luiza Neto Jorge

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José Emilio Pacheco (Épocas)






ÉPOCAS




Uno siente que el mundo ya se acaba porque cuanto termina
es su vida,
su pobre vida tan independiente de él:
empezó cuando ella misma quiso
y concluirá nadie sabe dónde ni cuándo ni de qué manera.


Morimos con las épocas que se extinguen,
inventamos edenes que no existieron,
tratamos de explicarnos el gran enigma
dé estar aquí un solo largo instante entre el porvenir y el pasado.



José Emilio Pacheco



[Marcelo Leites]







Sentimos que o mundo acaba mas o que termina
é nossa vida
coitada
tão independente daquele:
começou quando entendeu
e há-de acabar ninguém sabe onde
nem quando nem de que modo.


Morremos com as eras que se extinguem,
inventamos édenes não existentes
cuidamos de explicar o grande enigma
de estar aqui um só longo instante
entre o porvir e o passado.


(Trad. A.M.)

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24.2.10

José Rodrigues Miguéis (Levantou-se com esforço)






Levantou-se com esforço, gemendo, meio tonto, a tropeçar no camisão, e, arremangado, foi-se olhar no espelhinho lavrado do toucador: via-se logo que não andava bom.

O carão pesado, sulcado de rugas fundas como cutiladas, habitualmente rubro, tinha uma palidez mortal debaixo da retícula das veias avinhadas.

O cabelo grisalho caía-lhe em farripas empastadas de suor na testa tortulhosa.

Puxou e revirou as pálpebras empapuçadas, e olhou-as por dentro: as córneas verdes pareciam boiar numa posta de sangue.

Abriu a boca enorme, onde poucos dentes negros e cariados lhe restavam, e examinou a língua: grossa, encortiçada, coberta dum sarro lamacento e esverdinhado, quase que nem lhe cabia na boca.

Era aquela língua que, no sonho, o sufocava como uma mordaça!

Apalpou as queixadas, perras e doridas, onde o restolho da barba crescia havia muitos dias, e enfiou os dedos pelas suíças emaranhadas.

Ficou um momento a olhar a imagem, em que mal reconhecia o garboso coronel de cavalos, herói de tantos combates de campo e da cama: que ruína a sua!

E teve pena de si mesmo, uma vontade estúpida, infantil, de chorar.

Da quinta não vinha um rumor mais alto, e o sol ruivo batia os olmeiros e tílias imóveis na calma da tarde, cheia da paz do Senhor.



- JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS, Léah e Outras Histórias (O Morgado de Pedra-Má), 1958.

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23.2.10

José Miguel Silva (Não sei se são os trinta anos)






NÃO SEI SE SÃO OS TRINTA ANOS



Não sei o que se passa comigo:
cada vez me assusta mais a solidão.
Aos vinte anos, aos vinte cinco,
figurava o paraíso como um quarto vazio,
onde o silêncio de um livro ressoava
pela noite dentro. Protegia dos amigos
minhas horas, dos irmãos, dos apelos
do telefone. Como um cego de nascença,
estudava a escuridão. Sonhava-me
recluso numa ilha de fragais, rodeado,
de trincheiras, distante de pracetas,
acenos, convites pra jantar.
O lamento era o meu hobby preferido.


Não sei se são os trinta anos, a chuva,
o sabor de mais um dia derrubado
nos transportes colectivos,
a queda maligna das primeiras folhas;
não sei o que é, talvez o teu amor
comece, pouco a pouco, a civilizar-me.
Agora, se chego a casa e tu não estás,
corro a pôr música, abro janelas,
agarro-me ao telefone, como um náufrago,
incapaz de suportar por um segundo
o terror emboscado debaixo da cama,
atrás das estantes, dentro de mim.


José Miguel Silva



[Mal Situados]

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José Agustín Goytisolo (Pelos cantos de ontem)






POR RINCONES DE AYER




En lugares perdidos
contra toda esperanza
te buscaba.

En ciudades sin nombre
por rincones de ayer
te busqué.

En horas miserables
entre la sombra amarga
te buscaba.

Y cuando el desaliento
me pedía volver
te encontré.



José Agustín Goytisolo







Em perdidos lugares
contra toda a esperança
buscava-te.

Em cidades sem nome
pelos cantos de ontem
busquei-te.

Em horas de miséria
pela sombra amarga
buscava-te.

E quando o desalento
me dizia para voltar
encontrei-te.


(Trad. A.M.)



>>  A media voz (26p)  /  Atlas de Poesia (14p)

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22.2.10

Manoel de Barros (Auto-retrato falado)






AUTO-RETRATO FALADO




Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me sinto como que desonrado e fujo para o Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.



Manoel de Barros

17.2.10

José Agostinho Baptista (Não é música)







NÃO É MÚSICA




Não é música o que ouvimos.
Não é de água este brilho de prata.

Eu estou aqui sobre as pontes do rio.
Outros são os que espreitam pela bruma das margens.

Talvez me lembre:
tu vinhas devagar pelo lado das acácias.
Cingias cada árvore e as colunas, os braços de um
deus cruel, o saber dos templos.

Não é um salmo o que ouvimos.
Não é de harpas este lamento,
não é o ofício das mãos esculpindo um rosto,
não é a palavra de deus que ecoa nas escarpas.

Algures te ocultas e não deixas sinais.
Quem és tu
cujo perfil se desvanece, cuja doçura se perde nos
confins da tarde?

Eu estou aqui onde se unem as margens, onde escurecem
as sendas e as sombras,
onde correm as nuvens, as pedras, as águas.

Outros são os que te aguardam pelo lado das acácias.



José Agostinho Baptista

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16.2.10

Federico Díaz-Granados (Arte poética)







ARTE POÉTICA



En los oratorios de los bares
siempre hay un sueño
que se pliega tras la barra.
Transitan por ellos
viejos fantasmas
con botellas llenas de grilletes
para blindar los gestos del agua.
En el altar
los poetas pueden cantar en el mismo tono de los muertos
mientras los aprendices del incierto
consagran la sangre del silencio.
La poesía
convierte el silencio en asombro,
en sinfonía tocada en piano por el fuego.



Federico Díaz-Granados






Nos oratórios dos bares
há sempre um sonho
dobrando-se atrás do balcão.
Transitam por eles
velhos fantasmas
com garrafas cheias de grilhetas
para blindar os gestos da água.
Os poetas no altar
podem cantar afinados com os mortos
enquanto os apêndices do incerto
consagram o sangue do silêncio.
A poesia
converte o silêncio em assombro,
em sinfonia tocada pelo fogo ao piano.


(Trad. A.M.)

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Um verso (72)






Um verso de Mário-Henrique Leiria
(com duas medidas de gin tónico):






Deixa-me sentar numa nuvem a mais alta e dar pontapés na Lua




Mário-Henrique Leiria

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15.2.10

Ferreira Gullar (Manhã de sol)






MANHÃ DE SOL




Vianinha, Paulinho, Armando Costa
que dia lindo, não?
Estou passando de carro
ao lado do cemitério São João Batista
e quase escuto vocês aí dentro
falando e rindo
debaixo desse sol.


Deve ser bom estar assim entre amigos
livres das aporrinhações da vida
a olhar as nuvens
e os passarinhos
que por aí
passarinham.


Invisíveis,
de que falam vocês
recostados no túmulo de Vinicius de Moraes?
Do CPC? do Opinião? do futuro
da Nova República?
ou simplesmente flutuam
como os ramos
ao fluxo da brisa?
Paro no sinal da Rua Mena Barreto.
- E pode um marxista admitir
conversa entre defuntos?
Não é a morte o fim de tudo?
- É claro, digo a mim mesmo, é claro –
e sigo em frente.


Mas dentro da minha alegria
os três amigos continuam a conversar e a rir
nesta manhã brasileira
que torna implausível a escura morte.



Ferreira Gullar


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Eloy Sánchez Rosillo (Arredores da luz)






ALREDEDORES DE LA LUZ




Casi sin ver la realidad del día
ni la certeza de su claridad,
ando en busca de ti, de los vestigios
de unos años, de un mar, de unos lugares.
Porque la sombra avanza y los astros escriben
sus órdenes fatales en mi frente,
y es triste a solas proseguir la angustia
de los caminos que iniciamos juntos.


Pensar un cuerpo es inventar la noche
de las islas perdidas, el fulgor
olvidado en los brazos de la hierba.
Es difícil ahondar en el silencio,
llenar de amor el hueco que el instante
abre en el grito con que te pronuncio.


No escucho la presencia de tus pasos
vigilando la herida de los versos escritos
ni el temblor desolado de la tarde
deja en mi voz el poso transparente
de lo que ardió y se fue y es ya elegía.


Seguir es regresar, volver al borde
del lecho aquel, de la blancura en llamas.
La soledad me dicta letras anochecidas
y las horas se duermen en el pulso del tiempo.


Vuelve a llamarme. Esparce tus designios
en las proximidades de otra hoguera.
Se acabará el sonido del invierno,
la mirada extendida, la sed de las palabras.
El deseo que recuerda el color de unos ojos
descansará en la tierra que conoce.
Las calles arderán a mediodía
y cantará la luz entre mis manos.



Eloy Sánchez Rosillo







Sem ver quase a realidade do dia
nem a certeza da sua claridade,
ando em busca de ti, dos vestígios
de há anos, de um mar, de certos lugares.
Porque a sombra avança e os astros escrevem
suas ordens fatais na minha frente,
e é triste sozinho prosseguir a angústia
dos caminhos que iniciámos juntos.


Pensar um corpo é inventar a noite
das ilhas perdidas, o fulgor
esquecido nos braços da erva.
É difícil mergulhar no silêncio,
encher de amor o vazio que o instante
abre no grito com que te pronuncio.


Não ouço a presença dos teus passos
vigiando a ferida dos versos escritos
nem o tremor desolado da tarde
deixa em minha voz o repouso transparente
do que ardeu e foi-se e é já elegia.


Continuar é regressar, voltar à beira
do leito, esse, da brancura em chamas.
A solidão dita-me letras anoitecidas
e as horas dormem no pulso do tempo.


Volta a chamar-me. Esparze os teus desígnios
próximo de outra fogueira.
Acabará o som do Inverno,
o olhar estendido, a sede das palavras.
O desejo que lembra a cor de uns olhos
descansará na terra que conhece.
As ruas arderão ao meio-dia
e a luz cantará entre estas mãos.


(Trad. A.M.)

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14.2.10

Olhar (68)










Corno de Bico

(Paredes de Coura)

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João Miguel Fernandes Jorge (Leitura de El Pais)






LEITURA DE EL PAIS




“Tenho 23 anos”, disse.
“Na minha curta vida
já experimentei tudo,
menos o sexo e o casamento. Posso
morrer em qualquer momento. Devo
a mim próprio este prazer”.

Li Lu na Praça Tianamen

“Quem é esse senhor tão raro”?
“Mira, hijo mío, es el Buda, que
ha venido a Pamplona”.


João Miguel Fernandes Jorge

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13.2.10

Dámaso Alonso (Insónia)






INSOMNIO



Madrid es una ciudad de más de un millón de cadáveres
(según las últimas estadísticas).
A veces en la noche yo me revuelvo y me incorporo
en este nicho en el que hace 45 años que me pudro,
y paso largas horas oyendo gemir al huracán, o ladrar los perros,
o fluir blandamente la luz de la luna.
Y paso largas horas gimiendo como el huracán,
ladrando como un perro enfurecido,
fluyendo como la leche de la ubre caliente de una gran vaca amarilla.
Y paso largas horas preguntándole a Dios,
preguntándole por qué se pudre lentamente mi alma,
por qué se pudren más de un millón de cadáveres en esta ciudad
de Madrid,
por qué mil millones de cadáveres se pudren lentamente en el mundo.
Dime, ¿qué huerto quieres abonar con nuestra podredumbre?
¿Temes que se te sequen los grandes rosales del día,
las tristes azucenas letales de tus noches?


Dámaso Alonso







Madrid é uma cidade de mais de um milhão de cadáveres
(segundo as últimas estatísticas).
De noite às vezes eu reviro-me e entro
neste nicho em que apodreço há 45 anos,
passando longas horas a ouvir gemer o furacão, ou ladrar os cães,
ou correr brandamente a luz do luar.
E longas horas passo gemendo como o furacão,
ladrando como um cão enfurecido,
correndo como o leite do ubre quente duma grande vaca amarela.
E passo longas horas interrogando Deus,
perguntando por quê minha alma apodrece lentamente,
por quê apodrece mais de um milhão de cadáveres nesta cidade
de Madrid,
por quê no mundo apodrecem lentamente mil milhões de cadáveres.
Diz-me, que horto queres adubar com a nossa podridão?
Temes que se te sequem os grandes roseirais do dia,
as tristes açucenas letais de tuas noites?


(Trad. A.M.)


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12.2.10

Joaquim Namorado (Auspicioso enlace)






AUSPICIOSO ENLACE




Os pais da menina
são gente fina,
os pais do moço
negociantes por grosso.



Joaquim Namorado

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Raymond Carver (Minha mulher)






MINHA MULHER




Minha mulher desapareceu com a roupa toda.
Esqueceu duas meias de nailon e
uma escova de cabelo atrás da cama.
Eu queria chamar-lhe a atenção
para as meias e para os cabelos
negros agarrados aos dentes da escova.
As meias atiro-as ao balde do lixo; a escova
guardo-a para usá-la. A cama é que
eu estranho e não posso suportar.



Raymond Carver


(Trad. A.M.)



[Marcelo Leites]


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11.2.10

Eliseo Diego (Canção para todas que és)






CANCIÓN PARA TODAS LAS QUE ERES




No solo el hoy fragante de tus ojos amo
sino a la niña oculta que allá dentro
mira la vastedad del mundo con redondo
[azoro, y amo a la extraña gris que me recuerda
en un rincón del tiempo que el invierno
[ampara. La multitud de ti, la fuga de tus horas,
amo tus mil imágenes en vuelo
como un bando de pájaros salvajes.
No solo tu domingo breve de delicias
sino también un viernes trágico, quien
[sabe, y un sábado de triunfos y de glorias
que no veré yo nunca, pero alabo.
Niña y muchacha y joven ya mujer,
[tu todas, colman mi corazón, y en paz las amo.


Eliseo Diego


[Los Poetas]






Não só o hoje fragrante de teus olhos amo
mas a menina oculta que lá dentro
olha a vastidão do mundo com redondo sobressalto,
e amo a estranha cinza que me lembra
num canto do tempo que o Inverno abriga.
A multidão de ti, a fuga de tuas horas,
amo tuas mil imagens em voo
como um bando de aves selvagens.
Não só teu domingo breve de delícias
mas também uma sexta trágica, quem sabe,
e um sábado de triunfos e glórias
que eu não verei nunca, mas louvo.
Menina e rapariga e jovem já mulher, tu todas,
encheis-me o coração e em paz vos amo.


(Trad. A.M.)

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10.2.10

José Rodrigues Miguéis (Como esta gente se ama)






Estou morto de fadiga e de tensão, preciso de dormir, mas é impossível: e dou comigo em pé na cama, crispado e latejante, com as mãos apoiadas à parede, o pescoço esticado e torcido, mais perto do tecto, mais perto deles, a escutar avidamente.

Não quero perder nada do que se passa na intimidade daquele quarto, que já não tem segredos para mim.

Jesus-Senhor, como esta gente se ama!

É de deitar a casa abaixo.

Ela geme cada vez mais alto, grita, diz coisas em voz estrangulada, como quem pede a morte ou a salvação, solta um berro dilacerado, depois um estertor que se prolonga em convulsões, um murmúrio dolente de quem se queixa ou abençoa...

Parece uma agonia.

Tremo como varas verdes, ardo em febre e suo.

E agora o silêncio.

Um dia destes ela fica-lhe nos braços.

E que me importa a mim?



- JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS, Léah e Outras Histórias (Saudades para a Dona Genciana), 1958.



>>  Wikipedia  /  Inst.Camões (JRM)

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Francisco Rodrigues Lobo (Cantiga)






CANTIGA



                     Descalça vai para a fonte,
                     Leonor pela verdura;
                    Vai formosa, e não segura.



A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição,
Saia de cor de limão,
Beatilha soqueixada;
Cantando de madrugada
Pisa as flores na verdura:
Vai formosa, e não segura.


Leva na mão a rodilha,
Feita da sua toalha;
Com uma sustenta a talha,
Ergue com outra a fraldilha;
Mostra os pés por maravilha,
Que a neve deixam escura:
Vai formosa, e não segura.


As flores, por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
Ficam de inveja sem cor,
E de vergonha com graça;
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura:
Vai formosa, e não segura.


Não na ver o Sol lhe val
Por não ter novo inimigo,
Mas ela corre perigo
Se na fonte se vê tal;
Descuidada deste mal
Se vai ver na fonte pura:
Vai formosa, e não segura.



Francisco Rodrigues Lobo

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9.2.10

Cristina Peri Rossi (R.I.P.)






R.I.P.



Ese amor murió
sucumbió
está muerto
aniquilado      fenecido
finiquitado
occiso           perecido
obliterado
muerto
sepultado
entonces,
                   ¿porqué late todavía?



CRISTINA PERI ROSSI
Inmovilidad de los barcos
(1997)

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Renata Correia Botelho (Já ninguém nos toca à porta)






já ninguém nos toca à porta
a vender cerejas.

devíamos talvez lembrar
à terra o nosso nome

plantar sílabas frescas
que nos matem a sede

ter um pingo de esperança
na morte depois da vida.



RENATA CORREIA BOTELHO
Um Circo no Nevoeiro
Averno, 2009.


[Discurso dos dias]


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8.2.10

Fernando Assis Pacheco (Soneto aos filhos)






SONETO AOS FILHOS



Toda a epopeia da família cabe aqui
um avô galego chegado a Portugal rapazinho
outro de ao pé de Aveiro que se meteu
num barco para S. Tomé a fazer cacau


de filhos seus nasci
com este pouco de inútil fantasia
nutrida em solidões nas que me vejo
nu como um bacorinho na pocilga


e como ele indefeso e porém quis
mesmo assim ser mais que o animal
no tutano dos ossos pressentido


não peço nada usai o meu nome
se vos praz lembrai-me
o que for costume


mas livrai-vos do luxo e da soberba



Fernando Assis Pacheco



[Cómo cantaba mayo]


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Claribel Alegria (Ars poetica)






ARS POETICA



Yo,
poeta de oficio,
condenada tantas veces
a ser cuervo
jamás me cambiaría
por la Venus de Milo:
mientras reina en el Louvre
y se muere de tedio
y junta polvo
yo descubro el sol
todos los días
y entre valles
volcanes
y despojos de guerra
avizoro la tierra prometida.


Claribel Alegria





Eu,
poeta de ofício,
condenada tantas vezes
a ser corvo,
jamais trocaria
com a Vénus de Milo:
enquanto ela reina no Louvre
e morre de tédio
e acumula pó
eu descubro o sol
todos os dias
e entre vales
vulcões
e despojos de guerra
contemplo a terra prometida.


(Trad. A.M.)

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7.2.10

Ver (37)










[Jacinto Policarpo]

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Gonçalo M. Tavares (Não pensar no amor)






Não pensar no amor porque o amor não se pensa.
Pensar no amor ou é: não pensar, ou é: não-amor.



GONÇALO M. TAVARES
Investigações. Novalis
Difel, 2002

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6.2.10

Antonio Machado (Andei por muitos caminhos)






HE ANDADO MUCHOS CAMINOS




He andado muchos caminos
he abierto muchas veredas;
he navegado en cien mares
y atracado en cien riberas.


En todas partes he visto
caravanas de tristeza,
soberbios y melancólicos
borrachos de sombra negra.


Y pedantones al paño
que miran, callan y piensan
que saben, porque no beben
el vino de las tabernas.


Mala gente que camina
y va apestando la tierra...


Y en todas partes he visto
gentes que danzan o juegan,
cuando pueden, y laboran
sus cuatro palmos de tierra.


Nunca, si llegan a un sitio
preguntan a donde llegan.
Cuando caminan, cabalgan
a lomos de mula vieja.


Y no conocen la prisa
ni aún en los días de fiesta.
Donde hay vino, beben vino,
donde no hay vino, agua fresca.


Son buenas gentes que viven,
laboran, pasan y sueñan,
y un día como tantos,
descansan bajo la tierra.



Antonio Machado









Andei por muitos caminhos
e abri muitas veredas;
já naveguei em cem mares
e atraquei em cem ribeiras.


Em toda a parte vi
caravanas de tristeza,
soberbos e melancólicos
borrachos de sombra negra.


E pedantões de painel
que olham, calam e pensam
que sabem, porque não bebem
o vinho mau das tabernas.


Gente ruim que caminha
e vai empestando a terra...


E em toda a parte vi
gente que brinca e dança,
se pode, e que lavra
seus quatro palmos de terra.


Nunca, chegando a um lugar,
perguntam onde chegaram.
Quando caminham, cavalgam
no serro da mula velha.


Não sabem o que é a pressa
nem mesmo em dias de festa.
Onde há vinho bebem vinho,
onde não há, água fresca.


Boas pessoas que vivem,
laboram, passam e sonham
e um dia como tantos
descansam debaixo da terra.


(Trad. A.M.)

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5.2.10

Jacques Prévert (Para fazer o retrato dum pássaro)






POUR FAIRE LE PORTRAIT D'UN OISEAU



Peindre d'abord une cage
avec une porte ouverte
peindre ensuite
quelque chose de joli
quelque chose de simple
quelque chose de beau
quelque chose d'utile
pour l'oiseau
placer ensuite la toile contre un arbre
dans un jardin
dans un bois
ou dans une forêt
se cacher derrière l'arbre
sans rien dire
sans bouger...
Parfois l'oiseau arrive vite
mais il peut aussi bien mettre de longues années
avant de se décider
Ne pas se décourager
attendre
attendre s'il le faut pendant des années
la vitesse ou la lenteur de l'arrivée de l'oiseau
n'ayant aucun rapport
avec la réussite du tableau
Quand l'oiseau arrive
s'il arrive
observer le plus profond silence
attendre que l'oiseau entre dans la cage
et quand il est entré
fermer doucement la porte avec le pinceau
puis
effacer un à un tous les barreaux
en ayant soin de ne toucher aucune des plumes de l'oiseau
Faire ensuite le portrait de l'arbre
en choisissant la plus belle de ses branches
pour l'oiseau
peindre aussi le vert feuillage et la fraicheur du vent
la poussière du soleil
et le bruit des bêtes de l'herbe dans la chaleur de l'eté
et puis attendre que l'oiseau se décide à chanter
Si l'oiseau ne chante pas
c'est mauvais signe
signe que le tableau est mauvais
mais s'il chante c'est bon signe
signe que vous pouvez signer
Alors vous arrachez tout doucement
une des plumes de l'oiseau
et vous écrivez votre nom dans un coin du tableau.


Jacques Prévert






Pintar primeiro uma gaiola
com a porta aberta
depois pintar
qualquer coisa de lindo
qualquer coisa de simples
qualquer coisa de belo
qualquer coisa de útil
para o pássaro
encostar depois a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem falar
sem mexer...
Às vezes o pássaro vem logo
mas também pode demorar longos anos
antes de se decidir
Não desanimar
esperar
esperar anos se for preciso
pois a rapidez ou demora do pássaro em aparecer
não tem nada a ver
com o sucesso do quadro
Quando o pássaro aparecer
se aparecer
guardar o maior silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando entrar
fechar devagarinho a porta com o pincel
depois
apagar as grades uma por uma
com cuidado para não tocar nas penas do pássaro
Depois fazer o retrato da árvore
escolhendo o mais belo dos ramos para o pássaro
pintar também a folhagem verde e a frescura do vento
a poeira do sol
e o ruído dos bichos da erva no calor do Verão
e em seguida esperar que o pássaro se decida a cantar
Se o pássaro não cantar
é mau sinal
quer dizer que o quadro não presta
mas se cantar é bom sinal
quer dizer que podes assinar
Então arrancas uma pena do pássaro
muito devagar
e escreves o teu nome num canto do quadro.


(Trad. A.M.)


>>  Xtream (tudo+algo)  /  Wikipedia

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Manoel de Barros (Tributo a J.G.Rosa)






TRIBUTO A J.G.ROSA




Passarinho parou de cantar.
Essa é apenas uma informação.
Passarinho desapareceu de cantar.
Esse é um verso de J.G. Rosa.
Desapareceu de cantar é uma graça verbal.
Poesia é uma graça verbal.


MANOEL DE BARROS
Compêndio para uso dos pássaros
(Poesia reunida 1937-2004)
Quasi Edições, 2007

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4.2.10

Florbela Espanca (Ser poeta)






SER POETA



Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!


É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!


É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!


E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!



FLORBELA ESPANCA
Charneca em Flor
(1930)

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3.2.10

Antonio Gamoneda (Más lembranças)





MALOS RECUERDOS


La vergüenza es un sentimiento revolucionario
(Karl Marx)



Llevo colgados de mi corazón
los ojos de una perra y, más abajo,
una carta de madre campesina.

Cuando yo tenía doce años,
algunos días, al anochecer,
llevábamos al sótano a una perra,
sucia y pequeña.

Con un cable le dábamos y luego
con las astillas y los hierros. (Era
así. Era así. Ella gemía
se arrastraba pidiendo, se orinaba,
y nosotros la colgábamos para pegar mejor).

Aquella perra iba con nosotros a
las praderas y los cuestos. Era
veloz y nos amaba.

Cuando yo tenía quince años,
un día, no sé cómo, llegó a mí
un sobre con la carta de un soldado.

Le escribía su madre. No recuerdo:
“¿Cuándo vienes? Tu hermana no me habla.
No te puedo mandar ningún dinero…”

Y, en el sobre, doblados, cinco sellos
y papel de fumar para su hijo.
“Tu madre que te quiere”. No recuerdo
el nombre de la madre del soldado.

Aquella carta no llegó a su destino:
yo robé al soldado su papel de fumar
y rompí las palabras que decían
el nombre de su madre.

Mi vergüenza es tan grande como mi cuerpo,
pero aunque tuviese el tamaño de la tierra
no podría volver y despegar
el cable de aquel vientre ni enviar
la carta del soldado.



Antonio Gamoneda







Pendurados do coração tenho
uns olhos de cadela e, mais abaixo,
uma carta de mãe camponesa.

Quando eu tinha doze anos,
alguns dias, ao escurecer,
íamos para a cave com uma cadela,
pequena e muito suja.

Dávamos-lhe com uma corda e a seguir
com as lascas e os ferros. (Era
assim. Era assim. Ela gania,
pelo chão a pedir, mijava-se e
nós pendurávamo-la para ser ainda melhor).

Essa cadela ia connosco
para os campos e quebradas. Era
veloz e amava-nos.

Quando eu tinha quinze anos,
não sei como, um dia chegou-me
ela com uma carta de um soldado.

Escrita pela mãe. Já não me lembro:
“Quando é que vens? Tua irmã não me fala.
Dinheiro não te posso mandar...”

E, dentro do envelope, dobrados,
cinco selos e papel de fumar para o filho.
“Tua mãe que te ama”. Não recordo já
o nome da mãe do soldado.

Essa carta não chegou ao destino:
eu roubei o papel de fumar ao soldado
e rasguei as palavras que diziam
o nome da mãe.

A minha vergonha é tão grande como este meu corpo,
mas mesmo que tivesse o tamanho da terra,
eu não era capaz de voltar atrás e tirar a corda à cadela
nem de enviar a carta do soldado.


(Trad. A.M.)


> Dedicado a Pedro C., que enviou o original

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Cesare Pavese (Passarei pela Praça de Espanha)






PASSERÒ PER PIAZZA DI SPAGNA




Sarà un cielo chiaro.
S'apriranno le strade
sul colle di pini e di pietra.
il tumulto delle strade
non muterà quell'aria ferma.
I fiori spruzzati
di colori alle fontane
occhieggeranno come donne
divertite. Le scale
le terrazze le rondini
canteranno nel sole.
S'aprirà quella strada,
le pietre canteranno,
il cuore batterà sussultando
come l'acqua nelle fontane -
sarà questa la voce
che salirà le tue scale.
Le finestre sapranno
l'odore della pietra e dell'aria
mattutina. S'aprirà una porta.
il tumulto delle strade
sarà il tumulto del cuore
nella luce smarrita.

Sarai tu - ferma e chiara.


Cesare Pavese







O céu estará límpido.
As ruas abrir-se-ão
na colina de pinheiros e de pedra.
O tumulto das ruas
não mudará esse ar parado.
As flores das fontes
salpicadas de cores
abrirão os olhos como mulheres
divertidas. As escadas
os terraços as andorinhas
cantarão ao sol.
Abrir-se-á aquela rua,
as pedras cantarão,
o coração baterá em sobressalto
como a água nas fontes -
será esta a voz
que subirá as tuas escadas.
As janelas saberão
o odor da pedra e do ar
matinal. Abrir-se-á uma porta.
O tumulto das ruas
será o tumulto do coração
na luz extraviada.

Serás tu - quieta e clara.




[Casa dos Poetas]


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2.2.10

Sophia de Mello Breyner Andresen (Para Ruy Cinatti)






PARA RUY CINATTI
AUSENTE EM TIMOR E ALGURES
APÓS CINCO ANOS SEM NOTÍCIAS



Aquele que partiu
precedendo os próprios passos como um jovem morto
deixou-nos a esperança.


Ele não ficou para connosco
destruir com amargas mãos seu próprio rosto.
Intacta é a sua ausência
como a estátua de um deus
poupada pelos invasores de uma cidade em ruínas.
Ele não ficou para assistir
à morte da verdade e à vitória do tempo.
Que ao longe,
na mais longínqua praia,
onde só haja espuma, sal e vento,
ele se perca, tendo-se cumprido
segundo a lei do seu próprio pensamento.


E que ninguém repita o seu nome proibido.



Sophia de Mello Breyner Andresen

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Angel González (Às vezes, em Outubro)






A VECES, EN OCTUBRE, ES LO QUE PASA...




Cuando nada sucede,
y el verano se ha ido,
y las hojas comienzan a caer de los árboles,
y el frío oxida el borde de los ríos
y hace más lento el curso de las aguas;


cuando el cielo parece un mar violento,
y los pájaros cambian de paisaje,
y las palabras se oyen cada vez más lejanas,
como susurros que dispersa el viento;


entonces,
ya se sabe,
es lo que pasa:


esas hojas, los pájaros, las nubes,
las palabras dispersas y los ríos,
nos llenan de inquietud súbitamente
y de desesperanza.


No busquéis el motivo en vuestros corazones.
Tan sólo es lo que dije:
lo que pasa.



Ángel González







Quando nada sucede,
e o Verão terminou,
e as folhas começam a cair das árvores,
e o frio oxida a beira dos rios
e torna mais lento o curso das águas;


quando o céu parece um mar violento,
e os pássaros mudam de paisagem,
e as palavras se ouvem cada vez mais longe,
como sussurros que o vento espalha;


então,
é sabido,
é o que acontece:


tais folhas, os pássaros, as nuvens,
as palavras dispersas e os rios,
enchem-nos, súbito, de inquietação
e desespero.


Não busqueis o motivo no coração.
É apenas o que eu disse:
o que acontece.



(Trad. A.M.)

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