28.4.09

Héctor Rojas Herazo (Uma lição de inocência)









UNA LECCIÓN DE INOCENCIA





Van Gogh pintó una vez
el retrato del mundo.
Allí estaba todo:
las flores que se abren
y las puertas que se cierran,
los días de llanto
y los días de oro
los senderos y los sueños,
los ramajes y las palomas.
También un niño
mirando dos amantes
y también la hora del nacimiento
y la muerte de cada hombre.
Para lograr ese retrato, Van Gogh
no tuvo sino que pintar una silla.




Héctor Rojas Herazo









Van Gogh pintou uma vez
o retrato do mundo.
Estava lá tudo:
as flores que se abrem
e as portas que se cerram,
os dias de pranto
e os dias de ouro
os carreiros e os sonhos,
os ramos e as pombas.
Também um menino
olhando para dois amantes
e também a hora do nascimento
e da morte de cada homem.
Para fazer esse retrato, Van Gogh
teve só que pintar uma cadeira.


(Trad. A.M.)




Bertolt Brecht (Perguntas de um operário letrado)









PERGUNTAS DE UM OPERÁRIO LETRADO







Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
da Lima dourada moravam os seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China, para onde
foram os seus pedreiros? A grande Roma
está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
só tinha palácios
para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
na noite em que o mar a engoliu
viu afogados gritar por seus escravos.



O jovem Alexandre conquistou as Índias.
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos.
Quem mais a ganhou?



Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?



Tantas histórias
Quantas perguntas





Bertolt Brecht




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Maria Sanz (Alguém que não eu)






ALGUÉM QUE NÃO EU



Alguém que não eu cobra a conta
das horas felizes, das tardes
em que teve o amor como aliado,
das noites lavradas corpo a corpo.


Alguém que não eu sai de casa
e quebra os grilhões, como quem,
após cumprir com sua dor, um dia
qualquer se escapou da morte.


Esse alguém levanta
o coração para o céu;
abarca o horizonte
e escolhe seu destino,
embora no fim penetre
dentro de mim e escreva.


María Sanz


(Trad. A.M.)



[Cervantes]




Fontes: Cervantes (perfil+biblio+imagem+ antologia(pdf-72) / A media voz (22p) / María Sanz (blogue) / Wikipedia


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26.4.09

Ver (18)










............

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Pedro Mexia (Vamos morrer)









VAMOS MORRER





Vamos morrer, mas somos sensatos,
e à noite, debaixo da cama,
deixamos, simétricos e exactos,
o medo e os sapatos.





PEDRO MEXIA
Senhor Fantasma (2007)


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Vinicius de Moraes (A casa)









A CASA






Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque a casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na Rua dos Bobos
Número Zero.



Vinicius de Moraes


.


24.4.09

Jorge Luís Borges (Fragmentos de um evangelho apócrifo)









FRAGMENTOS DE UM EVANGELHO APÓCRIFO







3. Desventurado o pobre de espírito, porque debaixo da terra
será o que é agora na terra.

4. Desventurado o que chora, porque possui o hábito miserável do pranto.

5. Ditoso aquele que sabe que o sofrimento não é uma coroa de glória.

6. Não basta ser o último para ser alguma vez o primeiro.

7. Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm.

8. Feliz o que perdoa aos outros e o que perdoa a si mesmo.

9. Bem aventurados os mansos, porque não condescendem com a discórdia.

10. Bem aventurados os que não têm fome de justiça, porque sabem que a nossa sorte, adversa ou piedosa, é fruto do acaso, insondável.

11. Bem aventurados os misericordiosos, porque a sua fortuna está na prática da misericórdia e não na esperança de um prémio.

14. Ninguém é o sal da terra, ninguém, em momento nenhum da vida, jamais.

40. Não julgues a árvore pelos frutos, nem o homem por suas obras; podem ser piores ou melhores. (…)





JORGE LUIS BORGES
Elogio de la Sombra (1969)



(Trad. A.M.)


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António Reis (Um espaço interior)









Um espaço interior
criei
nestes poemas


onde estalam os móveis
e os sentidos


onde as ideias
a meia-luz
respiram


e a vida
as imagens
não se reflectem
nos vidros



ANTÓNIO REIS
Novos Poemas Quotidianos
(Porto,1959)




[António Reis]


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Coitado do Jorge (56)








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Ela tratava os cães como pessoas…
Claro, as pessoas tratava-as como cães.


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22.4.09

Olhar (46)

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Barra > S. Jacinto

(Ilhavo)
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Um verso (52)









Um verso de Ruy Belo
(outro mais):






A vida é uma coisa a que me habituei.


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Ana Paula Inácio (Ó Cesar)









Ó CESAR






não sou uma mulher moderna
não me ligo à net
gosto de compras ao vivo
cujas listas faço em cadernos de argolas
que depois esqueço
e só me lembro de elixir para aclarar a voz,
tenho tantas embalagens
como Warhol de Tomato Soup
ou de detergente Brillo,
para que ao chegares a casa
te envolva, te abrace e te queira
mas nem só de voz vive o homem,
dizes tu,
e então a minha saúda-te
como a daqueles que vão morrer.




Ana Paula Inácio


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Álvaro Mutis (Lied da noite)










LIED DE LA NOCHE






Y, de repente,
llega la noche
como un aceite
de silencio y pena.
A su corriente me rindo
armado apenas
con la precaria red
de truncados recuerdos y nostalgias
que siguen insistiendo
en recobrar el perdido
territorio de su reino.
Como ebrios anzuelos
giran en la noche
nombres, quintas,
ciertas esquinas y plazas,
alcobas de la infancia,
rostros del colegio,
potreros, ríos
y muchachas
giran en vano
en el fresco silencio de la noche
y nadie acude a su reclamo.
Quebrantado y vencido
me rescatan los primeros
ruidos del alba,
cotidianos e insípidos
como la rutina de los días
que no serán ya
la febril primavera
que un día nos prometimos.



Álvaro Mutis








E, de repente,
chega a noite
como um óleo
de silêncio e mágoa.
à sua corrente me rendo
armado apenas
da precária rede
de truncadas lembranças e saudades
que vão insistindo sempre
em retomar o perdido
território do seu reino.
Como ébrios anzóis
rodam na noite
nomes, quintas,
certas esquinas e praças,
alcovas da infância,
caras do colégio,
campinas, rios
e raparigas
rodam em vão
no silêncio fresco da noite
e ninguém acorre à chamada.
Quebrantado e vencido
me resgatam os primeiros
ruídos da alba,
diários e insípidos
como a rotina dos dias
que não serão já
a primavera febril
que um dia nos prometemos.


(Trad. A.M.)


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18.4.09

Ver (17)

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Santa Maria
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(Açores)
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António Ramos Rosa (No silêncio da terra)










NO SILÊNCIO DA TERRA






No silêncio da terra. Onde ser é estar.
A sombra se inclina.
Habito dentro da grande pedra de água e sol.
Respiro sem o saber, respiro a terra.
Um intervalo de suavidade ardente e longa.
Sem adormecer no sono verde.
Afundo-me, sereno,
flor ou folha sobre folha abrindo-se,
respirando-me, flectindo-me
no intervalo aberto. Não sei se principio.
Um rosto se desfaz, um sabor ao fundo
da água ou da terra,
o fogo único consumindo em ar.
Eis o lugar em que o centro se abre
ou a lisa permanência clara,
abandono igual ao puro ombro
em que nada se diz
e no silêncio se une a boca ao espaço.
Pedra harmoniosa
do abrigo simples,
lúcido, unido, silencioso umbigo
do ar.

o teu corpo
renasce
à flor da terra.
Tudo principia.




ANTÓNIO RAMOS ROSA
A Pedra Nua (1972)




José Fernandes Fafe (Poente)




[A-lua-flutua]









País-1 (Jorge de Sena)

País-2 (A. O'Neill)

País-3 (Jorge de Sena)

País-4 (A. O'Neill)

País-5 (Ruy Belo)

País-6 (M. Alegre)

País-7 (N. Júdice)

País-8 (J.F.Fafe)








POENTE



Compreende-se tudo,
de repente:


São oito séculos a ver o Sol morrer
afogado no mar,
diariamente.



José Fernandes Fafe


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Casimiro de Brito (De canto em canto)









Silêncio-1 (Eugénio A.)

Silêncio-2 (M.Quintana)

Silêncio-3 (Andrés Eloy)

Silêncio-4 (A.Mattos)

Silêncio-5 (David M.F.)


Silêncio-7 (M.Quintana)

Silêncio-8 (E.Diego)

Silêncio-9 (cummings)

Silêncio-10 (Casimiro B.)








De canto em canto
vou caindo
no charco do silêncio.




Casimiro de Brito


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17.4.09

Julio Cortázar (Happy new year)










HAPPY NEW YEAR





Mira, no pido mucho,
solamente tu mano, tenerla
como un sapito que duerme así contento.
Necesito esa puerta que me dabas
para entrar a tu mundo, ese trocito
de azúcar verde, de redondo alegre.
¿No me prestás tu mano en esta noche
de fìn de año de lechuzas roncas?
No puedes, por razones técnicas.
Entonces la tramo en el aire, urdiendo cada dedo,
el durazno sedoso de la palma
y el dorso, ese país de azules árboles.
Así la tomo y la sostengo,
como si de ello dependiera
muchísimo del mundo,
la sucesión de las cuatro estaciones,
el canto de los gallos, el amor
de los hombres.




Julio Cortázar


[Os livros ardem mal]






Vê tu, não peço muito,
apenas a tua mão, segurá-la
como um sapito a dormir todo contente.
Preciso dessa porta que me davas
para entrar no teu mundo, esse torrão
de açúcar verde, de campo alegre.
Não me emprestas a mão nesta noite
de fim de ano de corujas ronqueiras?
Não podes, por razões técnicas.
Então teço-a no ar, urdindo cada dedo,
o pêssego sedoso da palma
e o dorso, esse país de árvores azuis.
Assim a tomo e mantenho-a,
como se disso dependesse
a sorte do mundo,
a sucessão das quatro estações,
o canto dos galos, o amor
dos homens.



(Trad. A.M.)



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16.4.09

Ibne Mucana Alisbuni (Poema de Alcabideche)







POEMA DE ALCABIDECHE



Ó tu que habitas Alcabideche!
Oxalá nunca te faltem cereais para semear
nem cebolas nem abóboras!
Se és homem resolvido precisas de um moinho
que trabalhe com as nuvens
sem dependeres dos regatos.
Quando o ano é bom
a terra de Alcabideche não vai
além de vinte cargas de cereais.
Se rende mais, então sucedem-se,
ininterruptamente e em grupos compactos,
os javalis dos descampados.

Alcabideche pouco tem do que é bom e útil,
como eu próprio quase surdo como sabes.

Deixei os reis cobertos com seus mantos
e renunciei a acompanhá-los nos cortejos ...

Eis-me em Alcabideche colhendo silvas
com uma podoa ágil e cortante.

Se te disserem: gostas deste trabalho?,
responde: sim.
O amor da liberdade é o timbre de um carácter nobre.

Tão bem me governaram o amor
e os benefícios de Abu Bacre Almodafar
que parti para um campo primaveril.


Ibne Mucana Alisbuni


- Alcabideche (séc. XI)



>>Cronicas-portuguesas (Ibne Mucana+Alcabideche+Moinhos)

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13.4.09

Eloy Sánchez Rosillo (A luz)




[Agrafo]



LA LUZ



No se puede prever. Sucede siempre
cuando menos lo esperas. Puede pasar que vayas
por la calle, deprisa, porque se te hace tarde
para echar una carta en correos, o que
te encuentres en tu casa por la noche, leyendo
un libro que no acaba de convencerte; puede
acontecer también que sea verano
y que te hayas sentado en la terraza
de una cafetería, o que sea invierno y llueva
y te duelan los huesos; que estés triste o cansado,
que tengas treinta años o que tengas sesenta.
Resulta imprevisible. Nunca sabes
cuándo ni cómo ocurrirá.

 
Transcurre
tu vida igual que ayer, común y cotidiana.
"Un día más", te dices. Y de pronto,
se desata una luz poderosísima
en tu interior, y dejas de ser el hombre que eras
hace sólo un momento. El mundo, ahora,
es para ti distinto. Se dilata
mágicamente el tiempo, como en aquellos días
tan largos de la infancia, y respiras al margen
de su oscuro fluir y de su daño.
Praderas del presente, por las que vagas libre
de cuidados y culpas. Una acuidad insólita
te habita el ser: todo está claro, todo
ocupa su lugar, todo coincide, y tú,
sin lucha, lo comprendes.


Tal vez dura
un instante el milagro; después las cosas vuelven
a ser como eran antes de que esa luz te diera
tanta verdad, tanta misericordia.
Mas te sientes conforme, limpio, feliz, salvado,
lleno de gratitud. Y cantas, cantas.


Eloy Sánchez Rosillo




É imprevisível. Sucede sempre
quando menos se espera. Pode ser que vás
rua fora, depressa, porque se te faz tarde
para pôr uma carta no correio, ou que
estejas em casa à noite, lendo
um livro que não te convence; pode
acontecer também que seja verão
e que te hajas sentado na esplanada
de um café, ou que seja Inverno e chova
e te doam os ossos; que estejas triste ou cansado,
que tenhas trinta anos ou tenhas setenta.
Não se pode prever. Nunca se sabe
quando nem como ocorrerá.


Tua vida
transcorre igual a ontem, vulgar e quotidiana.
“Um dia mais”, dizes tu. E, de repente,
desata-se uma luz poderosíssima
no teu peito, e deixas de ser a pessoa que eras
há momentos. O mundo, agora,
para ti é diferente. Dilata-se
magicamente o tempo, como naqueles dias
compridos da infância, e respiras à margem
de seu obscuro fluir e seu dano.
Campinas do presente, por onde vagas livre
de cuidados e culpas. Uma acuidade insólita
habita-te o ser: está claro tudo,
tudo ocupa seu lugar, tudo coincide, e tu,
sem luta, entende-lo.


Dura talvez
um instante o milagre; depois as coisas voltam
a ser como eram antes de essa luz te dar
tanta verdade, tanta misericórdia.
Mas sentes-te bem, limpo, feliz, salvo,
cheio de gratidão. E cantas, cantas.

 
(Trad. A.M.)

 
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Ruy Belo (Morte ao meio-dia)










MORTE AO MEIO-DIA






No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça



Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul



que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada.
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol



No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente



E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transistor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol



Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?



Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento



O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia



A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer



Ruy Belo


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11.4.09

A.M.Pires Cabral (Não há poema)








NÃO HÁ POEMA





Não há poema que valha o oboé
oculto na voz desta cautelosa
ave ribeirinha
que vai monologando numa língua
que os poetas desconhecem
- mas se obstinam em arremedar.




A. M. Pires Cabral


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Gonçalo M. Tavares (O dinheiro)










O DINHEIRO





Se dois biliões caírem no terraço
de duas crianças estúpidas
serão transformados em papéis pequenos e inúteis,
soldados de um qualquer batalha infantil. Daí a importância
dos Bancos e do modo exaustivo como desenvolvem
o mapa do comércio e da chantagem. O dinheiro
deve cair sempre nas mãos de quem conhece os seus segredos,
porque não se trata, lá está, de uma brincadeira de crianças.




Gonçalo M. Tavares




10.4.09

Silvia Ugidos (Do medo)










DEL MIEDO





Cuando era pequeña
el miedo me esperaba todas las noches
debajo de la cama a la hora de dormir,
bastaba entonces
la súplica infantil de un vaso de agua
para sentir por el pasillo los pasos de mi padre
que acercaban
el talismán seguro para ahuyentar fantasmas
y ya no se atrevían a salir
los monstruos del armario
ni la luz de la lámpara acercaba a proyectar
sobre la colcha su sombra macabra
y detrás de las cortinas el hombre del saco
se hacía pequeño, pequeñísimo hasta desaparecer.



Ahora el miedo me acecha en todas partes,
no respeta los ritos
y se presenta siempre cuando menos lo espero
susurrando que nada dura eternamente
con la voz de algún muerto que regresa a mi sueño
para pedirme un vaso de agua.



Silvia Ugidos


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Quando eu era pequena
o medo esperava-me todas as noites
debaixo da cama na hora de dormir,
bastava então
a súplica infantil dum copo de água
para sentir os passos de meu pai
no corredor
trazendo o talismã seguro de afastar fantasmas
e os monstros já não se atreviam
a sair do armário
nem a luz da lâmpada dava para projectar
sobre a colcha a sua sombra macabra
e atrás das cortinas o homem do saco
fazia-se pequeno, pequeníssimo, até desaparecer.


Agora o medo assedia-me em todo o lado
não respeita os ritos
e aparece sempre quando menos o espero
sussurando que nada dura eternamente
com a voz de um morto que volta ao meu sonho
pedindo-me um copo de água.



(Trad. A.M.)




Fontes: Um-buraco-na-sombra (4p) / La nueva España (nota crítica) / Wikipedia


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Joaquim Namorado (Metam o burro)










METAM O BURRO NA GAIOLA






Metam o burro na gaiola
de doiradas grades
e tratem-no a alpista
se quiserem
- é só um despropósito



Mas esperar dele o trinar
do canário melodioso
é simplesmente tolo




Joaquim Namorado



[Outra margem]



9.4.09

Vitorino Nemésio (Fava ou recordações)








(Fava ou recordações…)






Que rico dia para semear seja o que for: fava ou recordações!

Para a fava começa a ser tarde, que já se vêem campos aflorados de faveirinhas tímidas, ainda afogadas pela terra empapada e pelo trevo.

Mas para recordações é sempre tempo.

É só meter a mão no saco e tirar.

Quanto mais do fundo, melhor!

As sementes fundeiras são menos arejadas, menos passadas ao crivo; e, assim, é sempre possível que venha no meio do grão estreme alguma papoila ou ervilhaca.

Quem disse que as searas sem monda são as mais proveitosas?

Uma papoila encarnada alegra sempre um trigal; e, quanto à ervilhaca, se não e bonita em seara, é bem-vinda na joeira ao dedo da escolhedora.

Se não houvesse ervilhacas nos granéis, haveria joeiras e joeireiros?

Para quê mós e moleiros senão para se roubar um pouco nas maquias?

A virtude não floresce sem algum pecado ao lado.

O mal e o bem integram o universo moral.




- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, 1956, Histórias de Mateus Queimado (Freiras da Praia).





Consultar: DGLB (bio-biblio-excertos-linques) / Revista da Armada (Nemésio e o mar)




Olhar (47)

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Amalia Bautista (A dieta)










A DIETA





Me acosté sin cenar, y aquella noche
soñé que te comía el corazón.
Supongo que sería por el hambre.
Mientras yo devoraba aquella fruta,
que era dulce y amarga al mismo tiempo,
tú me besabas con los labios fríos,
más fríos y más pálidos que nunca.
Supongo que sería por la muerte.



Amalia Bautista





Deitei-me sem jantar e durante a noite
sonhei que te comia o coração.
Devia ser da fome.
Enquanto devorava essa fruta,
amarga e doce ao mesmo tempo,
tu beijavas-me com os lábios frios,
mais frios e mais pálidos que nunca.
Devia ser da morte.

(Trad. A.M.)


[Cleópatra]

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David Mourão-Ferreira (Entre a sombra e o corpo)










ENTRE A SOMBRA E O CORPO





Nada menos efémero
que uma taça e um ceptro
no deserto




Profundíssimos poços
de água vinda dos trópicos
os teus olhos




Só tu e uma serpente
me conhecem por dentro
desde sempre




Cintilação de luas
assim que te desnudas
às escuras




Uma fresta Uma réstia
de luz que se diverte
a sorver-te




As falésias calcárias
do teu corpo E as algas
Uma praia




David Mourão-Ferreira


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3.4.09

Sophia de Mello Breyner Andresen (Esta gente)














ESTA GENTE












Esta gente cujo rosto
às vezes luminoso
e outras vezes tosco


ora me lembra escravos
ora me lembra reis


faz renascer meu gosto
de luta e de combate
contra o abutre e a cobra
o porco e o milhafre


pois a gente que tem
o rosto desenhado
por paciência e fome
é a gente em quem
um país ocupado
escreve o seu nome


e em frente desta gente
ignorada e pisada
como a pedra do chão
e mais do que a pedra
humilhada e calcada


meu canto se renova
e recomeço a busca
de um país liberto
de uma vida limpa
e de um tempo justo



Sophia de Mello Breyner Andresen

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José Carlos Ary dos Santos (A cidade)








A CIDADE





A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.



A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.



A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.



A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.



J.C. Ary dos Santos




Fontes: As Tormentas (18p) / I.S.T. (12p) / Porto de Abrigo (5p) / Wikipedia
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Héctor Rojas Herazo (Um agulheiro)









UN AGUJERO





Le pregunté al tendero gordo,
con toda seriedad:
– ¿Usted es Dios, señor?
Y él me responde,
mientras corta trocitos de jamón,
mientras mueren
poco a poco sus ojos:
– No, no soy Dios, pero sí lo conozco.
–¿Cómo es él? – le pregunto.
Y el me responde: – Es así.
Y me da su tamaño, su peso, sus medidas.



Héctor Rojas Herazo






Perguntei ao tendeiro gordo,
muito sério:
- Ó senhor, o senhor é Deus?
E vai ele assim,
cortando pedacinhos de presunto,
enquanto lhe amortecem
os olhos pouco a pouco:
- Não, eu cá não sou Deus, mas conheço-o.
- Como é que ele é? – pergunto.
E ele então responde-me: - É assim.
E dá-me o tamanho, o peso, as medidas.


(Trad. A.M.)


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Fontes: Poetry international (10p+perfil+biblio+linques) / Wikilearning (Poesia e pintura de H.R.H.)
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1.4.09

Ver (16)

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Eduardo Pitta (Temos das coisas)







Temos das coisas a lembrança das viagens
ignotas. E o sentido delas estilhaça
no primeiro espelho da memória.


Como aquelas noites muito brancas
povoadas de crimes inenarráveis.


Também as nossas mãos, vorazes,
tacteiam um percurso de sangue:
o de inquestionáveis desígnios do amor.



Eduardo Pitta




Um verso (51)



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