30.1.09

Ver (12)

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[Entramula]
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Konstantin Simonov (Espera-me)









ESPERA-ME





Espera-me e eu voltarei,
mas espera-me muito.
Espera-me quando cair a neve
e chegarem as chuvas tristes,
quando chegar o calor,
não deixes de esperar.
Espera-me, quando já
ninguém esperar e se tiver
esquecido já o ontem.
Espera-me mesmo que as cartas
não cheguem de longe.
Espera-me quando todos
estiverem já fartos de esperar.
Espera-me e eu voltarei,
não ames – peço-te –
quem repetir de memória
que é tempo já de olvidar;
mesmo que mãe e filho julguem
que eu não existo mais.
Deixa que os amigos, ao lume,
se cansem de esperar e bebam
vinho amargo em memória de mim.
Espera-me e não
te apresses a beber com eles.
Espera-me e eu voltarei,
para que a morte se encha de raiva.
O que nunca me esquecer
dirá talvez de mim: coitado, teve sorte.
Jamais compreenderão
aqueles que jamais esperaram.
Tu é que me salvaste do fogo.
De como sobrevivi
saberemos tu e eu,
porque simplesmente me esperaste,
como ninguém me esperou.



Konstantin Simonov


(Trad. A.M.)

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Fontes: Simonov (27p+perfil+inglês) / Answers.com (bio) / Wikipedia

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28.1.09

Coitado do Jorge (51)








CRIMINOSAS DE PAZ




Criminosos de guerra?
Criminosos de guerra?
Então e essas criminosas de paz?
Não se fala delas?


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Carlos Drummond de Andrade (Quero)









QUERO





Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.
Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?
Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
De contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.
Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.
No momento em que não me dizes:Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amaste antes.
Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.




Carlos Drummond de Andrade


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26.1.09

Pedro Mexia (Ela disse)









Ela disse
você ia ter uma morte nada bonita
o fígado que se desfaz humanamente até ao fim
eu disse
mas isso já aconteceu com o meu coração





PEDRO MEXIA
Senhor Fantasma (2007)


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Ruy Belo (Cinco palavras)











CINCO PALAVRAS CINCO PEDRAS






Antigamente escrevia poemas compridos
Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema
São elas: desalento prostração desolação desânimo
E ainda me esquecia de uma: desistência
Ocorreu-me antes do fecho do poema
e em parte resume o que penso da vida
passado o dia oito em cada mês
Destas cinco palavras me rodeio
e delas vem a música precisa
para continuar. Recapitulo:
desistência desalento prostração desolação desânimo
Antigamente quando os deuses eram grandes
eu sempre dispunha de muitos versos
Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas




Ruy Belo




23.1.09

Vitorino Nemésio (Buarcos)



. . . . . . [Jorge Rodrigues]





(Buarcos)






Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno - diz o ditado.

Mas só à borda do mar se faz (quando faz) o dito certo.

Anos há que trazem a amostra do Outono ao arrepio do horizonte.

Uma primeira andorinha deserta o beiral encalmado da casinha do pescador.

Já não se sabe bem se é a que arribou em Março ou a que ela própria chocou.

Filhas e mães, na espécie, têm quase a mesma envergadura, irmanam-se no voo e nas voltas à busca do cibo.

O vento ponteiro à praia de Buarcos arrepiou os juncos e as tamargueiras empoadas na casca da estrada troada pelas carroças do peixe e pelos carros de bois da rede.

Já abana os toldos remendados das barracas de banho pobres e, pela terra dentro, nos campinhos de milho encamisado, um esboço de tufão do equinócio cria uma intimidade outoniça nas figueiras sujas de pó.

Voltarão ainda as calmas do Agosto continental e do Setembro das colheitas, mas os céus de pérola e chumbo já aí estão planeados: as malhas do banhista já servem para recatar a pele susceptível.



- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, 1956, Histórias de Mateus Queimado (O lagosteiro do lugre).




Rosario Castellanos (Amanhecer)









AMANECER




Qué se hace a la hora de morir? Se vuelve la cara a la pared?
Se agarra por los hombros al que está cerca y oye?
Se echa uno a correr, como el que tiene
las ropas incendiadas, para alcanzar el fin?


Cuál es el rito de esta ceremonia?
Quién vela la agonía? Quién estira la sábana?
Quién aparta el espejo sin empañar?


Porque a esta hora ya no hay madre y deudos.
Ya no hay sollozo. Nada más que un silencio atroz.


Todos son una faz atenta, incrédula
de hombre de la otra orilla.


Porque lo que sucede no es verdad.


Rosario Castellanos








Que se faz na hora da morte? Vira-se a cara para a parede?
Agarra-se pelos ombros quem está ao pé a ouvir-nos?
Deitamo-nos a correr, como quem tem
fogo na roupa, para chegar ao fim?


Qual é o rito dessa cerimónia?
Quem vela a agonia? Quem estende o lençol?
Quem afasta o espelho não embaciado?


Porque a essa hora já não há mãe nem parentes.
Já não há soluço. Mais nada que um silêncio atroz.


Todos são uma face atenta, incrédula
de homem da outra margem.


Porque o que acontece não é verdade.


(Trad. A.M.)





Fontes: Sololiteratura (70p+perfil+biblio) / Tripod (11p+bio) / Poesia mex. siglo xx (4p+perfil) / Wikipedia
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Coitado do Jorge (50)









QUEM MANDA







A minha mãe morreu há uns anos.
Volta e meia, porém, discorda de algumas atitudes que me vê tomar.
E pronuncia-se, manifesta-se, insiste, teima e marralha, uma e mais vezes.
Com tal insistência, por vezes, que eu tenho de a increpar:

-“Mãezinha, quem manda são os vivos”!


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21.1.09

Olhar (42)

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Serra do Marão
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(Mafómedes)
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Fiama Hasse Pais Brandão (Na rua das Mónicas)










NA RUA DAS MÓNICAS




Nos meus vinte anos,
almoçar em casa de Sofia
era ouvir ferver em cachão,
frigir na cozinha,
arfar a cafeteira da poesia.
Era ver a ama de Sofia,
e de todos os filhos,
de muitos versos,
cuidar de muitas gerações de memórias,
no lar desses versos tão caseiros.
E era beber, ali, na mesa,
uma água que, mais do que a da torneira,
concitou o mar para cada copo.
Era olhar um rosto de coral
(o que exorciza as Fúrias, na cozinha)
um rosto de mar novo, de geografia.
Era escutar as palavras da boca
do vocábulo grego para sabedoria,
o que me confirma o poder dos nomes,
ao serem Verbo, sobre os seres e as coisas.
Era sentar-me, lado a lado,
no espaço irradiante da volúvel lareira,
no Outono apagada, na Primavera acesa,
e com o fogaréu alimentado
por papéis venais de outra política
(que não a da sua humanidade),
que a prudência mandava destruir no fogo.
Era entrar e sair pela porta das Mónicas,
a das mulheres congregadas
sob invocação da mãe de Agostinho,
o que para mim celebrava também
o amor de mãe, da velha ama, da Poesia.




Fiama Hasse Pais Brandão

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19.1.09

Bertolt Brecht (Elogio da dialéctica)










ELOGIO DA DIALÉCTICA





A injustiça avança hoje a passo firme
Os tiranos fazem planos para dez mil anos
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são
Nenhuma voz além da dos que mandam
E em todos os mercados proclama a exploração
Isto é apenas o meu começo



Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos



Quem ainda está vivo não diga: nunca
O que é seguro não é seguro
As coisas não continuarão a ser como são
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados
Quem pois ousa dizer: nunca?
De quem depende que a opressão prossiga? De nós
De quem depende que ela acabe? Também de nós
O que é esmagado que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha?
E nunca será: ainda hoje
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã



Bertolt Brecht




[As Tormentas]


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15.1.09

Ver (11)

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Santa Maria

(Açores)

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Ibne Amar (Sou Ibne Amar)








Sou Ibne Amar, ninguém pode desconhecer-me,
só um néscio que nada saiba do sol ou da lua.


Se o meu século me posterga, não é de admirar:
as notas úteis dos livros escrevem-se nas margens.



Ibne Amar

- S. Brás de Alportel (n. 1031)


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Raymond Carver (Medo)



FEAR
 

Fear of seeing a police car pull into the drive.
Fear of falling asleep at night.
Fear of not falling asleep.
Fear of the past rising up.
Fear of the present taking flight.
Fear of the telephone that rings in the dead of night.
Fear of electrical storms.
Fear of the cleaning woman who has a spot on her cheek!
Fear of dogs I've been told won't bite.
Fear of anxiety!
Fear of having to identify the body of a dead friend.
Fear of running out of money.
Fear of having too much, though people will not believe this.
Fear of psychological profiles.
Fear of being late and fear of arriving before anyone else.
Fear of my children's handwriting on envelopes.
Fear they'll die before I do, and I'll feel guilty.
Fear of having to live with my mother in her old age, and mine.
Fear of confusion.
Fear this day will end on an unhappy note.
Fear of waking up to find you gone.
Fear of not loving and fear of not loving enough.
Fear that what I love will prove lethal to those I love.
Fear of death.
Fear of living too long.
Fear of death.

I've said that.


Raymond Carver



Medo de ver a polícia parar diante da casa.
Medo de ficar a dormir durante a noite.
Medo de não conseguir dormir.
Medo de que o passado volte.
Medo de que o presente levante voo.
Medo do telefone que toca no silêncio a horas mortas.
Medo das tempestades eléctricas.
Medo da mulher de turno que tem uma cicatriz no queixo.
Medo dos cães embora me digam que não mordem.
Medo da ansiedade!
Medo de ter que identificar o corpo de um amigo morto.
Medo de ficar sem dinheiro.
Medo de ter muito, embora seja difícil de crer.
Medo dos perfis psicológicos.
Medo de chegar tarde e de chegar antes de todos.
Medo de ver a letra dos meus filhos na capa de um envelope.
Medo de os ver morrer antes de mim e de me sentir culpado.
Medo de ter que viver com a minha mãe, na velhice dela e na minha.
Medo da confusão.
Medo de que este dia termine com tristeza.
Medo de acordar e de ver que foste embora.
Medo de não amar e medo de amar demasiado.
Medo de que o que eu ame seja letal para aqueles que amo.
Medo da morte.
Medo de viver demasiado tempo.
Medo da morte.
Isso já disse.


(Trad. A.M.)



Fontes: Wikipedia / Sítio oficial (tudo+algo)

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13.1.09

Raul Brandão (Elites)








(Elites…)






Portugal é uma pátria, porque, para ter uma pátria, o essencial é merecê-la, e nós temo-la merecido, mais e melhor do que muitos dos grandes países desse mundo.

O que é preciso é criar quanto antes novas elites.

Diga-se tudo: as nossas últimas convulsões são uma luta inconsciente de sangue que procura um ideal e não o encontra.

A maior tragédia passa-se na obscuridade e no silêncio, entre fantasmas que se querem impor, para viverem outra vez…

Para os vencer e dominar, caminhando, não para o ideal antigo, mas, ao menos, para a mercearia bem ordenada, de que falava Junqueiro, é necessário criar rapidamente novas elites.

Não elites que nos subjuguem - mas elites que nos conduzam para a beleza e para a justiça…



- RAUL BRANDÃO, Memórias, III, in fine.






RAUL BRANDÃO:

Vidas lusófonas (perfil)

DGLB (bio+biblio+linques)

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Fernando Pessoa / A.Caeiro (A espantosa realidade)









A ESPANTOSA REALIDADE DAS COUSAS






A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.


Basta existir para se ser completo.


Tenho escrito bastantes poemas.
Hei-de escrever muitos mais, naturalmente.


Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.


Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.


Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.


Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.


Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.




Alberto Caeiro


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Coitado do Jorge (49)






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Afinal, ela era infiel porque desconfiada,
ou desconfiada porque infiel?




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11.1.09

Eloy Sánchez Rosillo (A certa idade)









A CERTA IDADE





Agora vês claramente que já não te interessam
tanto aquelas coisas que foram até há pouco
o centro da tua vida. Quase tudo
o que guardavas como se fosse
um íntimo tesouro inesgotável
é hoje cinza fria. E nem sequer lutas já
para conseguir o que o acaso não quis
deixar ao teu alcance. Em poucos anos,
Eloy, como mudaste, como te foram
impiedosamente abandonando os sonhos
que te sustentavam a vida. Não é costume,
chegado a certa idade, o homem continuar
efabulando sobre a ventura como nos bons tempos,
em que a juventude inflamava
seus ingénuos desejos. A passagem dos anos
faz-te ver a tua indigência. E sentes-te vazio
nesta tarde lenta de verão
que seria óptima para ti se o teu peito
albergasse ilusão ou, pelo menos, o desejo
de ter ilusões. Tudo flui,
como um rio impossível de quiméricas águas,
junto do ermo onde moras. Nada aqui se detém,
nem tu desejas que nada
se detenha a teu lado.
Que mais dá. Se estás só
é porque assim tem de ser.
Vai caindo a tarde.
Olhas - indiferente, conformado, sem tristeza –
como chegam as sombras. As chamas do crepúsculo
apagam-se ao longe.
E por fim fechas os olhos
e invade-te a noite.



Eloy Sánchez Rosillo

(Trad. A.M.)
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Fontes: A media voz (24p) / Cervantes (bio+17p) / Canal-literatura (currículo+entrevista)


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Nuno Júdice (Chuva)











CHUVA





Chove como sempre. E,
sempre que chove,
as pessoas abrigam-se
(as que não estavam à
espera que chovesse);
ou abrem, simplesmente,
o chapéu-de-chuva - de
preferência com fecho
automático. Porque, quando
chove, todos temos de
fazer alguma coisa: até
nós, que estamos dentro
de casa. Vão, uns, até
à janela, comentando:
“Que Inverno!”; sentam-se,
outros, com um papel
à frente: e escrevem
um poema, como este.





NUNO JÚDICE
Um Canto na Espessura do Tempo (1992)


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6.1.09

Cristina Peri Rossi (Distância justa)







DISTANCIA JUSTA



En el amor, y en el boxeo
todo es cuestión de distancia
Si te acercas demasiado me excito
me asusto
me obnubilo digo tonterías
me echo a temblar
Pero si estás lejos
sufro entristezco
me desvelo
y escribo poemas.


CRISTINA PERI ROSSI
Otra vez Eros
(1994)




No amor e no boxe
é tudo questão de distância
Se te aproximas demais eu excito-me
eu assusto-me
obnubilo-me digo tolices
ponho-me a tremer
Mas se estás longe
eu sofro eu entristeço
desvelo-me
e escrevo poemas.


(Trad. A.M.)


Fontes: A media voz (25p+ nota bio) / Sit.oficial (notícias+bio+obra+entrevistas+linques) /
Outro (tudo+algo)


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António Ramos Rosa (Figura)









FIGURA





A tua figura desperta a minha energia subtil
e ascende à primeira forma sublime e simples.
Primavera do mundo e aromático barco
e na palma da mão a delicada inicial.
Neste instante as luzes são passagens transparentes
e eu coloco o teu ventre novamente na paisagem.
Venho de ti e vou para ti antes do primeiro jacto
num côncavo seio na cúpula do segredo,
que é tão fechado como a não respiração
e que se abre no rosto dos meus membros.




ANTÓNIO RAMOS ROSA
O Não e o Sim (1990)


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4.1.09

Vitorino Nemésio (Azorean torpor)









(Azorean torpor…)





Hoje madruguei em Angra, a velha cidade açoriana ainda adormecida no seu bioco de névoas.

Não é o nevoeiro conhecido das nossas latitudes continentais europeias, nem o nevoeiro londrino, envolvente e raso ao solo, que refrange a luz a amarelo e se faz solidário com tudo.

É uma massa de vapor de água esparso em véus, que se ajeitam às formas arredondadas dos montes de pedra-pomes e se esparramam aqui e acolá em estratos – ora movediços, ora estáticos - compondo de repente uma espécie de campânula sobre a ilha.

Essa tampa de terrina tanto pode abafar-nos por uns dias como durar apenas uma manhã ou uma tarde - ou, ainda, resolver contrair-se e cobrir só um recanto do ambiente, e finalmente dissipar-se, deixando em seu lugar um amplo azul-celeste, cortado a tons de opala, que uma ou outra nuvem leitosa e meio esvaída vem manchar.



- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, 1956, Segundo corso (Os moinhos do donatário).
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Manuel Alegre (Trinta dinheiros)









TRINTA DINHEIROS





No bengaleiro do mercado público
penduraram o coração.
Vestem o fato dos domingos fáceis.
Não têm rosto
têm sorrisos muitos sorrisos
aprendidos no espelho da própria podridão.
Têm palavras como sanguessugas.
Curvam-se muito.
As mãos parecem prostitutas.
Alma não têm. Penduraram a alma.
Por fora parecem homens.
Custam apenas trinta dinheiros.




Manuel Alegre




Fontes: As Tormentas (35p+bio) / Porto de Abrigo (8p) / DGLB (bio+biblio+excertos+linques)
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2.1.09

Joaquim Namorado (Achado arqueológico)









ACHADO ARQUEOLÓGICO





A única estrada para lá
é uma estrada romana…


Lá vive gente
- não sei se fala latim
mas é de crer que sim.





Joaquim Namorado


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Fernando Ortiz (Na idade perfeita)







NA IDADE PERFEITA




O sabor do café e o cigarro,
o pausado passeio cada tarde,
o cheiro da terra quando chove,
a grata conversa com um amigo
e uma rara página gostada
são teu amor à vida, os teus sentidos.
Aprofundam-se as feridas com o tempo
embora ele mesmo esconda as cicatrizes.
Passou a juventude e o que tens
chamam-lhe os néscios maturidade.



Fernando Ortiz


(Trad. J.M.Magalhães)





Fontes: Catedra (ficha) / El Imparcial (perfil+soneto) / Abel Martin (antologia)
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Ver (10)

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(Vila Flor)
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